Personagens gays em roteiros sensíveis
Em 2010, após já ter ganho um Urso de Cristal no Festival de Berlim, com “Café com Leite” (2007), Daniel Ribeiro realizou seu segundo curta, “Eu Não Quero Voltar Sozinho”. O filme percorreu o mundo, ganhou diversos prêmios (entre eles, o de melhor filme, pelo júri da crítica, popular e oficial do Festival de Paulínia), e, até o momento, já foi visto mais de 2,5 milhões de vezes no Youtube. O curta chamou a atenção por tratar com bastante sensibilidade a descoberta sexual de um garoto cego e gay.
“Como uma pessoa, que nunca viu um homem ou uma mulher, sente-se atraído por alguém? Nessa época, perguntava pra tudo mundo: ‘qual foi sua primeira lembrança de se sentir atraído por alguém?’ Esse exercício é incrível, porque você se lembra de certas obsessões que tinha com quatro, cinco anos, como gostar de olhar para um ator num pôster. O plot parecia um dramalhão: um cego que se descobre gay. A ideia era tratar as duas coisas como não problemas. É um problema tal como para alguém que é alto, ser alto. O que me interessava eram os dilemas de alguém que é cego se apaixonando”, conta o cineasta, formado na ECA/USP.
O mesmo tema e elenco em filmes diferentes
“Eu Não Quero Voltar Sozinho”, porém, não nasceu sozinho, veio de uma vontade de Daniel Ribeiro estrear em longas. Como só tinha um curta no currículo, resolveu fazer outro, buscando experimentar desde a estética até a narrativa, passando pela escolha de equipe e especialmente de elenco. “Seria quase um piloto”, conta Daniel sobre a origem de “Hoje Eu Quero Voltar Sozinho”, o longa. A premissa é a mesma: a vida de Leonardo, um garoto cego, muda completamente após a entrada na classe de Gabriel – enquanto lida com a melhor amiga, precisa entender o que o menino novo provoca nele. O trio protagonista também se manteve: Guilherme Lobo como Leonardo, o cego; Fábio Audi como Gabriel, o menino novo; e Tess Amorim como Giovana, a amiga.
Daniel, porém, garante que são filmes diferentes. “A premissa do longa é a mesma do curta, mas é como se fosse um reboot. É tudo bem diferente: novos personagens, novos conflitos, nova maneira da relação se desenvolver. Sempre pensamos em projetos diferentes, pois sabíamos que demoraríamos a captar, que os atores iam crescer. Não fazia sentido”, explica. “Tem cenas que são parecidas. E tem muita coisa que havia copiado do roteir o e que caíram na montagem porque parecia infantil. Mexi muito no roteiro ao longo dos anos”, complementa o cineasta, que no meio tempo dirigiu, para o GNT, a segunda temporada da série “Viva Voz”.
Enquanto fazia o curta, desenvolvia o longa, chegando a participar, inclusive, com o roteiro no Berlinale Talent Campus. “O piloto serviu bem, especialmente como portfólio, porque íamos concorrer com um [Fernando] Meirelles, com um Walter Salles, e podíamos mostrar algo: ‘não fizemos muita coisa, mas somos capazes de fazer isso’”, conta Daniel, que ganhou quatro editais para filmar, mais um para desenvolvimento de roteiro.
Viés gay
Os filmes de Daniel Ribeiro dificilmente podem ser considerados de temática gay, desse estereótipo em que os filmes de tal temática giram em torno, porque os gays em seus filmes, sempre presentes e centrais, não têm dilemas próprios da sexualidade. Seus gays são simplesmente, e os conflitos surgem de trivialidades do ser humano, como a morte dos pais, a descoberta de uma paixão, entre outros. “Nos meus filmes, os personagens não pedem licença para serem aceitos, isso não é uma questão. Eles deveriam ser aceitos, se você não os aceita, problema seu. Quando você fala – sem discutir com o público se é certo ou errado –, você acaba o guiando a encarar com normalidade o assunto”, conta.
“O mais fácil é retratar [o gay, no caso] de forma completamente natural. Se você perde seus pais, foda-se se você é gay ou não, a dor é igual. É meio óbvio. Convivo com muitos gays, sei como se comportam. O olhar estereotipado vem de quem não convive com gays, é o que está distante. Não é novidade – só é novidade porque ninguém faz. Os gays tem a mesma vida”, complementa.
Para Ribeiro, trabalhar filmes com esse viés veio de forma muito natural, de uma lacuna sentida durante sua adolescência. “A primeira razão de trabalhar histórias gays é porque sou gay e queria contar histórias de personagens que não são retratados. Era adolescente nos anos 1990 e quase não tinha filmes que mostrassem gays. Queria contar histórias comuns, que as pessoas pudessem se identificar e que os personagens fossem gays. Se mudar para um casal heterossexual, não muda muito a história, ser gay não é a questão. Muitos adolescentes se descobrem gays, por exemplo, e querem se ver retratados, de forma doce, inteligente”, comenta. “Quando era adolescente, havia muitos poucos exemplos de casais gays na mídia. Hoje não, os gays estão fora do armário. Toda novela tem um casal gay. Eu talvez tenha pertencido à última geração que teve crise com o descobrir-se gay”, afirma.
Existe uma vontade de dissociar o sexo da homossexualidade, segundo Ribeiro. “Quando um filho fala para a mãe que é gay, o que ela entende é que ele faz sexo com outros homens. No ‘Eu Não Quero Voltar Sozinho’, falo de amor platônico, quase nada sexual”, explica. Isso muda um pouco em “Hoje Eu Quero Voltar Sozinho”. Com o trio de atores mais velhos, todos maiores de idade durante a filmagem, foi possível trabalhar um viés mais sexualizado. E o preconceito faz-se presente. “No longa, há um bullying, porque precisa ter um conflito, mas de forma muito leve”, conta.
Roteiro tem prioridade nos filmes de Daniel
Se o interesse por histórias gays pode ter chamado a atenção de quem assistiu aos curtas de Daniel Ribeiro, dificilmente foi esse o motivo do fenômeno que o filme se tornou. Ribeiro é um dos poucos jovens cineastas brasileiros que realmente investem na elaboração do roteiro e em seu desenvolvimento narrativo, construindo histórias com bastante sensibilidade.
“Pra mim, a base de tudo é o roteiro. É a orientação do filme. Se você tem a segurança no roteiro, você consegue fazer todas as mudanças necessárias quando está filmando. No longa, fui um pouco redundante nas informações, porque não sabia o que ia conseguir filmar, se ia ficar bom etc. Durante a montagem, o roteiro foi ficando mais solto, menos amarrado. Tudo o que era redundante no roteiro caiu fora. No set e nos ensaios, tenho um controle muito grande do roteiro e sei o que é possível mudar”, conta o diretor e roteirista, que escreve sem método, forçando-se a trabalhar. “Em ‘Café com Leite’, por exemplo, tinha uma cena no cemitério, que era a única cena que contava da morte dos pais. Mas filmamos e ficou muito ruim. Mudei o roteiro. Incluí uma fala relacionada a isso em outra cena. Quando o protagonista se deita na cama, fala ‘Nunca mais quero ir ao cemitério de novo’. E isso resolvia”, explica.
Em “Hoje Eu Quero Voltar Sozinho”, Ribeiro ficou três meses dedicado apenas ao roteiro, após ganhar o edital de desenvolvimento. O roteiro, segundo ele, vai maturando na cabeça e ele também trabalha com anotações. Depois senta e revê todo o projeto.
Foi numa dessas maturações que o longa mudou de nome. Anteriormente batizado de “Todas as Coisas Simples”, o novo título foi anunciado em meados de setembro. Além de fazer um jogo com o título do curta, buscando remeter-se ao fenômeno de público e levar mais pessoas ao cinema, há uma mudança na construção do personagem. “No curta, o garoto cego não queria voltar sozinho porque estava apaixonado. No longa, por entrar os personagens da avó e da mãe, que é superprotetora. Leonardo queria poder ficar sozinho, poder voltar sozinho, porque aquilo significa independência”, explica.
Tudo que Daniel Ribeiro quer agora, enquanto termina a finalização do longa, é mostra-lo ao mundo. Primeiro, tentarão festivais internacionais no começo de 2014. No Brasil, deve chegar comercialmente, via Vitrine Filmes, também no primeiro semestre do ano que vem, antes da Copa. “Estava todo focado no filme. Tenho ideias de filmes e séries, mas precisam ser colocadas no papel. Agora que abriu edital, devo fazer isso”, conclui.
Por Gabriel Carneiro
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