Justiça e vingança marcam novo filme de Marcos Jorge

Marcos Jorge é um diretor que gosta de tramas com um pouco de crueldade. Seu primeiro longa, “Estômago” (2007), surpreendeu a crítica, faturou mais de 50 prêmios no Brasil e mundo afora, e foi eleito por muitos críticos como um dos melhores filmes da década passada. “Mundo Cão” – seu novo filme com previsão de estreia para o primeiro semestre de 2015, com distribuição da Paramount – confirma essa tendência perceptível nos trabalhos anteriores do cineasta, o que deve definir uma marca em sua cinematografia. Desta vez, o suspense é mais forte, e por isso Marcos toma cautelas ao discorrer sobre o enredo à Revista de CINEMA para não entregar lances a serem revelados ao longo da projeção diante do espectador. “Hoje em dia é difícil que o espectador fique ligado durante duas horas. Atravessamos uma época marcada por muita dispersão. Nesse sentido, o suspense é uma ferramenta importante. E através desse gênero falo sobre vários assuntos”, constata.

Em “Mundo Cão”, Marcos Jorge se debruça sobre este tema de justiça e vingança a partir do embate entre dois homens – um funcionário do Departamento de Combate às Zoonoses, que recolhe cachorros abandonados, e o dono do animal capturado pelo primeiro. “Procurei abordar a vingança do cidadão comum num país injusto como o Brasil. A violência está presente na história de forma mais dramática e psicológica do que explícita. Vivemos tentando afastar a violência da nossa porta. Na maior parte das vezes, conseguimos. Mas nem sempre”, observa Marcos, que volta a focar o homem comum, evitando sinais de paternalismo. “Não tenho uma visão idealizada. Eu acho que as pessoas têm livre arbítrio e não são definidas por sua condição social”, declara.

Eutanásia em animais

A história de “Mundo Cão” é ambientada nos anos de 2007 e 2008. Existe uma razão para isto. “Descobrimos que foi aprovada, em São Paulo, em 2008, uma lei que proibia a eutanásia indiscriminada em animais. Até então, os cachorros capturados poderiam sofrer eutanásia após três dias. No filme, um funcionário encarregado de capturar cachorros é chamado para pegar um que se encontra numa escola. Depois de três dias, ocorre a eutanásia. O dono aparece e decide se vingar do funcionário. Apesar de inventada, a história é baseada em diversos casos reais”, explica Marcos, que assinou o roteiro com Lusa Silvestre, dando continuidade à parceria travada no bem-sucedido “Estômago”.

Esse fato influenciou na escolha de São Paulo. “Vejo a cidade – gigantesca e repleta de discrepâncias sociais – como uma metáfora do Brasil”, frisa Marcos, que mora atualmente em São Paulo e visita com constância sua cidade natal, Curitiba. De qualquer modo, como nos outros trabalhos de Marcos Jorge, nem tudo foi determinado de maneira rígida. “Os personagens possuem opiniões bem polêmicas e eu deixo que falem por si mesmos. Há um instante que considero mágico – quando o personagem ganha vida e parece que começa a mandar em você. O roteiro vai mudando para se adaptar aos personagens”, comenta.

O homem cordial brasileiro 

Marcos costuma demorar a fechar o roteiro, algo que tende a acontecer durante a fase de ensaios com os atores. O diretor, inclusive, não abre mão desse estágio. No que diz respeito a “Mundo Cão”, ensaiou durante cerca de quatro semanas e filmou ao longo de cinco semanas e meia. “Os tempos de filmagem nas décadas de 60 e 70 eram maiores. Com o correr dos anos, as equipes aumentaram e o tempo de filmagem diminuiu. Tudo ficou mais caro. O set se tornou apressado. Há, portanto, pouco espaço para ensaiar. Para mim, porém, é essencial. É o momento em que você ainda não está tão pressionado”, assinala o codiretor de “Corpos Celestes”, realizado em Curitiba, em 2009.

Os atores com papéis mais destacados passaram por preparações específicas. Babu Santana recebeu indicações técnicas sobre bateria, instrumento de seu personagem. Ele também ensaiou com cachorros, assim como Lázaro Ramos. Em “Mundo Cão”, Marcos Jorge retoma o vínculo com Babu depois de “Estômago”. “Normalmente, ele é convidado para interpretar personagens violentos, duros. Mas percebo humanidade e intensidade em Babu. O personagem tem alma doce, ligação com música. É bonachão e avesso a encrencas, como o próprio Babu e a maioria dos brasileiros”, realça. Talvez não seja por acaso que o personagem carregue o sobrenome do ator, Santana. “Escalei um ator que pudesse encarnar o homem cordial brasileiro”, resume. Além de Babu e Lázaro, “Mundo Cão” – uma produção da Zencrane Filmes, criada em 2000 por Marcos Jorge e por Claudia da Natividade, em parceria com a Migdal Filmes – conta com as presenças de Adriana Esteves e Milhem Cortaz.

Lázaro Ramos em cena de “Mundo Cão”, uma incursão de Marcos Jorge no inconsciente violento do brasileiro

Ao lado de Jorge Amado

Antes de “Mundo Cão” bater na tela do cinema, o público se deparará com outro trabalho de Marcos Jorge: “O Duelo”, adaptação de “Os Velhos Marinheiros ou O Capitão de Longo Curso”, de Jorge Amado, filmado em 2012 e com previsão de estreia para o final do ano. Mesmo que se trate de um projeto de encomenda – o convite foi feito pela Total Filmes e pela Warner –, o diretor se apropriou do material.

Não houve dificuldade. Leitor apaixonado, Marcos conhecia o original de Amado publicado em 1961, juntamente com a novela “A Morte e a Morte de Quincas Berro D’Água”, e editado à parte de 1976 em diante. Deslocou a história da Bahia e ambientou em indefinido território brasileiro (as filmagens ocorreram nos estados do Rio de Janeiro e de Minas Gerais). “O livro é bastante complexo. Tem uma trama principal, mas várias paralelas. Precisei simplificar e investi na essência da história”, esclarece.

Marcos se refere às narrativas do protagonista, Vasco Moscoso de Aragão, acerca de peripécias mundo afora. “O romance traz à tona as noções de verdade e mentira. Vasco se apresenta como um velho marinheiro, mas pode não ser. Afinal, é um contador. Naturalmente, Jorge Amado se identificava com esse personagem”, sublinha o diretor que, pela primeira vez, escreveu sozinho o roteiro. “Em geral, gosto de criar em dupla. No entanto, senti Jorge Amado ao meu lado”, aposta.

Outro desafio foi lidar com efeitos especiais. Marcos Jorge, contudo, não temeu a dimensão, até certo ponto, grandiosa da produção que reúne Joaquim de Almeida, José Wilker, Patrícia Pillar, Claudia Raia, Milton Gonçalves e Tainá Muller no elenco. “A questão é saber para onde você está indo. O tamanho da produção não altera isto”, garante. Seja como for, Marcos se sente cobrado devido, em boa parte, à ampla repercussão alcançada com “Estômago”. “As cobranças vêm, sobretudo, de mim. Eu ambiciono fazer filmes inteligentes e que encantem o público. Não é fácil”, assume o cineasta, que já cumpriu curiosa travessia profissional. Formado em jornalismo, estudou cinema na Itália (morou cinco anos em Roma e cinco em Milão, onde começou a dirigir) e transitou por Paris e Londres antes de voltar ao Brasil em 2000 e despontar com os curtas-metragens “O Encontro” (2002) e “Infinitamente Maio” (2003). Acumulou experiência em diferentes funções no cinema e por meio da realização de filmes publicitários. Como se pode notar, Marcos Jorge é bem mais que o diretor de “Estômago”.

 

Por Daniel Schenker

One thought on “Justiça e vingança marcam novo filme de Marcos Jorge

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.