Gramado mostra a vida de Mussum, dos Originais do Samba aos Trapalhões, em “filmis” de grande apelo popular

Foto: Equipe do longa-metragem “Mussum, o Filmis” © Cleiton Thiele/Agência Pressphoto

Por Maria do Rosário Caetano, de Gramado-RS

Ailton Graça encarna o sambista e humorista Antônio Carlos Bernardes Gomes, o Mussum, com tamanha paixão, que sua premiação com o Kikito de melhor ator é dada como favas contadas.

O longa por ele protagonizado – “Mussum, o Filmis”, de Silvio Guindane – encerrou a mostra competitiva de obras ficcionais do Festival de Gramado. Claro que pode pintar uma zebra, pois decisões de júri são, às vezes, idiossincráticas. Mas o ator paulistano, de 58 anos, faz sua estreia no festival gaúcho com brilho notável. Ele contou, no debate do filme, que sua personagem foi construída “ao longo de nove anos”. E que vê seu protagonista não como intérprete de uma cinebiografia, mas de “uma dramédia”, soma de lágrimas e risos.

A produtora Camisa Listrada, de André Carrera, e o então diretor convidado (o mago da comédia comercial Roberto Santucci), o convocaram a dar vida a Mussum. Portanto, ele se envolveu com o “Filmis”, desde seu nascedouro, quase uma década atrás.

Ailton começou, então, a preparar-se, mas a produção foi sendo adiada e sofrendo transformações. Ou, na hora agá, a TV Globo, que o mantinha sob contrato, o convocava para o elenco de uma nova telenovela.

As lutas identitárias iam se afirmando, cada vez com maior intensidade, e os produtores – com a concordância do próprio Santucci – concluíram que um diretor preto deveria comandar o filme. Convidaram, então, o ator e diretor teatral Silvio Guindane, de 39 anos, para a função.

Cria do cinema, desde sua estreia aos 12 anos em “Como Nascem os Anjos” (Murilo Salles, 1996), Guindane conta com sólida carreira dramática. Brilhou em elencos diversos (destaque para os filmes “De Passagem”, “Bróder” e “Como é Cruel Viver Assim”). E tornou-se, primeiro, diretor de teatro, depois de séries de TV.

Como diretor de cinema, o descolado “Japa” de “Como Nascem os Anjos” assina já três projetos, sendo “Mussum” o primeiro a estrear num festival. Sua data de lançamento está agendada para dois de novembro, com grande campanha da distribuidora Downtown, de Bruno Wainer.

Gramado recebeu bem a “dramédia” de Silvio Guindane, embora a equipe, composta majoritariamente de atores black, tenha se excedido no palco, com imensos discursos, marcados por redundância retórica há tempos não vista no Palácio dos Festivais.

Guindane e Ailton Graça falaram mais que o homem da cobra. Por sorte, dose salutar de humor e leveza veio da comediante Cacau Protásio, vestida como se estivesse numa noite do Oscar hollywoodiano. Com presença de espírito, ela avisou que a plateia a veria no maior desafio de sua vida – o papel dramático de Dona Malvina, mãe do menino e, depois, jovem Antônio Carlos, o futuro Mussum.

“Vocês sabem que eu sou barraqueira, falo alto, grito” – admitiu com rara franqueza. Mas nesse filme “eu tento mostrar que posso fazer um personagem dramático. Vamos ver se vou convencê-los”.

A “barraqueira” deixou seu histrionismo de lado e convenceu como Dona Malvina. Conseguiu contracenar – em tom menor e envolvente – com o filho criança (Thawan Bandeira) e jovem, metido com samba, malemolência humorística e farda da Aeronáutica (Yuri Marçal).

Na terceira idade, Dona Malvina é interpretada por Neusa Borges, que constrói com o Mussum de Ailton Graça, cena de grande força dramática, encerrada em registro cômico. Doente na cama, na mansão do filho, a velha senhora recebe o carinho do marmanjo. Relembram fatos cotidianos e ela pede que ele cante uma música para ela. Mussum escolhe “Esperanças Perdidas”, de Delcio Carvalho e Adeilton Alves, um dos maiores sucessos dos Originais do Samba. Dona Malvina protesta: “esta não, é muito triste, cante a da “Peladona” (Estou apaixonado/ apaixonado estou/ pela dona do primeiro andar…”). O filho canta e os dois caem na risada.

O sambista, que se tornaria nacionalmente conhecido como integrante do quarteto “Os Trapalhões”, tem sua história contada da infância até sua morte precoce (aos 53 anos, quando passou por cirurgia de transplante de coração). Mas o “Filmis” não termina com sua despedida da vida. E sim com final edificante e excessivamente didático.

Este é seu ponto fraco. Ao assumir caráter excessivamente pedagógico, direção e roteiro abandonam o humor e a ginga de seu personagem, um “palhaço” capaz de aprontar as maiores com amigos próximos. Vide a “peça” que ele prega no futuro trapalhão Dedé Santana, quando este o visita para convencê-lo a deixar as excursões dos Originais do Samba e tornar-se contratado fixo de uma rede de TV.

No debate, Guindane assegurou que o desfecho – que mostra Mussum, ao lado da esposa Neila e de Alcione, catequizando os Meninos da Mangueira – nasceu de decisão dele. Que desejava passar para os espectadores, em especial crianças negras, mensagem que muitas delas não podem ouvir de pais (que muitos não têm), ou mães, muito ocupadas em empregos precários.

Ailton Graça defendeu, ainda com maior veemência, o final pedagógico. Argumentou que “brancos podem desfrutar das obras de Machado, Lima Barreto, Carolina de Jesus e Djamila Ribeiro”. Já crianças pretas, na maioria dos casos, não podem”. Por isso, o filme fez de Mussum, no diálogo com os Meninos da Mangueira, “uma espécie de Abdias Nascimento”. Para concluir: “vocês tomam o discurso de Mussum como didático, para nós ele é filosófico”.

Mussunzinho, filho do sambista-humorista, entrou no debate: “meu pai teve formação militar (chegou quase a sargento da Aeronáutica) e fazia questão de educar os filhos com disciplina e boas mensagens, como as que recebera da mãe e também de seus superiores no quartel. Estou muito orgulhoso desse filme, que mostrarei a meu filho de três anos, tão logo ele cresça”.

Fora o final edificante, “Mussum, o Filmis”constrói-se com narrativa clássica, ótimo ritmo (em todos os seus 116 minutos) e bons desempenhos de atores veteranos e novatos. E olhe que há personagens pra dar com pau. Além dos músicos dos Originais do Samba, liderados por Bigode, desfilam pela cinebiografia importantes nomes da música, showbiz e TV brasileiros: Chico Anísio, Grande Otelo (que deu a Mussum o apelido vindo do nome de peixe escorregadio), Carlos Machado, Boni, Wilton Franco, diretor dos Trapalhões, Cartola, Elza Soares, Jorge Ben, Alcione, Renato Aragão, Dedé Santana, Zacarias, etc. e etc.

O roteirista Paulo Cursino, a partir da biografia “Mussum, uma História de Samba e Humor”, de Juliano Barreto, construiu sua narrativa sedimentada em dois pilares – o Mussum sambista e o Mussum humorista. E, no pano de fundo, a relação mãe-filho. Se “2 Filhos de Francisco” (Bruno Silveira, 2005) fixou-se na relação pai-filhos, agora é a vez de uma Mãe Coragem, analfabeta e faxineira, que criou o filho sob carinhosa vigilância. Queria vê-lo longe do crime e dedicado aos estudos, de forma que pudesse melhorar de vida.

Sem desperdícios, o “Filmis” evita custosas locações no México (a cidade de Acapulco é um dos cenários de shows dos Originais do Samba) e em São Paulo, onde “está a grana de verdade”. O balneário mexicano e a capital econômica do país aparecem em imagens documentais, de época claro! Mussum nasceu em 1941 e morreu em 1994. Iniciou-se nos Originais do Samba na década de 1960. O grupo durou 19 anos. A partir de 1979, Os Trapalhões e os quase 40 filmes, na média de dois por ano, produzidos por Renato Aragão, impediam o sambista de excursionar com sua trupe musical.

A trilha sonora é vibrante, sacudidíssima. Tem Elza Soares, Jorge Ben, Delcio Carvalho e os hits que alavancaram a carreira dos Originais do Samba. Sambas de imenso apelo, claro, e as músicas humorísticas, como a da “Peladona do Primeiro Andar”. Só faltaram o baiano Ederaldo Gentil (1947-2012) e sua magnífica “O Ouro e a Madeira”, que explodiu nacionalmente com a trupe de sambistas comandado por Bigode e Mussum. Com ela na play-list, o tom mais denso da “dramédia”, tão evocada por Ailton Graça, ganharia excelente reforço.

Não falta nada ao lado cômico do filme. Nele estão algumas das melhores esquetes dos Trapalhões (Guindane eliminou aquelas condenadas por racismo e outros preconceitos). E destacam-se hilárias e circenses paródias de videoclipes de grandes momentos da MPB. Caso de “Morena de Angola”, de Chico Buarque, parodiada com Mussum, vestido de baiana como Clara Nunes. E de mais um hit buarqueano (“Terezinha”) com Renato Aragão incorporando Maria Bethânia, sem esquecer os longos cabelos anelados da diva baiana.

Despretensioso, “Mussum, o Filmis”, tem tudo para dialogar com o grande público. Mesmo com seu final excessivamente didático e edificante.

Equipe do longa-metragem documental “Anhangabaú” © Cleiton Thiele/Agência Pressphoto

Homenagem a Zé Celso – O quarto filme da competição de longas documentais – “Anhangabaú”, de Lufe Bollini – mergulha numa São Paulo convulsionada por grupos marginalizadas pelo poder da grana e da especulação imobiliária.

De recorte performático, “Anhangabaú” soma a luta do Teatro Oficina Uzyna Uzona (pela transformação da região do Bixiga, onde se insere, em parque ecológico) à defesa de território ancestral empreendida pela Comunidade Indígena Guarani Mbya.

E o faz com intervenções (ocupações) artísticas. O resultado é pulsante e vivo, recheado de cantos, danças e atos de rebeldia. A fotografia de Rafael Avancini capta momentos de intensa beleza. A multifacetada trilha musical (com cantos dos Guarani, dos integrantes do Oficina, de Jonnata Dol e Garotos Solventes, Teto Preto, Linn da Quebrada, Groupies do Papa e Lúcifer Cabra) realça a potência das imagens.

Dois curtas encerram a competição na categoria: o indígena “Mãri Hi – A Árvore do Sonho”, do realizador (Yanomani) Morzanirl Iramari, e “Cama Vazia”, de Fábio Rogério e Jean-Claude Bernardet.

“A Árvore do Sonho”, que representa Roraima, inspira-se na cosmogonia Yanomani. Quando brotam as flores da árvore Mãri, os sonhos do povo originário da Amazônia brasileira dão livre curso a seu universo onírico. Um xamã distribuirá ensinamentos, pelo caminho da poesia, das ricas experiências do povo Yanamami.

“Cama Vazia” é um sintético registro documental (pouco mais de seis minutos) de internação do professor, escritor e ator Jean-Claude Bernardet num quarto hospitalar. O próprio interno, em parceria com Fábio Rogério, dirige o filme e vocifera, com sua franqueza desconsertante, contra a indústria da vida, que tenta prolongar a existência de pessoas muito doentes, de olho nos lucros gerados pelo capital hospitalar-farmacêutico.

Visto de frauda geriátrica, com os braços furados por agulhas, rosto cansado, corpo magérrimo – e identificado na ficha médica como “idoso frágil”, portanto sob intensos cuidados – Bernardet não se dobra. Sua atrevida voz (no sintético) filme ampliará sua defesa da morte assistida.

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