Documentários exibidos pela Mostra SP revelam novas faces de Chang Dai-Chien e Jacó Guinsburg

Foto: “Da Cor e da Tinta”, de Weimin Zhang

Por Maria do Rosário Caetano

Você já ouviu falar em Chang Dai-Chien, pintor chinês de projeção internacional, que morou por 20 anos em Mogi das Cruzes e lá construiu imenso jardim-pavilhão, soma de natureza e arte, brutalmente destruído por uma barragem?

A resposta virá no negativo para milhões de brasileiros. Mesmo os que transitam no circuito das galerias, no grand monde das artes plásticas.

Já do judeu-russo-brasileiro Jacó Guinsburg, muita gente já ouviu falar. Principalmente, quem gosta de ler (ele fundou a seminal Editora Perspectiva), de teatro (estudou Stanislavski, o Teatro de Arte de Moscou e Meyerhold), ou passou pela EAD-USP (Escola de Arte Dramática), onde foi professor.

Pois agora, graças a dois documentários apresentados pela Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que realiza sua quadragésima-sétima edição até primeiro de novembro, os cinéfilos poderão conhecer Chang Dai-Chien (China, 1899-Taiwan, 1983). E desfrutar da inteligência e bom humor de Jacó (1921-2018). Que sua esposa, Dona Guita, definiu (na estreia do filme “Jacó Guinsburg, um Intelectual em Cena”, na Reserva Cultural), com muito bom humor, como “um vagabundo”.

Quem assistir ao filme de Evaldo Mocarzel verá que Dona Guita estava fazendo troça. Ou diminuindo o peso do marido em seus muitos ofícios, com a intenção de valorizar seus parceiros, companheiros de estrada profissional. Sim, Jacó sabia trabalhar em equipe. De folgado, o intelectual que viveu no Brasil 94 de seus 97 anos, nada tinha. Trabalhava incansavelmente. Tanto que sua editora, a Perspectiva, publicou mais de 300 livros (“Apocalípticos e Integrados” e “Obra Aberta”, ambos de Umberto Eco, e “Balanço da Bossa e Outras Bossas”, de Augusto de Campos, são exemplos notáveis).

Antes de entrar nos méritos (e pontos problemáticos) do filme de Mocarzel, vamos falar de outro estrangeiro que viveu no Brasil – o chinês Chang Dai-Chien, tema do documentário “Da Cor e da Tinta”, da sino-americana Weimin Zhang.

Jacó Guinsburg chegou ao Brasil com três ou quatro anos, vindo da Bessarábia (parte então da grande Rússia, hoje Moldávia), cresceu entre os judeus, mas tornou-se brasileiríssimo. Fez da língua portuguesa a sua pátria, embora em casa falasse íidiche com os pais. E conhecesse outros idiomas.

Já o pintor Chang Dai-Chien, que deixou a China de Mao-Tse Tung, em 1949, seguiu outra sina. Ele migrou para Mendoza na Argentina e, depois, para o Brasil. Montou um imenso sítio-ateliê no distrito de Taiaçupeba, no município de Mogi das Cruzes, na grande São Paulo. Lá viveu por duas longas décadas. As “mais criativas e produtivas de sua carreira”, segundo a documentarista Weimin Zhang, que está no Brasil, participando da Mostra SP. O filme dela concorre ao troféu Bandeira Paulista, por tratar-se de seu primeiro longa-metragem (a competição restringe-se a realizadores de até três filmes).

Ao longo dos últimos 12 anos, a cineasta chinesa, radicada nos EUA, moveu montanhas para reconstruir a obscura (embora longa) passagem de Chang Dai-Chien pelo Brasil. E também pela Argentina e Califórnia. E de suas andanças pelo mundo ocidental para expor sua arte (na França e Alemanha, em especial).

O Brasil, país ocidental que mais serviu de abrigo ao autoexílio do artista, fica muito mal na fita. Pior que a Argentina, que negou a Chang e família visto de permanência.

E por que Mogi das Cruzes, Taiaçupeba, São Paulo, Porto Alegre e Olinda – o Brasil, enfim – ficam mal na fita?

Porque seguimos sendo um país predador, que não cultiva a arte e a memória. Vejamos: primeiro, ambientamos ato de destruição dos cinco pavilhões de arte-natureza construídos pelo artista, substituindo-os por barragem que alagou tudo. O imenso Jardim das Oito Virtudes, composto com cinco pavilhões, erguidos com paciência chinesa e blocos de pedra, arte e muitas plantas, jaz debaixo d’água. Segundo: embora tenha participado da Bienal de São Paulo, em 1961, e de Exposição no Masp, em 1966, o conhecimento de nossos museus sobre a trajetória brasileira e estrangeira de Chang Dai-Chien é precário.

Weimin, em suas andanças para realizar o filme, chega à Pinacoteca Ruben Berta, em Porto Alegre. Descobre uma obra do artista, mas ela não traz nenhuma identificação. A cineasta descobrirá tratar-se de “Passeio ao Longo do Rio – Apreciando as Flores das Ameixeiras” (1966).

O mesmo se dá em Olinda. Neste caso, temos um retrato ainda mais trágico de nossa incúria. Havia (há) obra do artista chinês no Museu de Arte Contemporânea da histórica cidade pernambucana. Sabia-se que ela era originária de herança do acervo de Assis Chateaubriand, o “Cidadão Kane brasileiro”. Mas a obra (“Paisagem Suíça”) não trazia nenhuma identificação. E vinha com um agravante: coberta com vidro, como filmá-lá, sem os incômodos reflexos? A brasileira Olinda não dispunha de técnico capaz de retirar vidro e moldura sem danificar a pintura.

Weimin Zhang chegou a uma solução: criou ambiente escuro e nele (ela é fotógrafa) inseriu-se para registrar outra criação de 1966 (e não 1906, como enuncia a responsável pelo museu pernambucano).

Ao final da sessão, público entusiasta – parte vinda da Unicamp, onde o doutorando Guilherme Gorgulho prepara tese sobre a experiência brasileira do artista chinês – debateu o filme com a falante Weimin Zhang. Ela entrevistou 60 pessoas ao redor do mundo para compor seu longa-metragem. Um dos entrevistados, chinês como ela, indigna-se com os que definem Chang Dai-Chien como o “Picasso Chinês”. Embora tenha conhecido o pintor espanhol em Paris, dele não sofreu influência. O conterrâneo do artista oriental vê a comparação como ofensiva e disparatada.

Chang Dai-Chien – chinês até a medula – iniciou sua trajetória na tradição pictórica do “Pocai” (cor salpicada na tela e envolta em névoa), evoluindo depois para o moderno (Expressionismo Abstrato). Nada a ver com os caminhos percorridos pelo cubista Picasso.

Weimin Zhang tenta entender a utopia espiritualista de Chang, artista aferrado à história cultural de seu país e à Natureza, que viveu 20 anos no Brasil, sem aprender o português. E que sempre sonhou regressar à sua terra natal. Não regressou ao país de Mao Tse-Tung, mas foi viver na China insular (Taiwan), onde morreria aos 84 anos.

O documentário norte-americano, que traz dezenas de obras do artista e ricas imagens em movimento colhidas nos mais diversos arquivos (europeus, chineses, estadunidenses), deve servir, agora, para chamar a atenção de argentinos, brasileiros e chineses (da China continental e socialista, inclusive) pela rica obra de Chang Dai-Chien, o chinês nascido em Sichuan, que sonhou com a integração harmoniosa do Ocidente com o Oriente. E que, em San Francisco, na Califórnia, causou frisson entre os hippies, fascinados por sua imagem zen-budista.

Cena de “Jacó Guinsburg, um Intelectual em Cena”

Voltemos ao filme de Evaldo Mocarzel. A primeira parte de “Um Intelectual em Cena” é fascinante. Uma sequência de fotos insere o garotinho, depois rapaz, na comunidade judaica paulistana. Ele estuda, trabalha como tecelão e vai se ligando a artistas e intelectuais de esquerda. Com muito bom humor e discurso arrebatador (coloquial e divertido mesmo), Jacó Guinsburg relembrará amigos como Antonio, Anatol Rosenfeld, Décio de Almeida Prado, Sábato Magali, Paulo Emílio Salles Gomes…

Evaldo, que (quase) abriu mão do principal ofício de seu personagem – o de notável editor e criador da Perspectiva – estava decidido a explorar o Guinsburg que pensou o teatro, escreveu críticas teatrais e foi professor da EAD. E aí a coisa complica.

Por mais que Jacó seja coloquial e simpático, o debate teatral pesa. Centrado apenas em longuíssima (embora excelente) entrevista do judeu-paulistano, o espectador se ressente da falta de imagens. Se fôra avarento no curto trecho dedicado à Perspectiva (nenhuma capa, nem de “Balanço da Bossa”, nem dos livros de Umberto Eco!), Evaldo continua avarento mesmo navegando no terreno das artes cênicas.

Por que não usou, pelo menos, imagens em movimento de Stanislavski, Meyerhold e da vanguarda construtivista soviética?

Por sorte, o filme introduz em suas sequências finais a imagem luminosa de Dona Guita. Articuladíssima, ela imantada nossa atenção com sua fala também coloquial, afetiva e inteligente. E demostra que Jacó teve em casa uma interlocutora à sua altura.

OK, “Um Intelectual em Cena” foi concebido para falar de “um intelectual da cena” teatral brasileira e russa. E não apenas do criador da Perspectiva. O documentarista é, além de dramaturgo, doutor pela USP, com tese que estudou os coletivos teatrais contemporâneos de São Paulo. Mas bem que o experiente Evaldo Mocarzel, autor de mais de 30 documentários (muitos deles sobre teatro) podia ter pena da gente. Nos presentear com mais (e muitas) imagens ligadas a esse personagem incontornável que ele agora imortaliza no audiovisual brasileiro.

 

Da Cor e da Tinta
EUA, Brasil, Taiwan, 2023, 102 minutos
Direção: Weimin Zhang
Sessões neste 21 de outubro (sábado), no IMS, às 18h (Avenida Paulista), e no Itaú Frei Caneca 5, dia 27 de outubro, às 14h

Jacó Guinsburg – Um Intelectual em Cena
Brasil, 2003, 77 minutos
Direção: Evaldo Mocarzel
Sessão no Itaú Frei Caneca 5, dia 28, às 20h10. Depois no canal Sesc TV

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