Construção de personagens para além das peripécias narrativas

Historicamente, talvez uma das críticas mais recorrentes que tenham pesado sobre o cinema nacional sejam os roteiros dos filmes. Se, até poucas décadas atrás, era a qualidade do som que mais irritava os ouvidos e a apreciação do grande público e dos críticos, a construção da narrativa nas obras brasileiras continua precária, com algumas extraordinárias exceções. Mas o que falta, afinal, para que se atinja características fundamentais de uma boa história?

Essa foi a premissa basilar que norteou a pesquisa do jornalista, documentarista e escritor Hermes Leal, agora publicada pela editora Perspectiva, cujo título já direciona para tal intenção: “As Paixões na Narrativa: A Construção do Roteiro de Cinema”.

Logo de início, Leal aponta para “o problema da superficialidade dos roteiros cinematográficos calcados tão somente nas ações e peripécias”, e que pretende lançar uma teoria para tentar solucioná-lo. A empreitada, de antemão, já era árdua. E demandou mais de trinta anos de pesquisa, entre estudos acadêmicos de mestrado e doutorado na USP, e a própria escrita de roteiros pelo autor.

A sua construção da personagem, para além das peripécias, parte dos alicerces da semiótica das paixões. Para tanto, Leal nos indica que ela recai, especialmente, na “descida paradigmática do agir para o ser, do estado de coisas para o estado de alma, problemático, no qual residem as fraturas existenciais e os estados patêmicos que a fazem sofrer”.

Nesse sentido, a semiótica das paixões não vai pelo caminho psicológico ou filosófico, mas sim “como uma nova forma de análise da percepção do sujeito, através do que gera o sentido de seus estados patêmicos de alma, sem abrir mão das teorias da semiótica da ação, na qual as personagens se estruturam”. Em outras palavras, a semiótica das paixões também é denominada “semiótica do sujeito”, com a “integração total da personagem à narrativa, em que o estado de alma se sobrepõe ao estado de coisas”.

Estruturalmente, o núcleo interno da narrativa que sustenta tais fundamentos é formado por três papéis centrais: um sujeito, um destinador e um objeto. Mas, para que a alma do personagem seja alcançada, é necessário reconhecer quais valores estão por trás de tal objeto de desejo do sujeito da ação, como riqueza, fama, beleza, reconhecimento, prestígio, liberdade etc. E essa elaboração é crucial para identificar ou formular os “efeitos da busca pelos valores imanentes nos objetos desejados que irradiam as estruturas invisíveis da ação em forma de arranjos, à primeira vista, impossíveis entre os personagens”, escreve o autor.

Para os semióticos das paixões, “a alma é aquela que parte dos estados patêmicos, área nebulosa do ser de onde emergem perturbações sem que as personagens saibam a razão, em que são geradas por paixões como angústia, melancolia, cólera, ódio, vingança, felicidade, infelicidade etc”.

O modelo usado para examinar os estados da personagem “é aquele em que o agir não é somente um dever-fazer algo transformador, mas também uma necessidade da ‘urgência do ser’ que lhe impõe um dever-ser algo transformado, garantindo para a narrativa um caráter passional que a diferencia dos jogos superficiais da ação”.

Com isso, portanto, os personagens não ficam apenas ultrapassando obstáculos na história, uma vez que existem subjetividades da própria personalidade, que geralmente não estão à vista, mas que se refletem nas ações seguintes.

A qualidade da narrativa, por essa ótica, está em alcançar o caminho da alma e, em seguida, organizar esse sofrer dos personagens, que tentam ser perfeitos num mundo naturalmente imperfeito como o da vida real. E essa imperfeição está ligada a “uma falta, que nos joga no mundo do sofrer”.

Outro ponto alto das boas narrativas, para Leal, está no “estado de espera”, aquele que vai disparar o gatilho no “pivô passional” e a “intensidade da expectativa de uma personagem”. Explicando melhor, quando o personagem se encontra “na posição que o torna vulnerável ao fazer de outro sobre a sua existência”. Assim, enquanto ele espera alguma coisa acontecer, acaba sendo absorvido pela ação de outro e isso vai desencadear em outras reações, sofridas ou não.

“O que surpreende a personagem em seu estado de espera, a rapidez da chegada ao objeto, é o que determina o grau, a intensidade e a duração do efeito passional a ser analisado”, ensina Leal.

Dentre os filmes destrinchados pelo autor, estão principalmente “Central do Brasil” (1998), de Walter Salles; e “Estômago” (2007), de Marcos Jorge. Interessante observar que ambos são coproduções internacionais: o primeiro, com a França, o segundo, com a Itália. Ou seja, contaram com olhares e contribuições de agentes estrangeiros na sua concepção, e conquistaram diversos prêmios em diferentes continentes.

“As Paixões na Narrativa” também analisa outros filmes recentes, embora em menor escala e puramente estrangeiros, como “Django Livre” (2012), de Quentin Tarantino; e “Relatos Selvagens” (2014), de Damián Szifron. O novo manual, portanto, se propõe não só a oferecer um olhar atualizado sobre a teoria acadêmica e a carpintaria do roteiro cinematográfico, mas também um caminho sistemático que pode indicar soluções bastante factíveis para a realização de pequenas ou grandes obras audiovisuais.

 

Por Belisa Figueiró

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