O cinema como ilha
Lírio Ferreira não esquece uma história que viveu quando era estudante de jornalismo na Federal de Pernambuco. Era colega de Paulo Caldas, que na época já dirigia seus primeiros curtas – na mesma época, Cláudio Assis estudava economia na universidade, e Marcelo Gomes e Hilton Lacerda estudavam na Católica. Ele, Paulo e uma turma de amigos foram brincar de mímica de filmes e ficaram em grupos opostos.
Entre um filme de Costa-Gavras e outro de Ruy Guerra, Lírio deu uma surra no amigo: 34 a 2. “Eu brincava: ‘rapaz, mas tu é que é o cinéfilo e eu que ganho de lavada?!’. Foi assim que o cinema entrou em minha vida”. Logo, ele se tornava assistente de direção nos curtas de Caldas e Assis e, em 1997, ele e Caldas dirigiam seu primeiro longa, “Baile Perfumado”, um marco da retomada do cinema brasileiro.
Dezoito anos depois, Lírio lança seu terceiro longa de ficção, “Sangue Azul”, um projeto no qual alia uma memória e um sonho. A memória é a do circo, das figuras que marcaram sua infância quando ia ao Cais do Apolo, no Recife, ver a trupe de Orlando Orfei e o Circo Garcia: o homem-bala, o globo da morte, os palhaços e ilusionistas. O sonho (ou melhor seria dizer o mito) é Fernando de Noronha, arquipélago que ele gosta de definir como a meio caminho entre o Brasil e a África. “Uma ilha que já foi ocupada por franceses, holandeses, corsários de todo tipo. Noronha já foi presídio e ainda é paraíso. E além de tudo é uma ilha vulcânica”, diz. Desde adolescente, Lírio tinha o sonho de surfar na ilha, que fica a uma hora de voo do Recife. Só teve a chance de conhecê-la há sete anos, quando ele e os roteiristas Fellipe Barbosa e Sérgio Oliveira foram lá pela primeira vez para começar a escrever o roteiro.
Uma ilha em outra
“Sangue Azul” nasce, então, de uma imagem-síntese na cabeça de Lírio: uma ilha dentro de outra ilha. Uma delas é fixa. A outra, a ilha que se desloca, é a própria ideia do circo. Mais do que qualquer outro cineasta brasileiro hoje, sua relação com a geografia dos lugares define o seu cinema e dá corpo a seus filmes. Em “Baile Perfumado”, a panorâmica do sertão do cangaço que abre o filme, para sempre marcada na memória pela guitarra de Chico Science & Nação Zumbi. Em “Árido Movie”, a imersão no Vale do Catimbau, entre o agreste e o sertão de Pernambuco. Agora, o que ele define como um “filme aquático-solar”, na ilha mais bonita do país.
Na história, Zolah (Daniel de Oliveira) é o homem-bala de um circo que retorna à sua ilha natal vinte anos depois de sua partida. A mãe (Sandra Corveloni) o entregou ao dono da trupe (Paulo César Peréio), porque o menino desenvolvia um estranho amor pela irmã, Raquel (Caroline Abras). Como sempre, nos filmes de Lírio, a geografia conta tanto ou mais que a trama; os grandes eventos que mudam o destino dos personagens se passam fora da tela; e os coadjuvantes não estão ali para “empurrar a ação pra frente”, como no cinema clássico americano, mas para criar um congraçamento estético, uma festa para os olhos que nasce da amizade entre diretor e elenco. Prova maior é a bela sequência em que todos os atores dançam com a cirandeira Lia de Itamaracá, de 71 anos, lenda viva da cultura pernambucana.
“Liberdade e cinema se confundem muito na minha cabeça. Eu sempre soube que ou meu cinema seria diferente ou preferiria abrir uma pousada na Praia dos Carneiros”, brinca Lírio, que se declara “completamente apaixonado” por seus amigos. “O Peréio e o Matheus [Nachtergaele], por exemplo, sempre voltam para os meus filmes. E depois destas filmagens, falo com a Sandra quase todo mês”.
Amor e água
Para o deslumbramento de “Sangue Azul”, a fotografia contou mais que nos longas anteriores. Para o desafio, ele convidou Mauro Pinheiro Jr., de “Mutum” e “Cinema, Aspirinas e Urubus”, com quem havia trabalhado em alguns videoclipes. Com Mauro, ele elaborou a ideia de abrir o filme num preto-e-branco suntuoso que entrega aos poucos o filme para as cores e amplia a paisagem. “A gente discutiu muito uma certa ideia de que a beleza em excesso rapidamente enjoa, cansa, se torna óbvia”, explica.
Uma referência ao reverso foi o russo “Ivan, o Terrível” (1945), de Sergei Eisenstein, filme em preto-e-branco cujos 15 minutos finais foram filmados a cores. O maior desafio de Mauro foram as imagens subaquáticas – algumas das cenas mais belas do amor entre os irmãos acontecem debaixo d’água, num clima onírico que remete a “A Lagoa Azul” (1980). Ele e sua equipe fizeram curso de mergulho e passaram a estudar como o som e a luz se propagam embaixo da água, e como as cores captadas pela câmera mudam de acordo com a profundidade.
Na produção, outra parceria inédita: o paulista Renato Ciasca, colega de Beto Brant na Drama Filmes, empresa pela qual produziram títulos como “O Invasor” e “Crime Delicado”. Em Paulínia, Lírio brincou chamando a parceria Recife-São Paulo de “oxe, meu”.
Metabolismo lento
A constância das amizades contrasta com a raridade com que Lírio se aventura nos longas de ficção. Em 18 anos, desde seu longa de estreia, foram apenas três. Nesse tempo, dois documentários sobre música muito elogiados pela crítica: “Cartola – Música para os Olhos” (2007), em parceria com Hilton Lacerda, e “O Homem que Engarrafava Nuvens” (2009), sobre Humberto Teixeira. Só o roteiro de “Sangue Azul” levou quatro anos até a sua versão final. “Não tenho disciplina para isso. É uma coisa de gestação mesmo. Até queria que o meu metabolismo fosse um pouco mais rápido, mas não é.” A “ruminação” continua mesmo depois do filme pronto. Depois da primeira sessão em Paulínia, Lírio decidiu tirar uma sequência de “Sangue Azul” e incluir três novas, para reforçar o desejo de Zolah reencontrar a irmã e enfatizar sua decadência final. “99% dos produtores querem enxugar o filme, e eu ali insistindo pra aumentar um pouco mais”, brinca.
O fascínio pela obra de Ruy Guerra o levou a convidar o cineasta, um dos grandes nomes do Cinema Novo, a uma participação especial em “Sangue Azul”. No fim dos anos 80, Ruy passou pelo Recife durante a produção de “Kuarup” e Lírio quase conseguiu (por pouco) a vaga de terceiro assistente de direção do mestre. Surgiu então a ideia de abrir o filme com o personagem de Peréio e fechá-lo com o de Ruy, numa homenagem aos 50 anos de “Os Fuzis”. Ao final, Ruy mexe na lente da câmera, como que indagando o espectador. “Este é provavelmente meu último filme em película. O cinema está vivendo esse momento de transição. Algumas vezes se sentenciou a sua morte, mas ele de alguma forma se oxigenou. Precisa se reinventar ainda mais”, professa.
Quando o assunto são as limitações e desafios do cinema brasileiro hoje, Lírio pensa pouco na produção (“talvez falte projetar um pouco mais nossas distopias”) e logo centra seu foco nas deficiências de distribuição e exibição. “Antigamente, os cinemas estavam em todos os bairros, eram para todas as classes. Hoje, só quem vai é o jovem de 10 a 16 anos. Com isso, várias gerações se viciaram numa maneira fácil e medíocre de dramaturgia. Quando você lança mal um filme como ‘Amélia’ [de Ana Carolina], ‘Serras da Desordem’ [de Andrea Tonacci] ou ‘O Veneno da Madrugada’ [de Ruy Guerra], não dá”, opina. Com “Sangue Azul”, algo semelhante ocorre: enquanto a recepção no exterior é calorosa – o filme abriu a seção Panorama no último Festival de Berlim, em fevereiro –, no Brasil, o filme, exibido pela primeira vez em julho de 2014 no Festival de Paulínia, teve sua estreia adiada de abril para junho de 2015.
Ninguém desconfiaria que seu próximo projeto é uma espécie de sequência do seu segundo longa. Dez anos depois de “Árido Movie”, “Aquamovie” será um filme intimista, com poucos atores, sobre as mudanças nas paisagens e nas pessoas com o projeto de transposição do Rio São Francisco. Peréio retoma seu personagem como um homem que vê seu sonho de infância desmoronar com a aceleração do progresso e o avanço do projeto. Sua meta é chegar a um filme que equilibre de maneira orgânica a ficção e o documentário – Lírio cita como referências o brasileiro “Iracema, uma Transa Amazônica” (1975), não por acaso estrelado por Peréio, e o cinema do chinês Jia Zhang-ke.
Por Thiago Stivaletti
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