Entrevista: Rosana Alcântara
Não foram os filmes, mas sim as leis que aproximaram a carioca Rosana Alcântara do cinema. Antes de chegar à Agência Nacional de Cinema (Ancine), em 2005, Rosana, que é formada em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), havia trabalhado com direitos humanos, direito da mulher e direitos autorais.
Quem a convidou para assumir o cargo de Assessora da Diretoria foi o próprio Manoel Rangel, diretor-presidente da agência. Após dois anos no posto, ela assumiu a chefia de gabinete (2006-2009) e, na sequência, tornou-se superintendente executiva (2009-2013).
Em dezembro de 2012, depois de passar por uma sabatina na Comissão de Educação, Cultura e Esporte do Senado Federal, Rosana foi designada para assumir a vaga do ex-diretor Mário Diamante. Hoje, ao lado de Vera Zaverucha e Roberto Lima, compõe a diretoria colegiada que, sob o comando de Rangel, responde pelos rumos da política audiovisual brasileira.
Dona de um discurso claro e enfático, Rosana tem surpreendido positivamente o setor em suas aparições em seminários e encontros. Nesta entrevista concedida à Revista de CINEMA, a diretora defende a política da Ancine e responde algumas críticas do setor – como a demora na liberação de recursos do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) e a suposta ênfase da agência no cinema dito comercial. Rosana tem 44 anos e é casada com Romário Galvão Maia, ex-secretário de Esportes da prefeitura do Rio de Janeiro (2010-2012).
Revista de CINEMA – Você começou sua trajetória profissional na iniciativa privada. Qual é a principal diferença entre trabalhar como advogada num escritório e trabalhar na Ancine?
Rosana Alcântara – Por mais que eu tivesse uma experiência anterior, a gestão pública sempre nos traz desafios importantes. A advocacia privada tem o olhar voltado para o interesse individual, independentemente de quem seja o agente econômico em questão, e é muito focada numa contenção específica, ou seja, nos interesses postos naquele momento. Na gestão pública, o esforço é para que o olhar se volte para o desenvolvimento comum do setor no qual você está atuando. A forma e os princípios são muito diferentes. Qual a frustração de se trabalhar na gestão pública? Nem sempre você tem a estrutura material e os meios necessários para realizar o que deseja – embora eu ache que, na Ancine, a gente teve êxito também nesse aspecto.
Revista de CINEMA – Qual foi, a seu ver, o grande feito da Ancine ao longo da última década?
Rosana Alcântara – O fato de termos trabalhado para a institucionalização mais sólida do audiovisual. O setor não teria avançado como avançou se não fosse essa institucionalidade. O Fundo Setorial do Audiovisual e a lei do SeAC [Lei de Serviço de Acesso Condicionado, ou Lei 12.485, conhecida como Lei da TV Paga] são marcos do pacto firmado entre governo e sociedade. Esses são legados e conquistas que nos permitem pensar adiante. Estamos agora na fase posterior à construção desse arcabouço institucional. Isso nos permite falar daqui pra frente, ou seja, já temos uma agência que cuida de fomento, regulação e fiscalização e um conjunto de políticas que nos oferecem uma variedade de propostas e opções. Desenhar uma política e implementá-la requer uma série de instrumentos e procedimentos administrativos que, no caso do audiovisual, simplesmente não existiam.
Revista de CINEMA – De fato, o espaço temporal entre a extinção da Embrafilme e a criação da Ancine [em 2001] foi grande…
Rosana Alcântara – Muito grande. E as coisas, nesse período [de 12 anos], aconteceram em órgãos esparsos, ora no Mdic [Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior], ora na Secretária do Audiovisual, ora na Casa Civil. A Ancine, quando surgiu, não recebeu um legado de memórias do setor, de sistemas de avaliação, de médias e séries históricas que pudessem servir de referência. A Ancine teve de se construir. Claro que, nesse processo, houve pessoas com grande experiência, como o Gustavo Dahl [primeiro presidente da agência], que criaram as bases para que, nos ciclos seguintes, se pudesse avançar em direção à elaboração e aprovação do marco regulatório. Mas a primeira turma de especialistas em audiovisual, contratados por concurso, só chegaria aqui em setembro 2006.
Revista de CINEMA – Por que você, apesar disso, decidiu largar a iniciativa privada e aceitar o convite?
Rosana Alcântara – Quando veio o convite, eu tinha um pé no escritório, mas trabalhava também com direitos humanos e achei muito atrativa a possibilidade de contribuir para o desenvolvimento de um setor que tinha grande potencial, mas onde havia muito a ser feito. É desafiador transformar aquilo que você estuda e teoriza em algo mais potente e real. Na minha carreira, sempre procurei ter um olhar crítico em relação ao funcionamento da sociedade. E trabalhar com cultura é estimulante. É inegável que a cultura tem um papel fundamental no desenvolvimento das feições e do jeito de ser de um país.
Revista de CINEMA – Depois de quase dez anos na Ancine, qual é a sua sensação? Foi possível fazer o que você imaginava?
Rosana Alcântara – Vir todos os dias para a agência ou pegar um voo e viajar pela Ancine é algo prazeroso para mim. Tenho a sensação de que percorremos um caminho importante, que acumulamos realizações e que, ao mesmo tempo, temos muitos desafios a enfrentar. Erguemos um edifício normativo, passamos de uma média de 30 filmes por ano em 2002 para 129 filmes lançados em 2013. Por trás desses números, há um parque de produtoras, diversos talentos e modelos de negócios. Temos mais de 2 mil agentes econômicos registrados na Ancine. O desenvolvimento do setor não teria sido possível sem um órgão por trás. Nos últimos anos, o audiovisual cresceu acima do PIB total do país e, hoje, responde por 0,46% do PIB nacional. Isso sem falar no peso simbólico. Claro que podemos, e precisamos, melhorar em várias coisas, mas me parece inegável que o audiovisual conseguiu colocar sua digital no desenvolvimento do país. Isso é importante para quem está na gestão pública, mas também para quem está na atividade privada e assume os riscos de trabalhar em uma indústria que é feita de protótipos e tem custos altos – apesar de acharmos que o setor está um pouco inflacionado, todos sabemos que fazer audiovisual é caro. Hoje, estão dados os caminhos para que essas empresas possam acessar recursos significativos, e um jovem de 20 anos pode pensar em viver de cinema, algo que, na minha geração, era difícil. Esse é um legado que pertence a toda a sociedade. As pessoas voltaram a ter o prazer de ir ao cinema ver filmes brasileiros, rir de piadas brasileiras e ver paisagens brasileiras. São conquistas e legados dos quais cabe a todos nós cuidar.
Revista de CINEMA – Você falou que, a partir desses marcos institucionais, o setor pode olhar pra frente. Você acha que, independentemente de governos, não há risco de retrocesso?
Rosana Alcântara – Eu assinalo que a institucionalização é fundamental para que se garanta a continuidade no desenvolvimento do setor. Me parece também que a sociedade e o mercado estão maduros o bastante para perceber que um país desenvolvido não se constrói sem um audiovisual forte. Mas isso só se faz com muitos recursos e com um pacto entre Estado e iniciativa privada.
Revista de CINEMA – Apesar do anúncio [em 2013] de que seriam disponibilizados R$ 400 milhões via FSA, o setor tem se queixado da demora e do excesso de burocracia para a liberação do dinheiro. Isso vai mudar ou faz parte do rito de liberação da verba pública mesmo?
Rosana Alcântara – Temos nos esforçado para diminuir os prazos para análises e contratos, e acho que, a partir do ano que vem, vamos conseguir fazer isso. Nosso desafio tem sido desenvolver sistemas de automação que nos ajude a dar conta do volume de montante de recursos e produções. Temos desenvolvido módulos de TI que possibilitem os uploads de documentos e pareceres. Além disso, recebemos, este ano, 98 novos servidores e reorganizamos internamente a agência, criando uma secretaria de políticas de financiamento. Esperamos, com isso, melhorar os prazos. Mas o fato é que tivemos de nos estruturar para atender a uma demanda nova, gerada pela Lei 12.485 [que estipula cotas de produção nacional independente para a TV paga]. Essa lei transformou a demanda potencial num demanda real. Para você ter uma ideia, nós tivemos, em 2012, 1.059 obras licenciadas para a TV por assinatura; em 2013, foram 3.205 obras. Em 2002, tivemos 17 títulos. É natural que, tanto iniciativa privada quanto agente público, precisem se ajustar a esse novo cenário.
Revista de CINEMA – Há também certa expectativa em relação à continuidade de todos os editais do FSA.
Rosana Alcântara – Construir um instrumento como o FSA é tarefa desafiante para a Ancine, para o MinC, para o Estado como um todo, enfim. No fim do ano passado, tínhamos lançado dez editais e, este ano, em função de algumas análises, somamos a eles alguns novos. Entre eles, estão o Prodav 03, voltado à formação de núcleos criativos, que nasce do nosso entendimento de que, no longo prazo, é importante que os produtores se qualifiquem para entregar produtos de qualidade ao consumidor. Essa linha teve 200 inscritos, dos quais 27 foram premiados. Já o Prodav 04, voltado ao desenvolvimento de projetos em laboratórios, teve 72 inscritos; o Prodav 05, que conta com recursos para investimento em desenvolvimento de projetos de obras e formatos, 407; e o Prodecine 05, feito para atender a demanda de projetos de relevância artística [com propostas de linguagem inovadora], 198. O que notamos, neste momento, é que todo mundo se inscreve para tudo. É natural que, com o aumento de recursos, o mercado passe pela fase de acomodação e exista certa ansiedade em relação à continuidade das linhas. Mas o produtor ainda deve entender que não precisa bater em todas as portas nem correr para inscrever o projeto, porque os editais serão lançados em fluxo contínuo. Temos, além disso, editais sendo lançados em mais de 20 Estados e municípios, em parceria com as secretarias de cultura locais.
Revista de CINEMA – Você fala na diversidade de ações, e nos vários tipos de cinema que têm sido atendidos, mas, no mercado, existe a sensação – verbalizada, inclusive, nos programas de cultura de candidatos à Presidência – de que a Ancine tem privilegiado o cinema comercial em detrimento do cinema autoral. Como se explica isso?
Rosana Alcântara – A pergunta que a gente se faz é por que, diante de uma produção vasta e diversa, existe essa sensação de que as políticas públicas estão voltadas ao chamado cinema comercial. Se você vê os filmes exibidos nos festivais de Paulínia, Gramado, Brasília ou aqui no Rio, você vê que tem muita coisa rolando. Me parece que o cerne da discussão é que o FSA trouxe uma mudança de mentalidade muito importante: a produção, antes lastreada só nos incentivos, passou a ter também essa outra fonte de recursos que, ao contrário do que acontece com o incentivo, prevê a divisão de riscos e resultados. Qual é a lógica do FSA? Se o filme der resultados, parte disso deve retornar para o FSA. O capital retornado permite, inclusive, que a Ancine tenha argumentos para, nos debates internos do governo, mobilizar mais recursos. Mas nem todo filme tem foco no retorno financeiro e, até por isso, temos pensado em diferentes mecanismos para diferentes obras. No fim de setembro, foram lançadas, pela SAv, duas linhas de financiamento para documentários e filmes de baixo orçamento. Outra vertente importante é a das coproduções, que contempla filmes que se comunicam com um circuito internacional. Por isso tudo, eu concluo que essas críticas – que, a meu ver, têm diminuído – são fruto da mentalidade de que os investimentos em cinema deviam ser todos a fundo perdido. E, como eu disse, a lógica do FSA é outra: em 2013, os filmes lançados com investimentos do FSA responderam por 60% da bilheteria nacional.
Revista de CINEMA – Quanto, do montante investido, já retornou para o fundo?
Rosana Alcântara – O retorno ainda não é expressivo por causa dos prazos e também por causa da divisão entre distribuidores, exibidores etc., que faz com que o retorno na primeira janela [a sala de cinema] seja pingado. Mas o fundo tem, até aqui, uma taxa de retorno de cerca de 40%.
Revista de CINEMA – Voltando para o cinema, especificamente, gostaria que você falasse um pouco mais sobre o mercado exibidor. Sabemos que o filme brasileiro enfrenta dificuldades no circuito, predominantemente ocupado pelos blockbusters que, às vezes, estreiam em quase todas as salas de um só complexo. A Ancine estuda alguma nova regulação para esse setor?
Rosana Alcântara – O mercado exibidor tem recebido forte atenção da Ancine nos últimos anos, desde o PAR de exibição [primeira linha em 2005], até o decreto que regulamentou o Recine [Regime Especial de Tributação para o Desenvolvimento da Atividade de Exibição Cinematográfica] e reduziu em 20% o custo de importação de projetores. No ano passado, para lidar com a digitalização, abrimos linhas de crédito com o BNDES que somaram R$ 146 milhões. Montamos também uma câmara técnica, que está concluindo seus trabalhos, na tentativa de aproximar visões e produzir consensos sobre questões importantes desse mercado. A expectativa é que, até o fim do ano, tenhamos 80% do parque digitalizado. Temos um conjunto de políticas pensadas para lidar com os grupos grandes, médios e menores para que, nesse processo de mudança para o digital, não haja percalços. É importante que, nessa transição, os pequenos lançamentos não sejam prejudicados e que a política de desenvolvimento do filme brasileiro se mantenha. Nosso trabalho é tentar fazer com que desequilíbrios possam ser ajustados e que formas abusivas não dominem – mas sempre buscando pactos e consenso. Se necessário, a Ancine terá ações específicas na área regulatória, mas nosso papel é facilitar o diálogo. Temos observado a questão das taxas para pequenos lançamentos, os grandes lançamentos por satélite e estamos trabalhando também para que os dados de bilheteria sejam disponibilizados pelo setor.
Revista de CINEMA – O parque exibidor cresceu muito nos últimos anos [passando de 1,6 mil salas, em 2002, para 2,8 mil, este ano], mas há quem veja limites para a continuidade do crescimento. Você acha que a expansão seguirá no mesmo ritmo?
Rosana Alcântara – Achamos que temos espaço para mais cinemas, sim, principalmente nas cidades médias. Estamos tentando desenvolver políticas de atração para o setor, e mantemos o programa Cinema Perto de Você. Temos, por exemplo, trabalhado com os Estados buscando estimular a licitação de terrenos públicos para grupos que queiram atuar na exibição em cidades com até 100 mil habitantes que não têm uma única sala. Nosso mercado tem uma alta capilaridade e, ao contrário de outros países, onde esse é um negócio muito concentrado, o Brasil soma centenas de diferentes grupos de exibição. Ainda há muito para onde crescer.
Revista de CINEMA – Como você definiria o atual momento do audiovisual brasileiro?
Rosana Alcântara – O [programa] Brasil de Todas as Telas [anunciado por Dilma Rousseff em julho deste ano] e o Plano de Diretrizes e Metas para o Audiovisual (PDM) são instrumentos e balizadores muito importantes. Montamos esse plano e esperamos, até 2020, cumprir as metas e ter os retornos ali previstos. Este é um momento significativo do audiovisual porque temos condições de cumprir as metas ousadas que nos impusemos. É, também, um momento de muitos ajustes, de refino da operação. O audiovisual brasileiro tem crescido, avançado e vive momento de maturação.
Por Ana Paula Sousa