“Anna Karenina” volta aos cinemas e agora falando russo

Por que realizar mais uma adaptação de um dos maiores clássicos da literatura eslava, o romance “Anna Karenina”, de Leon Tolstoi, ou como prefere o escritor e tradutor do russo, Rubens Figueiredo, “Anna Kariênina”, de Liev Tolstói, em magnífico livro-estojo, editado pela Cosac Naify?

Pois nesta quinta-feira, chega aos cinemas brasileiros, “Anna Karenina: A História de Vronsky”, décimo-quarto longa-metragem do russo Karen Shakhnazarov, de 65 anos, protagonizado pela belíssima atriz Elizaveta Buyarskava, e pelo charmosíssimo Maksin Matveyev, na pele do Conde Vronsky. O ator é visto em dois tempos: na época, 1874, em que tornou-se o amante de Anna, casada com Karenin, alto funcionário do Governo Russo, e 30 anos depois, durante a Guerra Russo-Japonesa, ferido num campo de batalha na Manchúria.

O processo de envelhecimento de Vronsky e a qualidade dos efeitos especiais nos campos de combate – além de cena de baile quase tão bela quanto a de “O Leopardo”, de Visconti – provam o quão qualificados são os profissionais russos, vindos da era soviética.

Mas voltemos à questão inicial: por que fazer mais uma versão de “Anna Karenina”, que chegou ao cinema em 1911, em versão russa (muda, claro) e, nas décadas seguintes, em múltiplas recriações? Inclusive duas (uma muda e uma falada), estreladas ambas por Greta Garbo (em 1927 e 1935, esta sob direção de Clarence Brown). Claro que a Karenina de Hollywood falava inglês e não o idioma de Tolstoi.

Treze anos depois da Karenina hollywodiana de Garbo, outra grande atriz, a inglesa Vivien Leigh, interpretaria, sob direção de Julien Duvivier, a jovem mãe do menino Sergei Karenin, que se apaixonaria perdidamente por um belo conde, viveria com ele uma convulsiva história de amor e iria ao encontro de final trágico.

Em 1967, os russos, insatisfeitos com as versões estrangeiras, resolveram dar voz (e idioma pátrio) à personagem de Tolstoi. Para interpretá-la, foi escalada a atriz Tatyana Samaylova, famosíssima por muitos papéis no teatro e no cinema, em especial por “Quando Voam as Cegonhas” (Mikhail Kalatozv), Palma de Ouro em Cannes, 1958. O filme de Tatyana, dirigido por Alexandr Zarkhi, tornou-se um clássico soviético, mas não circulou pelo mundo.

Em 1985, Jacqueline Bisset, no auge de sua diáfana beleza, protagonizou um telefilme dirigido por Simon Langton. Não chamou atenção. Foram as duas versões seguintes que enfureceram os russos, pois tiveram significativa distribuição internacional (em especial a última): a Anna Karenina, de Sophie Marceau, dirigida por Bernard Rose, e a da inglesinha Keira Knightley, sob o comando do conterrâneo Joe Wright. Esta versão, escrita pelo dramaturgo tcheco-britânico Tom Stoppard (de “Rosencrantz e Guildenstern Estão Mortos”), se passava inteira num palco. O filme teria chamado atenção dos espectadores russos, que compraram quase 200 mil ingressos em sua primeira semana em cartaz. Mas críticos e especialistas em Tolstoi se enfureceram. Não aceitaram os bracinhos finos de Keira, considerada magrinha demais para interpretar uma das maiores (e mais belas) criações da literatura em língua russa. Ah, os russos gostaram do Karenin, o marido traído, interpretado por Jude Law.

Até no Brasil, Anna Karenina serviu de inspiração a um filme, “Anna K”, do artista plástico José Roberto Aguilar, protagonizado por Leona Cavalli. Na recriação brasileira, um professor de russo (Vadin Niktin) fica intrigado ao dar aulas para Joana, uma mulher que acredita ser Anna Karenina. O filme, que conta com participação de Boris Schnaiderman, foi lançado em abril de 2015 e teve reduzida audiência.

Pois, após tantas versões, chegou a hora de conferir “Anna Karenina: A História de Vronsky”. Primeiro, por tratar-se de um belo filme, uma superprodução sem excessos, realista, muito bem filmada e nada espetaculosa. Segundo, porque seus atores (e figurinos) são soberbos. E a beleza e formas voluptuosas de Elizaveta Boyarskava devem ter deixado os russos em estado de graça.

E, justiça seja feita, Karen Shakhnazarov trouxe uma grande novidade à sua versão do romance de Tolstoi: somou-a a outra narrativa, retirada de “Notas de um Médico sobre a Guerra Russo Japonesa”, do escritor (e médico) Vikenty Verasaev.

Ousadia? Atrevimento absurdo? Não. Ou alguém condenou Stoppard à fogueira quando ele colocou dois personagens secundaríssimos do “Hamlet” shakespeariano em “Rosencrantz e Guildenstern Estão Mortos”?

Shakhnazarov, que há 20 anos comanda os Estúdios Mosfilm, contou com recursos da TV (estatal) Rússia 1, para realizar um filme e uma minissérie (simultâneos) a partir de “Anna Karenina”. Ninguém pense, porém, que ele produziu uma minissérie em tempos elásticos (o romance se estende por 800 páginas) e depois a comprimiu num filme de apenas 2h18. Não. Ele fez duas versões. Para a TV, centrou-se mais no romance de Tolstoi. Para o cinema, abriu generosos espaços para cenas de batalha, ocorridas 30 anos depois do suicídio de Anna Karenina.

O filme começa, em 1904, num hospital militar, num vilarejo na Manchúria, onde são tratados os feridos russos. Um deles é o Conde Vronsky. O médico que vai cuidar dele é o filho de Anna Karenina. Ou seja, o menino que fora criado pelo pai, pois a mãe, desesperada, recorrera ao suicídio. Sergei Karenin pergunta ao conde ferido o que levara Anna a por fim à sua vida. Depois de hesitar, Vronsky concorda em contar a história de seu trágico amor pela mãe de Sergei. Aí, entra a história imortalizada por Tolstoi.

O cineasta Karen Shakhnazarov vem, em pessoa, mostrar o filme ao público paulistano. E, para complementar, manterá encontro com cineastas e produtores brasileiros, para tratar , quem sabe, de futuras coproduções.

Algum cinéfilo mais antenado com o cinema russo deve conhecer pelo menos um de seus filmes, a sátira “Cidade Zero”, lançada em nosso circuito de arte, no finalzinho da década de 1980. O CPC-UMES (Centro Popular de Cultura da União Municipal de Estudantes), que promove, em parceria com a Mosfilm e a Cinemateca Brasileira, a Mostra de Cinema Soviético e Russo (sempre no mês de novembro), assina o lançamento de “Anna Karenina: A História de Vronsky”, em parceria com o exibidor Adhemar Oliveira.

O selo de DVDs do CPC-UMES já lançou 30 filmes soviéticos e russos no mercado brasileiro. Além de clássicos de Sergei Eisenstein, Andrei Tarkovsky (“Solaris”) e Akira Kurosawa (a produção soviética “Derzu Usala”) disponibilizou, ano passado, um filme de Karen Shaknazarov, “A Filha Americana”, de 1995. E promete lançar, em breve, nos cinemas, outro épico do realizador, “O Tigre Branco”, indicado, em 2012, a concorrer ao Oscar de melhor filme estrangeiro.

Por Maria do Rosário Caetano

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