Drama social da marginalidade juvenil

O cinema brasileiro do último decênio tem, frequentemente, gerado discussões em torno do binômio valor artístico e sucesso de público. Em recente artigo para o livro “O Cinema Brasileiro Hoje”, que reúne ensaios de importantes críticos em todo o país, o crítico carioca Nelson Hoineff, ao tratar da estética televisiva que molda parte de nossa atual filmografia, simplesmente, ignora produções que passaram pelo circuito comercial como um relâmpago em salas vazias. Para ele, vivemos uma crise criativa, porque as maiores bilheterias, praticamente, resumem-se às escrachadas comédias globais.

Com essa forma de abordar a questão, Hoineff condena ao ostracismo – ao destitui-la de valor artístico – boa parte da filmografia recente, cuja recepção de público foi tímida, restrita a um número minguado de espectadores. Esse é o caso de “De Menor” (2012), filme de estreia da paulista Caru Alves de Souza. Premiado ao lado de “O Lobo Atrás da Porta”, no Festival do Rio, em 2013, com carreira internacional ao passar em festivais, como San Sebastián, na Espanha, Toulouse e Biarritz, na França, e Havana, em Cuba, foi lançado em DVD distribuído pela Bretz Filmes.

A seguir a linha argumentativa de Hoineff, um filme irrelevante, uma mostra de nossa crise criativa, pois, segundo o “Boletim Filme B”, pelas bilheterias não passaram mais de 10 mil espectadores para vê-lo. Mas, esse é o ponto a ser posto em questão: irrelevante para o público, “De Menor” merece ir para o ostracismo por que destituído de valor artístico? Há variáveis e variáveis que precisam ser pesadas na balança. Se “De Menor” não é uma obra que assinala um ponto de inflexão em nossa filmografia, se não é um marco no cinema brasileiro contemporâneo, tampouco é uma obra a ser relegada ao esquecimento. Ou seja, não se trata de mais um exemplar de nossa crise criativa, como sugeriria Hoineff se se dispusesse a escrever sobre esse filme.

Caru Alves, de fato, fez um filme simples, minimalista, no qual a trama gravita em torno de um problema moral complexo: a isenção numa decisão penal que envolve um parente próximo – no caso, um irmão. A protagonista, Helena, é uma defensora pública de menores carentes que se vê às voltas com a defesa do próprio irmão, acusado de tentar assaltar uma casa e ferir o morador com um tiro de revólver. Num primeiro momento, “De Menor” pode ser visto como mais um filme da recente filmografia brasileira que aborda o problema da ociosidade na periferia dos grandes centros urbanos, da marginalidade juvenil e com ela a maneira pela qual os jovens são seduzidos para o mundo das drogas e do crime.

A toada do filme segue esse script, como se pode ver nas cenas com foco nas audiências de tribunal. Nelas, o menor infrator se defronta com o juiz, o promotor e a advogada de defesa, Helena. Nessas cenas, uma espécie de radiografia em miniatura do problema do menor num país que convive com a situação como se fosse possível pô-la embaixo do tapete, sem que se carregue sentimento de culpa. De modo sutil, sem apelo ou maniqueísmo, Caru Alves exibe o drama social da marginalidade juvenil. Mas, mais que isso, ela lembra com seu filme que não se deve virar as costas para esse problema por ser do Outro, porque ele pode estar em nossa própria casa.

O que se tem, então, por trás de um filme simples, despretensioso, que se pode ver como mais um no ciclo de produções nacionais que aborda o mundo das drogas e da violência na periferia dos grandes centros urbanos, é uma obra complexa ao tocar num ponto delicado de nossa sociedade. De um lado, Caru Alves põe em cena o Outro, o menor carente abandonado e estigmatizado, e no mesmo registro também, o Mesmo, o irmão que caminhou para o crime. Mas, justamente por isso, a questão de fundo mais difícil: a irmã, diante da justiça e das consequências do confinamento, não é isenta na defesa do irmão. A defesa pública do irmão, contudo, não a exime de sentimento de culpa.

Pela maneira como aborda a complexidade do tema, pela maneira como conduz a narrativa de forma direta, mas inquiridora, Caru Alves realizou uma obra que merecia maior atenção. Talvez, mesmo lançada em DVD, permaneça restrita a poucos aficionados. Mas entendo que isso apenas funciona como contraexemplo à asserção feita por Hoineff de que vivemos um momento de crise criativa em razão de o sucesso de bilheteria provir de comédias globais. “De Menor”, assim me parece, dificilmente será visto e discutido como deveria, mas, mesmo que não seja uma obra referencial, isso não lhe subtrai o devido valor artístico.

 

Por Humberto Pereira da Silva, professor de ética e crítica de arte na FAAP (Fundação Armando Álvares Penteado)

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