O dia em que Sarita Montiel, diva espanhola, perdeu a paciência com as trapalhadas de Perry Salles

Por Maria do Rosário Caetano

A Revista de CINEMA prossegue em sua série de relatos, contendo lembranças cinematográficas ambientadas em festivais ou mostras brasileiros (ou internacionais).

A décima-oitava dessas lembranças tem o Cine Ceará (Festival Ibero-Americano de Cinema) – realizado há três décadas em Fortaleza – como cenário.

Em junho de 2002, na décima-segunda edição do evento, uma convidada especial era aguardada com entusiasmo e ansiedade – Sarita Montiel, “La Violetera”. Entre os convidados brasileiros, o nome que chamava atenção era o de Perry Salles, ex-marido de Vera Fischer, que apresentaria sessão de “Dôra, Doralina”, que ele dirigira em 1982 e La Fischer protagonizara. A matriz do filme era um romance da Rachel de Queiroz (1910-2003), escritora cearense que vivia, aos 91 anos, seus momentos derradeiros.

Se o Cine Ceará 2002 fosse um filme, Sarita Montiel seria sua estrela-protagonista, falante, cantante, cheia de vida e atitudes. E Perry, o vilão. Antes, porém, de chegarmos ao papel desempenhado por cada um deles na festa cearense, vale relembrar a trajetória da espanhola nascida na pequena Campo de Criptana, em março de 1928.

María Antonia Alejandra Vicenta Elpídia Isídora Abad Fernández, que se tornaria conhecida como Sara Montiel, Sarita ou Saritíssima, tinha 74 anos quando desembarcou na ensolarada Fortaleza. Estava acompanhada do noivo, o cubano Tony Hernandez, de 38 anos. As bodas estavam programadas para dali a cinco meses, pois a diva, famosa nos palcos e nas telas, queria casar-se em dezembro.

Sarita gostava de lembrar que vinha de família republicana. Por isso, com o triunfo dos falangistas comandados pelo caudillo Francisco Franco, só restou aos seus exilarem-se no México, ao final da Guerra Civil Espanhola (1936-1939). Ela era pré-adolescente quando partiu. Sua beleza estonteante a levaria a fazer carreira no país latino-americano, ao mesmo tempo que outra glória da Espanha, Luis Buñuel (1900-1983). Ela como cantora e atriz, ele como o diretor, que Cannes consagraria por “Los Olvidados” (1950).

No México, que considerava sua segunda pátria, Sarita participou de 15 filmes. Sua beleza morena a levaram a elencos liderados por três diretores norte-americanos, todos muito respeitados – Robert Aldrichd (“Vera Cruz”, 1954), Anthony Mann (“Serenade”, 1956) – ele a desposaria na vida real de 1957 a 1963  – e Samuel Fuller (“Renegando meu Sangue”, 1957).

No final da década de 1950, ela era tão famosa, que a Espanha franquista não se dignaria a mover uma palha que fosse para magoá-la. Em 1958, Sarita Montiel, ao lado do galã (e futebolista) italiano Raf Vallone, protagonizaria, em Madri, “La Violetera”, de Luis Cesar Amadori.

O filme, um folhetim musicado, se passava no começo do século XX. Nas ruas madrilenhas e na porta de um teatro, uma jovem, Soledad (Sara Montiel) vendia violetas e cantava para alegrar sua clientela. Um dia, sua voz chamou atenção de um aristocrata, de nome Fernando (Raf Vallone), que por ela se apaixonou. Sendo correspondido. A diferença social, claro, desagradaria profundamente à família do rapaz. Um irmão dele faria o papel de vilão.

O sucesso do filme foi de tal magnitude, que Sara Montiel transformou-se em ícone planetário. Mesmo quem achava, com toda razão, o filme kitch, não conseguia resistir à beleza da “violetera”, nem ao encanto de sua voz. Ela conquistou fãs no mundo inteiro e tornou-se musa gay.

No Cine Ceará, conversei com a cantora sobre diversos temas. Já conhecíamos a história do noivo cubano. Apaixonado pela cantriz espanhola ele, Tony Hernández, que era técnico audiovisual da Escuela Internacional de Cine y TV, de San Antonio de los Baños, resolveu enviar a ela uma carta-vídeo, com 33 minutos de duração. Falava de sua vida, do quanto era fã dela e da dificuldade de conseguir filmes ou vídeos nos quais ela brilhava. Difícil na cidadezinha de San Antônio de Los Baños, nos arredores de Havana, e mesmo na capital cubana. Ao assistir ao vídeo, Sarita encantou-se pelo rapaz e quis recebê-lo em Madri. Como resistir – me disse a diva espanhola – “a um homem com cabeça de estátua romana, enfeitada por belos olhos e lindos cabelos?” A paixão teria vindo como consequência.

Perguntei se havia quem recriminasse sua paixão por um homem 36 anos mais jovem. Com humor irônico, ela respondeu: “Tive três casamentos legais, formais. Soube guardar dinheiro, sou rica, dona da minha vida. Faço shows pelo mundo inteiro, vivo com muita alegria, não vou ficar em casa reclamando e sonhando com um passado de glórias”. Ou seja, ninguém tinha nada a ver com suas escolhas amorosas.

No México, Sarita conviveu com Frida Kahlo, Diego Rivera e, nem tão de perto, com o compatriota Luis Buñuel. Quando perguntei a ela por que o andaluz não a dirigira em sua fase mexicana, ela retrucou, atrevida: “Querem me matar quando digo que não filmei com ele, porque me ofereceu duas porcarias (ria gostosamente). De uma, me lembro o nome: “El (El Alucinado)”. Da outra, nem isso. Nos encontramos diversas vezes, pela vida afora, e ele me dizia que eu era inculta e só tinha beleza. Mais tarde, ria comigo quando lembrávamos nossas andanças mexicanas”.

Já para outro astro do cinema espanhol, Pedro Almodóvar, ela só tinha boas palavras: “Amo Pedrito. E ele me ama. Sabe que começou me imitando? Sim, ele se fantasiava de Sarita Montiel. Não estou mentindo. Ele mesmo me contou. E me convidou para trabalhar em ‘ Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos’, ‘Tacones Lejanos’ e alguns outros filmes. Mas, creio, meu tempo no cinema já tinha passado”.

E, com brilho nos olhos e muita alegria, ela falou da paixão que despertava na comunidade homoafetiva: “Não sei explicar racionalmente esse amor. Mas no Japão, nos EUA, em Cuba, até em Istambul, cidade muçulmana, por todo lado, há gays que se montam como Sarita. Sabe que, certa vez, fui fazer curta temporada em San Francisco, nos EUA, e o sucesso foi tão grande, que tive que que ficar em cartaz por duas semanas. Em Los Angeles, o teatro era imenso (e lotava). Mas o incrível você não sabe! Eu usava quatro vestidos diferentes. Pois não é que, no dia seguinte, eles apareciam vestidos iguaizinhos a mim, com os mesmos tecidos e adereços? Acho que acordavam cedinho, compravam o tecido e passavam o dia costurando, até a hora do show. E apareciam no teatro deslumbrantes.

Por fim, Sarita contou que sua autobiografia – “Vivir es un Placer” – já estava, em 2002,  na décima-oitava edição e que os gays a liam com imenso prazer.

Voltando Cine Ceará, há que se lembrar que ela prometeu cantar no palco, além de “La Violetera”, clássicos do samba brasileiro – “Na Baixa do Sapateiro” ou “Aquarela do Brasil”. Acabou optando por “A Noite do meu Bem”, de Dolores Duran, porque os músicos que a acompanhariam, devido à falta de tempo da diva para ensaios, acharam mais simples.

Ela cantou “La Violetera” e deixou os coroas, que eram parte significativa da plateia, em estado de graça. Na falta de violetas, raras na quentura de Fortaleza, ela se virou com um cesto de cravos, arremessados um a um para fãs em delírio. Cantou o samba-canção de Dolores, mostrando que tinha afinidade com a música brasileira. Até porque aqui filmara “Samba” (1965), do espanhol Rafael Gil, no qual interpretava uma “moça da favela”. Conheceu o Salgueiro, que apresentara lindo e renovador desfile em homenagem a Chica da Silva. Ela filmou com a escola, sambou e cantou a glória da escravizada do Tejuco (está tudo no YouTube). Sarita garantiu ter passado “cinco meses” no Brasil, passeando pelo Rio de Janeiro e por outras cidades. “Fiz muitos amigos por onde andei”.

Sarita de Chica da Silva, no carnaval do Rio, em cena de “Samba”, filme de 1965

A noite de premiação do Cine Ceará começara em estado de magia. O público estava muito feliz com a presença da diva espanhola, que recebera seu troféu de honra. Mas aí, Perry Salles teve uma crise de estrelismo e resolveu disputar a ribalta com La Violetera. Descompensado, deu início a um festival de erros. Ganhou vaias da plateia, mas não se tocou. Sarita se cansou da confusão e foi embora. Ele continuou promovendo trapalhadas, inclusive na entrega dos prêmios aos vencedores.

Dois longas-metragens se destacaram: “Um Vida em Segredo”, que Suzana Amaral realizara a partir de romance homônimo de Autran Dourado, e “Houve uma Vez Dois Verões”, roteiro original de Jorge Furtado. O primeiro ganhou os prêmios de melhor filme, atriz (Sabrina Greve), fotografia (Lauro Escorel) e direção de arte (Adrian Cooper). O segundo, melhor direção e roteiro (ambos de Jorge Furtado) e montagem (de Giba Assis Brasil). O melhor curta foi “Um Sol Alaranjado”, de Eduardo Valente.

Na saída do belo e histórico Cine São Luiz, na Praça do Ferreira, centro histórico de Fortaleza, um fã de Sarita Montiel, com um cravo na mão, lamentava o papel de Perry Salles: “ele confundiu o palco do São Luiz com um picadeiro”.

Sarita realmente se casou com Tony Hernández. A união durou até 2005 (pouco mais de três anos). Ela morreria em abril de 2013, aos 85 anos.

Perry Salles partiu bem antes, em 2009, aos 70 anos. Deixou uma filha (Rafaela) de seu casamento com Vera Fischer, que durou 15 anos, e quatro outros (Rodrigo, Rômulo, Romeu e Renata) de outras uniões. Deixou, como diretor, os filmes “Intimidade” (1975) e “Dôra Doralina” (1982), ambos protagonizados por Vera Fisher. Com sua primeira mulher, a atriz Miriam Mehler, ele criou o Teatro Paiol, no centro de São Paulo.

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