Olhar de Cinema – Indígena protagoniza documentário favorável às cotas de inclusão
Por Maria do Rosário Caetano, de Curitiba
Um “programa de índio” — o longa documental “Euller Miller entre Dois Mundos”, de Fernando Severo — mobilizou significativa plateia e animado debate na sétima edição do Festival Olhar de Cinema, que prossegue até o dia 14, em Curitiba.
Antes de mais nada, vale perguntar: quem é Euller Miller, este brasileiro que carrega quatro “elllles” no nome? E onde o pai foi buscar tal combinação?
A resposta está no filme. O menino, nascido em Dourados, no Mato Grosso do Sul, numa família Kaiowá, ganhou o nome de dois craques são-paulinos (que passaram por outros grandes times, como o Palmeiras): Euller, “o filho do vento”, e Müller, um dos “Menudos do Morumbi”. Fã dos atletas, o pai Miguel Barbosa de Almeida os homenageou. Mas a vocação do menino indígena tomou outro rumo: o estudo. Hoje, ele cursa o quarto semestre de Odontologia na UFPR (Universidade Federal do Paraná), graças à lei que instituiu, no Estado, em 2001, Vagas Suplementares, política de inclusão educacional semelhante à Lei das Cotas, instituída em nível federal, em 2011.
“Euller Miller entre Dois Mundos” é o terceiro filme de Fernando Severo dedicado à temática indígena. O primeiro, o poético “O Mundo Perdido de Kózak” (1988), mergulhou nas imagens geradas pelo fotógrafo e cineasta tcheco-brasileiro Vladimir Kózak (1898-1979), apaixonado, como Heinz Forthman e Jesko Puttkamer, pelo mundo dos primeiros nativos brasileiros. O segundo documentário, “Xetá” (2011), registrou o processo de colonização do Oeste do Paraná, que provocou a quase extinção deste povo e causou grave desastre ecológico.
Ao apresentar seu “Euller Miller entre Dois Mundos” na mostra Mirada Paranaense, um dos segmentos do Olhar de Cinema, Severo protestou, indignado, contra os cortes anunciados pelo governo Temer no programa Bolsa Permanência destinado a indígenas matriculados em universidades brasileiras. Ao longo de sua narrativa, que dura enxutos 76 minutos, o cineasta mostra, com o depoimento de Euller Miller, que, sem a Bolsa Permanência, não teria condições de cursar Odontologia, curso que exige materiais didáticos muito caros.
O indígena conta que saiu da quente Dourados para estudar em Curitiba e, no primeiro inverno, quase morreu de frio. Chegou ao campus com uma camiseta de manga comprida e os colegas ficaram espantados. Ao saber que ele não tinha agasalho para enfrentar as baixas temperaturas locais, alguns doaram a ele tal peça do vestuário. Ajuda houve e continua havendo, mas Euller Miller conta que depende totalmente da Bolsa Permanência. “Quando a Universidade entrou em greve e o R.U. (Restaurante Universitário) fechou, eu não tinha onde comer”.
O filme mostra outros indígenas que estudam em universidades paranaenses. Um deles faz Medicina. O grupo conta que sofreu (ainda sofre) algum tipo de discriminação. Para alguns sul-mato-grossenses, eles deveriam voltar às suas tribos de origem, pois são “preguiçosos, vagabundos, bugres, pobres, esfomeados”. Outros os recebem de braços abertos — três deles foram prestigiar a sessão no Espaço Unibanco curitibano e posaram para fotos com o colega universitário.
“Euller Miller entre Dois Mundos” segue à risca o que propõe seu título: mostrar o trânsito de um jovem indígena de seu universo de origem (uma comunidade Kaiowá) ao universo da maior e mais disputada universidade pública do Estado do Paraná. Para tanto, Severo destaca o processo individual de Euller em busca do conhecimento e a luta coletiva dos indígenas brasileiros por sua sobrevivência. E deixa, para nossa reflexão, diversas perguntas: é possível continuar indígena aquele que se integra à sociedade branca? Ao tornar-se aluno de uma universidade federal, um indígena não estaria se afastando em definitivo de suas raízes ancestrais? Dupla de MCs, os Brô, que canta rap, continua formada por indígenas? É possível, para um estudante de Medicina, seguir o rigor da ciência e, ao mesmo tempo, respeitar os rituais e as plantas usadas pelo pajés para curar?
Fernando Severo, amparado pela professora Ana Elisa de Castro Freitas, grande defensora das cotas de inclusão, acredita que sim. Que os saberes não são excludentes, mas sim complementares. Por isto, um clip protagonizado pelo Brô MCs ganha grande destaque na narrativa e se faz acompanhar de depoimento de seus integrantes. Numa apresentação, eles foram olhados com desconfiança. Depois que mostraram suas criações, provaram que podem ser rappers e indígenas ao mesmo tempo.
Quem se acostumou com os filmes poéticos de Fernando Severo, diretor, roteirista, montador e professor de cinema, com 40 anos de profissão, vai estranhar a narrativa clássica de “Euller Miller”. O filme se compõe com depoimentos (de indígenas, funcionários da Funai, professores e especialistas no assunto), sem narração off, mas não esconde sua aposta primordial na informação. Nem se envergonha de, em certos momentos, ser didático.
O cineasta justifica sua opção: “Fui convidado por ex-alunos meus, que montaram a produtora O Quadro, a dirigir projeto premiado pelo Edital Prodav-TVs Públicas, sobre a presença de indígenas nas universidades do Paraná. Me entreguei ao estudo do assunto e encontrei, entre outros, o Euller, estudante de Odontologia, e vi que tinha em mãos um tema e um personagem que me permitiriam fazer um documentário consistente”.
Vale reforçar o questionamento: sendo o universo indígena tão ligado à natureza, não seria indicado, em essência, a ganhar forma como um filme poético, sensorial, voltado à experimentação?
Severo responde com novos argumentos: “fizemos um filme para ser exibido na TV e é consenso que este veículo não convive bem com o silêncio. Filmes mais sensoriais ficam maravilhosos nas telas grandes dos cinemas, mas, quando chegam à TV, se chegam, raramente são vistos. Quando o espectador depara-se com silêncios recorrentes, ele muda de canal. Esta é a triste realidade”.
O cineasta dá testemunho pessoal: “Xetá, meu filme anterior sobre este grupo indígena, segue vivo. É o mais acessado, entre meus trabalhos, no Youtube. Já os mais poéticos, não têm boa aceitação, pois a telinha do celular, muito pequena, é inadequada para obras desta natureza”.
“Euller Miller entre Dois Mundos” tem exibição garantida na rede de TVs públicas e — garantem o cineasta e a professora Ana Elisa — terá longa vida em circuitos universitários, pois “mostrará a importância das cotas para inclusão de indígenas em nossas instituições de ensino”. Antes, porém, de chegar às TVs públicas, o filme será lançado nos cinemas pela Elo Company, com apoio de Edital de Distribuição da Fundação Cultural de Curitiba.
E o que o tímido Euller Miller Martins de Almeida achou do documentário de Fernando Severo? Durante o debate, no Olhar de Cinema, emocionado e, por isto, com dificuldade de se expressar (isto não acontece no filme), ele garantiu que, no começo, pediu para pensar se aceitaria expor sua vida num longa-metragem. Dois dias depois, aceitou. E mais: ele e sua família, os pais, a irmã e os quatro avós maternos e paternos, ficaram encantados com o respeito, marca da pequena equipe de Fernando Severo, por eles.
Dois temas que costumam causar grande controvérsia em debates (e filmes) sobre o mundo indígena — a conversão ao Evangelismo protestante, promovida por missões estrangeiras, e a sexualidade — estão presentes no filme, mas de forma muito discreta. No segundo caso, nas entrelinhas (ou “entre-imagens-e-falas”).
Sobre o polêmico papel das missões protestantes junto às comunidades indígenas (parte da família de Euller Miller é evangélica), Fernando Severo comentou durante no debate: “não gosto de posições extremadas, sem nenhum matiz. Como condenar missionários alemães, por exemplo, que chegam a uma aldeia indígena onde falta tudo, inclusive atendimento hospitalar, e lá implantam um bom hospital?”