Festival de Gramado
Por Maria do Rosário Caetano, de Gramado
Sem o excluído (por vontade da diretora Daniela Thomas) longa-metragem “O Banquete”, as competições de Gramado, em sua sexta noite, reduziram-se a dois curtas-metragens, os ótimos “Estamos Todos Aqui”, filmado em imensa favela na Baixada Santista (próximo a Vicente de Carvalho, no Guarujá) e no Porto de Santos, e “Nova Iorque”, de Pernambuco, com a atriz Hermila Guedes em estado de graça. E, também, ao longo boliviano “Averno”, de Marcos Loaysa, fábula recheada de mitos e perseguições.
No terreno das homenagens, Gramado entregou o Kikito de Cristal à atriz (e cantora) uruguaio-argentina Natalia Orero, mais conhecida na Rússia que no vizinho Brasil. O prestígio da cantriz na terra de Eisenstein é tão grande, que ela gravou uma das músicas de embalo da recente Copa do Mundo. E lá faz temporadas como cantora, regularmente. Tudo graças ao êxito da telenovela argentina “Muñeca Brava” (em tradução livre, “Boneca Geniosa”, ou como preferiram os de língua inglesa, “Wild Angel”).
A história de Natalia é curiosa. Linda e alta, muito alta, ela sonhava em ser modelo ou atriz ou cantora. Conseguiu exercer os três ofícios e agregar a eles outra profissão em que é bem-sucedida, empresária. Candidatou-se aos mais diversos testes e foi selecionada para ser “paquita” na versão argentina do “Xou da Xuxa”. Não esconde este dado de sua biografia e recorda-se, com carinho, da convivência com a apresentadora Xuxa Meneghell. Conta que conheceu muitas cidades brasileiras e que escolheu a ilha de Fernando de Noronha como cenário de seu casamento. Em meados dos anos 1990, estreou como atriz de TV. Estourou com “Muñeca Brava”(1998/1999), novela de 270 capítulos, de êxito similar ao de nossa “Escrava Isaura”. A fama de Natalia na Rússia é proporcional à de nossa Lucélia “Isaura” Santos na China.
Além de atuar em novas telenovelas, Natalia estreou no cinema, justo num blockbuster (ou “tanque”, como se diz em espanhol), “Um Argentino em Nova York” (1998, quase dois milhões de espectadores). Novos trabalhos se seguiram ao lado de astros portenhos da grandeza de Norma Aleandro e Leonardo Sbaraglia. Em seu país natal, o Uruguai, ela atuou em “Miss Taquarembó”. No país adotivo, sob direção de Lucia Puenzo, integrou o elenco de “Wakolda” (no Brasil, “O Médico Alemão”), filme sobre o médico nazista, Joseph Mengele, que teria se escondido na Patagônia, para sequenciar seus experimentos em busca da raça perfeita. “Meu papel”— contou Natália — “me faz arrepiar, só de pensar nele: uma mãe que entrega filhos gêmeos a Mengele”. Mas o longa-metragem mais fascinante de Natalia Orero é “Infância Clandestina”, de Benjamin D’Ávila, coprodução com o Brasil, roteirizada pelo diretor, egresso da Escola de Cinema de Cuba, junto com o colega paulista, Marcelo Muller. O filme foi indicado, pela Argentina, a concorrer ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Natalia o reconhece como um dos melhores momentos de sua trajetória cinematográfica, ”um filme pequeno que chegou tão longe”.
Mas o filme que mais deu fama à cantriz rioplatense (ela gosta desta definição, pois abarca seu país de nascimento e o de adoção) foi o melodrama “Gilda, Não me Arrependo deste Amor”, de Lorena Muñoz, no qual interpreta a cantora e compositora de cumbias, Miriam Alejandra Bianchi, vulgo Gilda (1961-1996), autora de hits como o que dá nome ao filme. Ao morrer, num acidente (um caminhão bate no ônibus com o qual excursiona, matando a ela, à mãe, à filha mais velha, três de seus músicos e o motorista). Uma tragédia que a levou precocemente, aos 35 anos, no momento em que vivia seu auge como cantora popular. Por seu desempenho, Natalia foi indicada a vários prêmios, entre eles ao Platino de melhor atriz.
Foi, aliás, na cerimônia de entrega dos Prêmios Platino, em Punta del Este, que Natália desempenhou papel de “embaixadora do cinema ibero-americano”. A terceira edição da láurea, que pretende premiar os melhores do cinema de expressão espanhola e portuguesa, defrontou-se com um problema: nenhum filme brasileiro, oriundo, pois, do maior e mais populoso país do mundo ibérico, recebera indicação (artística ou técnica). E havia filmes de qualidade, em especial “Que Horas Ela Volta?”, de Anna Muylaert. Mas o estrago estava feito. A Egeda e a Fipca, organismos cinematográficos que patrocinam o Platino, em parceria com Academias de Cinema ibéricas, tentou atenuar o estrago, pedindo a Natalia, apresentadora da festa com colega espanhol, que cantasse “Garota de Ipanema”. Assim, a língua portuguesa seria festejada já no abrir das cortinas. “Cantei com suor nas mãos”— confessou ela — “esta lindíssima canção, da qual sou fã, amo a Bossa Nova, uma maravilha, e não perco um show de Marisa Monte”. Para corrigir, com maior empenho, a falha de sua terceira edição, um Platino especial (filme com maior contribuição aos Direitos Humanos) foi entregue a “Que Horas Ela Volta?”(Anna Muylaert foi representada por sua atriz Karine Teles) por Riogoberta Menchu, detentora do Prêmio Nobel da Paz.
Ao receber o Kikito de Cristal, Natalia externou sua alegria em saber que o prêmio (criado em 2002) era entregue, de forma consecutiva, a três mulheres, três atrizes rioplatenses. E destacou a crescente participação da mulher na direção de filmes. “Sei”, contou ela, que “no Brasil, já há políticas públicas para estimular a presença feminina no comando de filmes. Torço para que tais políticas sejam implementadas também na Argentina, Uruguai e outros países da América Latina”.
“Averno”, do boliviano Marcos Loaysa, quarto concorrente da competição latino-americana, chegou bem recomendado. Primeiro, pelo longa de estreia do realizador, “Cuestion de Fé”, road movie que encantou Gramado nos anos 1990, e pelo prêmio de melhor longa latino-americano no Bafici, festival de cinema independente de Buenos Aires. Mas o filme, que marca uma grande mudança de estilo (do realismo para o mágico) de Loaysa, mais intrigou que entusiasmou o público.
No debate, as dúvidas eram muitas. O que significa “Averno”? O filme se inspirou, além da mitologia andina, também na mitologia grega? Como o público boliviano recebeu o sexto longa do realizador? A banda Fusion de Los Andes, convocada para tocar num funeral, tem existência real, ou é fruto de criação do roteiro?
Antes das respostas, vale uma sinopse do filme: Averno é um lugar imaginário da cultura andina. Nele, uma espécie de infra-mundo, convivem vivos e mortos, transfigurados todos. Tupah (o ator Paolo Vargas) é um jovem engraxate, que se vira, com seus amigos, num bairro pobre de La Paz. Um dia, um mensageiro mal-encarado ordena que o rapaz encontre seu tio, um grande músico (da banda Fusion de Los Andes, de repertório composto com boleros de cavalaria) para somar-se a uma banda militar. Juntos, deverão executar trilha fúnebre no enterro de um poderoso. Para dar conta do desafio, Tupah terá que enfrentar muitos empecilhos (gangues, um lutador de rua, um brutamontes de nome Minotauro etc). O resultado exige que o espectador aceite a proposta lúdica do filme e deixe de lado uma posturas mais cerebrais.
“Averno”, coprodução entre a Bolívia e o Uruguai, fez sucesso na parte andina do país de Jorge Sanjinés, ou seja, no altiplano (em especial na capital La Paz). Vendeu 30 mil ingressos (num país de onze milhões de habitantes), mas “não funcionou na parte oriental-tropical, que tem seu centro nevrálgico em Santa Cruz de la Sierra”, contou Santiago Loaysa, filho do diretor e produtor do filme, junto com o irmão Alejandro. E disse mais: “o filme é a maior bilheteria boliviana do ano, neste momento em que estamos revigorando nosso diálogo com o público, depois de momentos de imensa retração”. Momento que “não pode ser comparado à década de 1990, quando “Cuestion de Fé” vendeu 250 mil ingressos, tornando-se a segunda maior bilheteria histórica do país”.
A banda Fusion de los Andes existe e dois de seus integrantes estão no filme, mas constitui liberdade narrativa colocar músicos dedicados ao bolero de cavalaria junto a bandas militares, executantes de temas fúnebres. Aliás, garantiu Marcos Loaysa, “não fizemos um filme para antropólogos e cientistas sociais. Fizemos uma narrativa de entretenimento, inspirada na cultura de povos indígenas como os quechua, os aymara e os guarany”.
Os curtas-metragens da sexta noite foram muito elogiados, em especial, por suas atrizes. Hermila Guedes, densa e afetiva em “Nova Iorque”, e a transexual Rosa Luz, que imprime vigor e transgressão a “Estamos Todos Aqui”. Neste filme, moradores de área cobiçada pela especulação imobiliária, na Baixada Santista, são desalojados (seus barracos destruídos e alguns deles cadastrados para receber “futura moradia”). Mas há os que resistem. Na correria pela sobrevivência, Rosa Luz, aos 17 anos, constrói seu barraco na lama. E corre mais que a Lola, de “Corra Lola Corra”, o filme germânico. Politizado, o casal homoafetivo que dirige o filme (o guarujaense Chico Santos e o paulistano Rafael Mellin) avisou que “luta por moradia, luta de classe, luta social, tudo se une, se imbrica”. A ausência de Rosa Luz, rapper e atriz nascida no Gama-DF (ela está no longa “Chega de Fiu-Fiu” e fez um comercial da Avon), foi justificada por falta de grana. “Nosso filme” — explicaram Chico e Rafael — “é uma produção independente e Rosa Luz também pena para conseguir trabalho. O que ganha, mal dá para a sobrevivência”.
A presença de Hermila Guedes ao lado do ator mirim Juan Calado, recifense de nove anos, do diretor Leo Tabosa e do produtor Arthur Leite, foi muito festejada. “Nova Iorque”, filmado no sertão de Pernambuco, encantou a todos ao unir os sonhos de um menino criado, sem amor, pela madrasta (Marcélia Cartaxo) e que busca afeto na professora Hermila (a atriz emprestou seu nome à personagem). E, também, num gato imaginário (que evoca a montagem nova-iorquina de “Cats”). O curta, quase um média-metragem, venceu, semanas atrás, o Cine Ceará.