Festival Aruanda – Edgar Navarro revela que fará filme com Jean-Claude Bernardet
Por Maria do Rosário Caetano, de João Pessoa (PB)
Uma pessoa solitária sustentou palmas ritmadas durante longa sequência do filme “Antes do Fim”, de Cristiano Burlan, primeiro concorrente da mostra competitiva do Festival Aruanda do Audiovisual Brasileiro. Na tela, em paisagem montanhosa e com névoa, os atores Helena Ignez e Jean-Claude Bernardet, protagonistas do filme, praticavam serenamente exercícios de butô, à moda do mestre Kazuo Ono. O espectador que aplaudiu, emocionado, o filme em projeção aberta, era o baiano Edgard Navarro. Ele participa do Fest Aruanda com seu novo longa-metragem, “Abaixo a Gravidade”.
“Antes do Fim”, do diretor gaúcho-paulistano Cristiano Burlan, 42 anos, foi tema de debate na manhã deste sábado, dois de dezembro, ao lado do maranhense “Lamparina da Aurora”, de Frederico Machado. Edgard Navarro, de 67 anos, participou — com muitas perguntas e um testemunho sobre sua trajetória — da discussão.
Quando se perguntou a Bernardet, 81 anos, com que cineastas ele gostaria de trabalhar, ele foi sintético: “com Edgard Navarro”. Da plateia, o diretor de “Superoutro” garantiu que fará, sim, um filme protagonizado pelo ensaísta, professor da USP, polemista, escritor, roteirista, cineasta (“São Paulo, Sinfonia e Cacofonia” e “Sobre Anos 70”) e agora, mais do que nunca, ator.
Navarro, com sua franqueza característica, contou que não fará mais filmes de orçamento substantivo, aqueles que exigem anos de tentativas e insistência junto a bancas examinadoras de concursos públicos municipais, estaduais e/ou federais. Chegou a esta conclusão ao ver seus dois longas — “Eu Me Lembro” (vencedor do Festival de Brasília) e “Abaixo a Gravidade” — rejeitados por festivais internacionais. “Descobri que não vou fazer sucesso, nem consumir minha vida tentando ser famoso. Não serei mais cineasta. De agora em diante, serei ‘cinemeiro’, farei filmes de orçamentos mínimos, sem ter que submeter-me às exigências e regras de editais”.
Quem viu “Abaixo a Gravidade” na noite de encerramento do Festival de Brasília, sabe que o filme tem muito de autobiográfico e que dialoga com o média-metragem mais famoso do realizador, “Superoutro” (um dos títulos cantados por Caetano & Gil no samba-enredo “Cinema Novo”, de “Tropicália II”).
Como “Antes do Fim” e “Lamparina da Aurora”, o baiano “Abaixo a Gravidade” é uma dolorosa reflexão sobre o envelhecimento. Ao ver o octogenário Bernardet e a septuagenária Helena Ignez vivendo um casal de idosos em busca da paz, através da harmonia dos movimentos de seus corpos, Navarro não se conteve. Aplaudiu demoradamente.
No debate, ele fez a primeira colocação. Contou de sua emoção com o que vira, lembrou que dentro de três anos será septuagenário, e defendeu o direito à eutanásia, pois desde jovem sempre foi “seduzido pela morte, pelo suicídio”. E agregou: “’Antes do Fim’ poderia ser o título de ‘Abaixo a Gravidade’. Falamos das mesmas coisas”. O realizador baiano viu altos e baixos no filme de Burlan, mas garantiu, emocionado: “os altos do filme atingem o sublime, caso da sequência que evoca Kazuo Ono, na colina”.
“Antes do Fim” custou míseros R$10 mil (sim, dez mil reais). Já o filme “Lamparina da Aurora” — contou Frederico — “consumiu R$60 mil”. Ou seja, praticamente nada, já que filmes de Baixo Orçamento, no Brasil, custam R$1 milhão (uma produção média custa 4 milhões e uma superprodução, em padrões locais, acima de oito milhões).
Burlan contou que aplica o que ganha como professor de cinema em seus filmes. Ele está finalizando o fecho de trilogia familiar marcada pela violência, iniciado com “Construção”, sobre o assassinato de seu pai, e sequenciada com “Mataram meu Irmão”, sobre a morte de irmão mais novo (grande vencedor do Festival É Tudo Verdade). O novo documentário, “Elegia de um Crime”, reflete sobre o assassinato de sua mãe pelo segundo marido dela (padrasto de Cristiano).
Para realizar filmes com recursos tão rarefeitos, ele conta com a colaboração de parceiros de seu grupo de teatro (Companhia dos Infames) e com a generosidade de atores como Helena Ignez e Bernardet. Já Frederico Machado utiliza recursos próprios, advindos de suas atividades como distribuidor (sua Lume Filmes lançou, no Brasil, títulos importantes como “Lola”, de Lav Diaz). Para viabilizar “Lamparina da Aurora”, ele trabalhou com alunos da Escola Lume de Cinema, que ele mantém há três anos em São Luiz e contou com coprodução dos três protagonistas: o ator paraibano Buda Lira (de “Aquarius”), a atriz piauiense Vera Leite e o ator carioca Antônio Sabóia (de “O Lobo Atrás da Porta”).
O filme, de sintéticos e poéticos 70 minutos, foi roteirizado, fotografado, dirigido, produzido e distribuído por Frederico (está em cartaz em várias capitais brasileiras). Trata-se de narrativa sensorial, construída sem que os personagens emitam uma palavra que seja. Só ouvimos, em “Lamparina da Aurora”, a voz do pai do cineasta, o poeta Nauro Machado (1935-2015). “Gravamos seus poemas duas semanas antes dele falecer, há dois anos. Ele estava muito doente, sabia que a morte estava próxima. A voz dele traz esta dolorosa marca”.
Os versos de Nauro lembram, em certa medida, a poesia do paraibano Augusto dos Anjos. O filme evoca símbolos da luz (lamparina, lampiões e auroras), mas mergulha mais nas sombras da alma humana, sendo, por isto, crepuscular. Não sabemos se os três protagonistas (pai, mãe e filho?) estão vivos ou se são fantasmas. Símbolos religiosos (cruzes, terços, altares), arquitetônicos (casarão e muros lúgubres, quintais cobertos de folhas outonais) nos transportam para um mundo em decomposição.
O mais ativo e produtivo cineasta do Maranhão (três longas num prazo de quatro anos, sendo os anteriores “O Exercício do Caos” e “O Signo das Tetas”) avisou que seu quarto longa, já em produção, será “um pouco mais narrativo, digamos, normal”. Os elogios do público a “Lamparina da Aurora” se fixaram na beleza da fotografia, realmente espantosa para um longa realizado em suporte digital. Frederico lembrou que não é fotógrafo. Mas que seus três primeiros filmes, e este em especial, são tão pessoais, que animou-se a ser também o diretor de fotografia deste mergulho na obra poética de Nauro Machado. “O cinema que me mobiliza está mais para a poesia que para a prosa”, fez questão de frisar.
Frederico Machado, de 45 anos, lembrou, durante o debate, que o pai, poeta, pagou alto preço por não ter abandonado São Luiz do Maranhão. “A obra poética dele, vasta e muito conhecida em nosso Estado, foi premiada e traduzida em outros idiomas”. Mas o reconhecimento ficou contido na província.
Reprise de “Os Fuzis”
O segundo longa-metragem de Ruy Guerra, “Os Fuzis”, foi reprisado na manhã desta segunda-feira, no Cinépolis Manaíra, palco do Fest Aruanda. E por que? Para aplacar a indignação do cineasta moçambicano-brasileiro, o grande homenageado do festival.
Ruy Guerra acertou com a direção do Aruanda que seria exibida cópia integral de sua obra mais reconhecida pela crítica brasileira e internacional. Ou seja, ao invés do longa que conhecemos, com enxutos 80 minutos, seria exibida versão com mais 20 minutos. A primeira teria corte imposto pelo produtor Jarbas Barbosa (1927-2005), e a segunda, a duração estabelecida por seu criador.
Como a qualidade técnica da cópia enxuta era maior, o diretor do festival, Lúcio Vilar, resolveu exibi-la. Ruy Guerra apresentou o longa-metragem ao público, ao lado do ator Paulo César Peréio, um dos “fuzis” que ocupam a pequena cidade de Milagres, no sertão brasileiro, enquanto um beato comanda espiritualmente centenas de flagelados. Famintos e penitentes, homens e mulheres do povo adoram um “boi santo”.
Foi só descobrir que a cópia não era a proposta por ele, ou seja, aquela com vinte minutos a mais, para Ruy levantar-se, indignado, com Paulo César Peréio ao lado, e deixar a sala, sob protestos. A discussão continuou fora do cinema e decidiu-se interromper a projeção. A plateia, ao ser informada, revoltou-se e avisou que não arredaria pé. Todos permanceram em seus lugares e o filme foi exibido até o fim, quando foi saudado por calorosos aplausos.
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