Retrato de família
Arthur Leite nunca conheceu seu avô. Ninguém da família, aliás, o vê há mais de 40 anos e não tem notícias dele há mais de 30. Durante o Laboratório de Audiovisual para TV, do Porto Iracema das Artes e do Instituto Dragão do Mar, Leite desenvolveu a minissérie “Caminho de Volta”, sobre um casal que se reencontra após 40 anos. Diretamente influenciada pela história dos avós, o cineasta quis entrevistar a avó para material de pesquisa. Rosa sempre negou, avessa em ver sua trajetória na TV. Um dia ela ligou para Leite, querendo lhe falar. Assim surgiu “Abissal” (2016), vencedor do prêmio de melhor curta brasileiro no É Tudo Verdade e exibido no último Cine Ceará.
Seria um filme-busca pelo avô Durval, mas a entrevista com Rosa levaria o filme para outro caminho. “Minha avó não falava do meu avô, mas dela própria, com o vovô sempre como coadjuvante. Foi uma gravação difícil. Percebi que a verdadeira desconhecida da história era minha própria avó. Minha cabeça virou um turbilhão, eram muitas informações novas, segredos, vinganças e detalhes. Estava literalmente afogado em memórias”, conta Leite.
Gravado durante quatro dias, no final de 2014, com no máximo R$ 10 mil, em Quixeré, cidade natal de Leite, “Abissal” virou um filme sobre Rosa. A mudança foi, também, de ordem estética. Leite pretendia realizar um filme com muito mais respiros, mais contemplativo, porém com o protagonismo da avó, o cineasta resolveu assumir, na montagem, um papel muito mais proeminente dentro do filme. “Meus próprios diálogos e questionamentos se tornaram parte da obra. Escrevi a carta que leio no início do filme quando tinha nove anos e minha avó guardou até hoje, como todos os outros documentos que ela dizia não ter. Passei de diretor a, também, personagem. Essa era a condição para o filme existir”, conta o cineasta, que antes realizou, pelo Revelando Brasis, o curta “Mato Alto – Pedra por Pedra” (2011).
“Abissal” intercala a entrevista com Rosa e imagens dela em sua casa, imagens de arquivo dos avós e conversas entre Leite, sua mãe e sua avó. O discurso do cineasta amarra a obra, compondo um mosaico de sua relação com Rosa, suas expectativas e tenta desconstruir o processo de gravação, revelando o efeito do tempo em seu filme. Após as gravações, ele deixou o material parado, sem sequer vê-lo, durante alguns meses. “Houve, de minha parte, a dúvida de continuar com o filme. De certa forma, foi doloroso no âmbito pessoal e psicológico, até de saber que minha avó mentiu e escondeu coisas por tanto tempo. Foi esse sentimento que me fez perceber que tinha um filme muito mais poderoso e profundo nas mãos; um filme catártico. Apesar de ser uma história tão íntima, a minha ligação com minha avó me faz acreditar que é isso que o torna universal”, afirma.
Hoje em Fortaleza, onde se graduou em Audiovisual pela Unifor, Leite monta o curta “Ferrugem”, sobre o cotidiano de um grupo de trabalhadores de uma sucata, prepara a produção da ficção “Cor de Sangue” e capta para “Caminho de Volta”. E “Abissal” continua carreira em festivais: já previstos Pirenópolis e Triunfo.
Por Gabriel Carneiro