Festival de Brasília mostra “Deus e o Diabo” em noite de muita emoção
Por Maria do Rosário Caetano, de Brasília
Paloma Rocha, filha do cineasta Glauber Rocha e da atriz Helena Ignez – vista nesta foto ao lado do presidente do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, o secretário de Cultura do DF, Hamilton Pereira – apresentou à plateia, que lotou o Cine Brasília na noite de ontem, seu irmão Henrique Cavalleiro. Como? Os irmãos de Paloma não são Pedro, Eryk e Ava Rocha? Pois apareceu, ano passado, mais um filho do cineasta baiano. O DNA comprovou a paternidade, mas Paloma diz que nem precisava. “Ele é a cara do Glauber”, conta a cineasta e produtora.
A semelhança é mesmo impressionante. E a história, também contada por Paloma, é igualmente incrível. Henrique foi criado pela mãe e pelo cineasta Eliseu Visconti Cavalleiro, diretor de “Os Monstros do Babaloo”. Daí sua assinatura civil. Por razões pessoais, a mãe de Henrique preferiu registrá-lo com o nome do companheiro Eliseu Visconti, neto do grande pintor brasileiro. Paloma lembra que o pai, quando passeava com ela nas proximidades do bairro carioca onde o menino morava, dizia que ela tinha um irmãozinho e que um dia o conheceria. Vale lembrar que, anos atrás, exame de DNA mostrou que Daniel Rocha, criado por Glauber, era na verdade filho de Rogério Duarte, o grande artista gráfico, autor do genial cartaz de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”. Aquele em que Corisco, o diabo loiro, brilha como o sol inclemente do sertão nordestino.
Passamos, agora, do registro familiar à obra de Glauber, no caso o filme que abriu o Festival de Brasilia: “Deus e o Diabo”. Passados exatos 50 anos de seu lançamento, o segundo longa glauberiano mostra vitalidade e juventude impressionantes. E foi comovente ver sua cópia restaurada na imensa tela de um Cine Brasília lotado e com excelente qualidade técnica de projeção. E mais emocionante ainda ver uma orquestra de câmara brasiliense apresentando dois dos maiores momentos de sua trilha sonora: a ária cantada da Bachiana número 5, de Villa Lobos, agora na voz de Janete Dornellas, força do canto lírico candango, e a revolucionária “Perseguição”, ou “Se Entrega Corisco”, como se tornou conhecida. O maestro Cláudio Cohen apresentou esta peça como uma composição de Sérgio Ricardo. E, se omitiu o nome do parceiro Glauber, o fez porque “Perseguição” foi apresentada apenas por sua camada melódica. Ou seja, sem os arrebatadores versos em ritmo de cordel, criados por Glauber para narrar a saga do vaqueiro Manoel (Geraldo del Rey, iluminado e numa entrega poucas vezes vista na história do cinema brasileiro), que depois de matar o fazendeiro-patrão e alguns de seus jagunços, procura saída, acompanhado pela mulher Rosa (Yoná Magalhães), junto a Deus (o Beato Sebastião/Lídio Silva) e depois, ao Diabo (Corisco/Othon Bastos, também em desempenho notável). Corisco vai batizar o novo “cangaceiro” com o nome de Satanás. A alegórica trama glauberiana se passa na segunda metade dos anos 1930. No momento em que o filme especifica seu tempo histórico, Corisco conta que Lampião, Maria Bonita e Bando foram massacrados na Gruta de Angico, “três dias atrás”.
Depois de rever o filme em circunstância tão especial, num belo cinema, com a casa lotada, a gente entende porque muitos ficam, ainda hoje, em dúvida quando têm que decidir qual é a obra máxima de Glauber: se DEUS e o DIABO ou TERRA em TRANSE. Difícil escolha, pois estes dois filmes são os momentos máximos da produção do artista que se foi tão cedo, aos 42 anos.
E um adendo final: revendo o filme ontem, me lembrei de prefácio (que virou posfácio tardio) de Jean-Claude Bernardet escrito para livro de WILLS LEAL sobre o cinema nordestino. Bernardet questiona o sentido metafórico do mar, que seria o avenir revolucionário, encontrado por Manoel em sua correria alucinada. Afinal, Antônio das Mortes (Maurício do Valle) acabava de matar Corisco e de ferir Dadá (Sônia do Humildes). Só restavam a Manoel e Rosa sair alucinados em fuga. Rosa caiu pelo caminho. Manoel seguiu em frente… E vê-se o mar revolto. Depois, com o livro na mão (estou em Brasilia e o livro em SP) retomo o assunto.
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