O mundo em transformação acelerada

Em 2007, após sete anos de trabalho, Alê Abreu finalizou seu primeiro longa, a animação “Garoto Cósmico”, voltada ao público infantil. “Garoto Cósmico”, à época, fazia parte das pouco mais de vinte animações em longa-metragem produzidas no Brasil. Seis anos depois, sendo quatro de produção, Alê Abreu volta a lançar um novo longa de animação, o poético e simples “O Menino e o Mundo”, e se confirma como um dos principais nomes do gênero no país.

“O Menino e o Mundo” aparece num bom momento da animação brasileira, com um aumento percentual substantivo nos últimos anos, devido a fomentos específicos de desenvolvimento. Arte cara e demorada, o cinema de animação brasileiro viu recentemente “Uma História de Amor e Fúria”, de Luiz Bolognesi, ser premiado em Annecy e pré-selecionado na disputa pelo Oscar na categoria animação, além de longas como “Minhocas”, de Paolo Conti e Arthur Nunes, e “Até que a Sbórnia nos Separe”, de Otto Guerra e Ennio Torresan Jr., chegando ao mercado.

O longa de Alê Abreu narra a saga de um menino que vê seu pai sair de casa e parte atrás dele, carregado pelo vento, numa jornada de descobertas, tendo como pano de fundo a transformação da sociedade artesanal em industrial, via ciclo do algodão. A narrativa também é muito fluida quanto ao seu tempo, sem uma linha cronológica de eventos ou situações realmente definidas. “É quase uma geografia do tempo, ando pelo lugar e ando pela história. O tempo não existe, circulamos pelas lembranças, pela memória”, conta Alê Abreu, que contou com aproximadamente R$ 2 milhões, computado até o lançamento – que se dará em 17 de janeiro, com estimadas 30 cópias digitais –, um valor bem abaixo do mercado.

A viagem existencial do menino tem um forte acento político e social. “O pano de fundo da transformação social no filme vem todo da pesquisa do ‘Canto Latino’. Foi o que aconteceu com todos os países latinos ao longo dos anos. Era a base do filme, a transformação da cadeia produtiva. Do artesanal para o industrial, da exploração da mão de obra. Nos interessava essa volta: o cara produzia algo que depois não podia comprar. A pesquisa do ‘Canto Latino’ era para simplificar ao máximo a espoliação”, conta Alê, que se encantou pelo mundo da animação aos treze anos de idade.

Projeto nasceu para contar história do continente latino

“Canto Latino” foi o projeto, nunca realizado, que serviu como ponto inicial para “O Menino e o Mundo”. Feito a partir de um edital de desenvolvimento ganho em 2006, logo após a conclusão de “Garoto Cósmico”, “Canto Latino” era um anima-doc (mistura de animação com documentário) abordando diversos períodos da conturbada história do continente sob a ótica das músicas de protesto. Para tal, Alê viajou por toda a América Latina, conhecendo os mais diversos locais e povos. No seu caderno de rascunhos, surgiu, entre anotações e pensamentos sobre “Canto Latino”, a figura de um menino, apelidado de Cuca. “As primeiras ideias giravam em torno desse menino brincando no jardim, com traços que pareciam garatujas infantis. Talvez até fosse uma purificação do Alê, que saía do ‘Garoto Cósmico’. A partir dos desenhos desse menino, começou a desenhar personagens semelhantes. O entorno, os bichos. Sem a história. Começou então a buscar uma relação entre eles, um velho com uma carroça, uma mulher com uma sombrinha, um jovem”, conta Priscilla Kellen, responsável pela coordenação artística do filme e parceira criativa de Alê.

Priscilla Kellen, parceira criativa do filme, e Alê Abreu, que dedica sua animação à sensibilidade da criança com elementos visuais e sonoros e desenhos artesanais. © Aline Arruda

“Foram várias anotações. Tudo com o pano de fundo do que era o ‘Canto Latino’, e foram assim criados pedaços de histórias. Fomos costurando esses pedaços, desenhando, não através de roteiro. Um vento que leva um menino com uma mala. O filme surge das imagens e não do texto”, complementa Alê, que a partir desses pedaços criava um animatic, inserindo músicas que lhe interessavam, dando corpo ao que viria a ser o “Cuca no Jardim”, título inicial do longa, descartado por uma possível falta de apelo com o público. O roteiro escrito só viria para os editais.

Músicas e sons

Talvez por isso o longa funcione tão bem imageticamente e se construa apenas na narrativa das imagens, sem a necessidade de falas. Seu menino sequer tem boca. “Sabia que era um menino latino-americano, sem voz. O menino não tem boca em referência, talvez, a uma viagem ao México, ao Chiapas, no território zapatista, em que usavam uma bandana na boca, meio para dizer que não tinham voz. O filme é também sem a voz”, conta Alê. Já havia uma marcação sonora, que seriam vozes, no entanto, para marcar o tempo. “Esboçamos uma legenda, com um diálogo poético. Algo como ‘andorinha no ipê, sinal que vai chover’. O som continua aquele. Quando a animação estava pronta, não sentíamos a necessidade de uma fala definida. Pegamos aqueles textos metafóricos e os atores leram com a intenção do texto, mas na língua inventada”, complementa Priscilla. “O texto não importava porque é a maneira como a criança capta as coisas, a ideia da interpretação. É um menino muito pequeno, muito inocente. Que tem outra relação com o mundo e como esse menino se relaciona com esse universo”, aponta Alê.

Mesmo sem fala, o som é importantíssimo para a construção do filme, especialmente por conta da música. O que guia o menino é a maneira como interpreta e vê a música, a música que é do pai. “Tinha uma música do Sigur Rós que tinha uma flautinha e que para o Alê tinha tudo a ver”, conta Priscilla, acerca do ponto de partida para a música no filme. Por conta disso, Alê desenhou uma flautinha e encorpou-a à narrativa. Com trilha original de Ruben Feffer e Gustavo Kurlat, e com Naná Vasconcellos, Barbatuques e Emicida no time musical, “O Menino e o Mundo” segue a atmosfera musical já muito forte em “Garoto Cósmico”.

Cena de “ O Menino e o Mundo”: o garoto em sua jornada de descobertas em meio ao caos do mundo adulto

Criação foi na contramão das animações tradicionais

Ao longo de sua jornada, o menino sai do fundo branco para ganhar o mundo das cores; da simplicidade extrema nos traços, influenciados pelos desenhos infantis, para a complexidade. “A ideia era ser o mais simples possível. O filme nasceu da ideia de rapidez de dizer algo. No ‘Canto Latino’, para mim, o filme tinha que ter uma cara de urgência e carreguei isso para ‘O Menino e o Mundo’. Urgência no sentido de ter algo urgente a ser dito, e não urgente no sentido de ter que ficar pronto logo. Então o traço tinha que ser urgente. Sempre achávamos que todos os filmes lançados são muito quadrados, tudo parece igual em termos de desenho. Tudo muito limpo, muito perfeito. Inclusive nas caricaturas. O jeito da animação interpretar. Queríamos sair fora disso, queríamos ir na contramão, faria mais sentido. Teria uma coerência na linguagem”, comenta Alê, que julga a presença do branco no filme muito importante, para lembrar que sempre partimos do branco. Entre as técnicas de desenho e de animação, estão lápis preto em papel, lápis colorido, aquarela, pintura acrílica, canetinha, caneta esferográfica, colagem, 3D etc, tudo digitalizado buscando mimetizar a textura.
Abreu ainda não tem um próximo projeto definido, apenas um monte de anotações guardadas em uma pasta, colhidas ao longo de anos, a partir de observações banais. “Com ‘O Menino e o Mundo’, queria fazer um filme mais jovem, uma energia muito condensada. Vou ficando mais velho e isso vai ficando mais raro. Mas vejo outros projetos que me parecem mais maduros, voltados para um público mais adulto. Acho que estou envelhecendo”, conclui, divertindo-se.

Assista ao teaser da animação aqui.

 

Por Gabriel Carneiro.

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