O documentário brasileiro: do fenômeno à diversidade

Em 2003, não faz muito tempo, “Cineastas e Imagens do Povo”, livro clássico sobre o documentário nacional, era reeditado, e Jean-Claude Bernardet chamava nossa atenção para um dos cacoetes do cenário documental brasileiro daquele momento: a entrevista. De lá pra cá, muita coisa mudou. Uma escola mineira surgiu, predominou por um certo tempo, e, pouco depois, se pulverizou nas obras de diversos realizadores. O documentário passou a respirar forte em outros estados, especialmente Pernambuco e Ceará. Proliferaram os filmes-dispositivo, os longas-processo, os ensaios, os diários, a primeira pessoa. A ficção não está mais do outro lado, muito pelo contrário. O cinema entrou de vez no campo das imagens amadoras, voltou ao passado, sobretudo, aos tempos de ditadura, e fez milhares de espectadores falando de músicos e times ou torcidas de futebol.

A entrevista, é claro, ainda está por todos os lados. Mas, cacoete? A palavra soa estranha. São tantos filmes e estilos. Tantas estratégias e linguagens. Alguns docs visam o mercado. Outros nascem a partir de alguma questão intelectual. Há os que brotam de ações mais ligadas à arte contemporânea ou à videoarte. Existem também aqueles mais interessados no exercício da ideia de encontro ou em um retorno a um determinado momento ou evento histórico. E muitos, muitos outros.

Terreno propício para a diversidade do subgênero

Seria, então, possível identificar um traço similar entre “Pacific” (2009), “A Falta que me Faz” (2009), Girimunho” (2011), “Bahea, minha Vida”, “Elena” (2012), “Otto” (2012), “Dossiê Jango” (2012), “Jards (2012) e “A Música segundo Tom Jobim” (2012)? “Talvez o mais comum seja mesmo a diversidade dos longas, que mostram vozes e estilos muito diversos na produção documental”, sugere a cineasta Marília Rocha. “Sei que falar em diversidade parece uma saída fácil para escapar de uma análise mais profunda”, adverte Pedro Butcher, crítico e editor do portal Filme B, “mas qualquer tentativa mais generalizante, no caso, seria de fato redutora”.

“Otto”, de Cao Guimarães: linguagem documental no campo da experimentação

Diversidade, portanto. A palavra, contudo, é na verdade como que a ponta de um iceberg. Vivemos hoje uma era de explosão da produção documental que se desmembra no espaço cada vez maior ocupado pelos documentários nos cinemas, em mostras, festivais, editais, bem como em revistas, jornais e na academia. Se, em 1998, apenas um longa-metragem documental teve lançamento em circuito (“Atlântico Negro – Na Rota dos Orixás”, de Renato Barbieri), esse número pularia para 24, em 2004, e 36, quatro anos depois. Em 2012, nada menos que 45 docs ganharam os cinemas brasileiros.

“O digital aboliu fronteiras, facilitou processos, barateou custos e alterou a forma de coletar e editar imagens. Por sua vez, a consolidação da nossa democracia e os influxos de democratização dos meios de produção trouxeram para o campo do documentário uma malha de vozes e expressões que antes estavam alijadas desse processo”, destaca o crítico e pesquisador Carlos Alberto Mattos.

É bem verdade, no entanto, que a média espantosa de lançamentos comerciais ainda não contempla o fenômeno da produção de documentários. O número de salas, por exemplo, é bem reduzido se comparado a outros gêneros cinematográficos e a participação de mercado fica em torno de 1%. “Para cada doc que ganha um lugar ao sol em salas de cinema, há vários outros que não conseguem esse espaço. Ou seja, há uma grande pressão que vem muito mais do volume de produção a ser escoado do que propriamente de uma demanda do mercado exibidor. Os fatores que levam um documentário a encontrar espaço nos cinemas variam muito”, explica Butcher, citando o exemplo de “O Renascimento do Parto” (2013), de Eduardo Chauvet, que conseguiu seus recursos, tanto de produção quanto de lançamento, à base do crowdfunding.

Marília Rocha: talvez o mais comum seja mesmo a diversidade dos longas que mostram vozes e estilos muito diversos na produção documental. © Agência Foto

Explosão na produção e falta de salas para exibição

Embora sublinhe o sucesso de filmes sobre torcidas ou times de futebol e músicos, como “Vinícius” (2005), de Miguel Faria Jr., o recordista brasileiro com 270 mil espectadores, Jean-Thomas Bernardini, dono do cinema Reserva Cultural e da distribuidora Imovision, ressalta a quase inexistência de salas mais voltadas para um cinema de maior experimentação. “É evidente que, quando o filme está pronto e mostrado ao mercado, o resultado acaba sendo cruel para a maioria deles, porque poucos conseguem entrar em circuito e, quando entram, poucos conseguem salas lançadoras ou então aceitam horários alternativos com poucas sessões. A falta de salas que se dediquem a exibir filmes mais autorais e/ou documentários é óbvia. O poder público deveria procurar incentivar esse tipo de cinema. Eu fico muitíssimo preocupado, e acho que a imprensa também tem uma parte de culpa por praticamente ignorar esse problema”, diz ele.

O estilo denúncia em “A Cidade É Uma Só?”, de Adirley Queirós, que aborda as desigualdades sociais de Brasília

A explosão na produção e sua chegada desigual ao circuito não teria toda essa repercussão se não estivesse acompanhada de uma enorme variedade de métodos, experimentações narrativas e redimensionamento de alguns conceitos, como as próprias noções de documentário e ficção. Na verdade, o cinema documental brasileiro alimenta uma inquietação formal que desde sempre o colocou na linha de frente do setor audiovisual. Vladimir Carvalho, roteirista de “Aruanda” (1959), uma das obras seminais do cinema novo brasileiro, e um de nossos realizadores mais importantes, com mais de 25 filmes realizados, afirma que desde sua geração o documentário se mostrou um ambiente propício ao desejo de experimentação e autoconhecimento do Brasil como nação e a necessidade de trabalhar em um regime de poucos recursos.

“Eu penso que esse processo de renovação está longe de ser estancado e vai se prolongando na medida em que portas se abrem, seja pelo interesse do público que tem sido crescente, seja pela abertura de novas instâncias de produção e circulação que o documentário desconhecia até pouco tempo. Talvez o que permeie este momento atual de inovação seja a mistura que temos realizado, com muito êxito, dos diversos estilos e escolas, desde o mais clássico, e já em parte superado, aos modelos mais contemporâneos como o do cinema direto dos documentaristas americanos aos das práticas interativas dos franceses. Isso sem falar nas tendências ficcionais mais recentes. Há um jogo de assimilações em que, sem pudor, de um jeito bem brasileiro e antropofágico, tem-se alcançado um nível invejável de percepção de nossa realidade em várias esferas”, afirma.

Vladimir Carvalho: talvez o que permeie este momento atual de inovação seja a mistura que temos realizado com muito êxito dos diversos estilos e escolas. © Leo Lara

A ficção invade o documentário

Vladimir Carvalho tem razão. Há uma forte tendência ficcional no documentário brasileiro dos últimos anos que remonta, sem dúvida nenhuma, ao cinema verdade francês de Jean Rouch. São muitos os filmes que operam nos interstícios entre registro e encenação: “Serras da Desordem” (2006), de Andrea Tonacci, “Juízo” (2007), de Maria Augusta Ramos, “O Céu sobre os Ombros” (2011), de Sérgio Borges, “Avenida Brasília Formosa” (2009), de Gabriel Mascaro, “A Cidade É Uma Só?” (2011), de Adirley Queirós, “Terra Deu Terra Come” (2010), de Rodrigo Siqueira, etc. Foi-se o tempo em que ficção e realidade eram vistas como polos opostos de um mesmo mundo. Ao contrário, os cineastas brasileiros veem o mundo como algo que se faz enquanto é narrado e filmado. E isso diz respeito não somente ao jogo com o ficcional, como também a uma aproximação com a videoarte e as instalações, vide o cinema de Cao Guimarães. Vale quase tudo: efeitos digitais, imagens incrustadas ou sobrepostas, alterações do ritmo natural, congelamentos, trilha sonora, planos subjetivos ou mais sensoriais…

“Nos filmes que fiz, me interessava particularmente a experiência de certas pessoas, seu ambiente, suas amizades, suas relações amorosas, as escolhas de vida, o envelhecimento, a juventude, a memória. Meu trabalho foi descobrir como expressar esses aspectos pelo cinema. Portanto, não era apenas com o mundo factual – no sentido da ‘informação’ – que eu estava lidando, e foi preciso encontrar uma forma de abordar essas relações por meio dos sentimentos das pessoas envolvidas”, conta Rocha, às voltas com seu novo projeto, “A Cidade onde Envelheço”, sobre a experiência de duas jovens portuguesas que decidem se mudar para Belo Horizonte.

“Doméstica”, de Gabriel Mascaro: estilo “observacional” que tem encontrado muitos adeptos no Brasil

O que se impõe, portanto, é a ideia do documentário não exatamente como janela ou explicação do mundo, mas algo como uma construção cinematográfica cada vez mais livre. O documentário é hoje um campo de experimentação tão atraente quanto as criações ficcionais, o que, aliado a uma maior liberdade no que concerne a tecnologia, vem conquistando uma horda de jovens realizadores. Ao longo deste processo, novos conceitos ou noções ganham força. É o caso do dispositivo, um termo que vem da filosofia francesa e designa um sistema de escolhas e regras (temporais, espaciais ou circunstanciais) que norteiam o trabalho de cineastas como Eduardo Coutinho, Marcelo Pedroso, Gabriel Mascaro e Cao Guimarães.

“O dispositivo, termo advindo da teoria francesa, serve para designar uma série de critérios e condutas do documentarista em relação ao material do real. Haja vista a impossibilidade de roteirizar a realidade, criaram-se mecanismos de organização e escolha capazes de orientar a criação do filme. Mais do que incorporar acaso e incertezas, creio que o dispositivo se presta a limitá-los dentro de certo campo de abordagem e amplitude”, explica Mattos, citando ainda os filmes-processo como “Morro do Céu” (2009), de Gustavo Spolidoro, “Moscou” (2009), de Eduardo Coutinho, e “Serras da Desordem” (2006). “Isso responde a um desejo de reflexividade e de transparência. Exibir o processo é uma forma de expor os próprios limites e métodos. O filme-processo se estabeleceu também como um subgênero em si, no qual importam menos os resultados que o caminho utilizado para se chegar até eles. Chegou-se mesmo ao fetiche do processo, quando este substitui sem ganhos o resultado do processo”.

Carlos Alberto Mattos: filmar o real virou obsessão global e a manipulação digital desse material fez ampliar o espectro do que é recebido como real

Vale lembrar que o cinema documental faz parte hoje de um cenário renovado de práticas midiáticas não-ficcionais. Se até os anos 90 o documentário tinha, em geral, o telejornalismo como sua contraparte, o que vemos hoje é um campo cada vez maior de espetáculos do real, formado por realities shows e pelos fenômenos do Youtube e dos vídeos amadores. Essa vizinhança revela um gênero cada vez mais abrangente e permeável. “Filmar o real virou obsessão global, e a manipulação digital desse material fez ampliar-se o espectro do que é recebido como ‘real’. É óbvio que a análise desse universo deve levar isso em conta”, diz Mattos. “O documentário e qualquer forma de criação artística é fatalmente afetado pela realidade dentro da qual nasce. Não há como isolá-lo. As tecnologias e as práticas audiovisuais de nosso tempo trazem recursos a serem utilizados, e alteram inevitavelmente as maneiras de se criar e assistir aos filmes”, completa Rocha.

A subjetividade documentada

As novas imagens feitas por amadores ou registradas através de celulares e máquinas fotográficas que filmam tornam matéria-prima aquilo que até bem pouco tempo atrás não seria considerado de interesse público, não sairia dos arquivos privados. É o caso de “Pacific” (2009), de Marcelo Pedroso. “Doméstica” (2012), de Gabriel Mascaro, e “Rua de Mão Dupla” (2004), de Cao Guimarães, também fazem usos variados destas novas imagens. E elas nos dão pistas sobre aquele que talvez seja o traço comum do cenário documental brasileiro atual: o exercício pleno da subjetividade. Ela também se manifesta numa variedade de procedimentos. Pode estar relacionada ao cineasta, que pode torna-se personagem ou mesmo assumir a primeira pessoa, como em “Diário de uma Busca” (2010), de Flávia Castro, ou em “Meus Dias com Ele” (2013), de Maria Clara Escobar. É a subjetividade de quem é documentado, não mais visto necessariamente como um dado sociológico ou de classe, como em “Pan-Cinema Permanente” (2007), de Carlos Nader. A subjetividade ainda está presente nos temas: o cotidiano, a família, as micropolíticas etc.

Cena do documentário “Dossiê Jango”, de Paulo Fontenelle: o estilo histórico sempre permaneceu

Não deixa de ser curioso. Afinal, subjetividade é uma palavra amplamente reprimida na história do documentário e sua vocação retórica, objetiva e realista. Mattos comenta: “O documentarista era pessoal na medida em que conduzia seu filme com um olhar próprio, embora dissimulado como um olhar do senso comum ou de determinada visão da sociedade. O que mudou, a partir da explosão do ‘eu’ documentado nos anos 1970 e 80, é que o documentarista se sentiu mais livre para engajar sua subjetividade diretamente nos filmes, muitas vezes usando a primeira pessoa e colocando-se como personagem ativo. Por outro lado, o advento de um interesse mais antropológico que sociológico no doc brasileiro a partir dos anos 1990 recuperou a figura do indivíduo não mais como representante de grupos sociais, mas como singularidade irredutível. Daí a ênfase também na subjetividade dos personagens. Junte-se a isso a cada vez mais frequente incorporação de formas narrativas próprias da subjetividade, como os diários, correspondências, travelogues, confidências etc.”

Em meio a este fenômeno de produção e a este turbilhão de estratégias e linguagens, ainda há aqueles que acreditam que o documentário brasileiro anda menos político, talvez menos interessado em discutir uma certa noção de Brasil. É verdade, diz a maioria de nossos entrevistados, que existe certamente uma espécie de rejeição a tentativas generalizadoras. Contudo, como fazem questão de sublinhar, os docs nacionais têm se voltado com afinco para aspectos da vida e da história brasileiras, para questões de identidade, habitação, mão de obra e resistência. “A própria ascensão do documentário é um fato político, pois diz respeito ao desejo de interpretar, conhecer e discutir o Brasil”, diz Mattos. Butcher lembra dos trabalhos da Comissão da Verdade e o quanto o passado da ditadura militar tem se tornado uma preocupação presente: “Uma Longa Viagem” (2011), de Lúcia Murat, “Cidadão Boilesen” (2009), de Chaim Litewski, “Hércules 56” (2006), de Silvio Da-Rin, “O Dia que Durou 21 Anos” (2013), de Camilo Tavares, e “Dossiê Jango” (2012), de Paulo Henrique Fontenelle.

Jean-Thomas Bernardini: é evidente que quando o filme está pronto e mostrado ao mercado o resultado acaba sendo cruel para a maioria deles, porque poucos conseguem entrar em circuito. © Aline Arruda

Carvalho, por sua vez, põe os pingos nos is com um adendo final: “Nunca se fez tantos filmes de fundo político em que se discutiram temas candentes com grande liberdade, sem sofrer quaisquer censura, pelo menos sem a vileza que foi vigente durante o regime militar. Mas sem nunca esquecer que um documentário é bom não por ser político, mas antes de tudo por ser um bom filme”.

 

Por Julio Bezerra

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