Petrus Cariry mostra “O Barco” no Cine Ceará

Por Maria do Rosário Caetano, de Fortaleza

A noite inaugural da décima-oitava edição do Cine Ceará – Festival de Cinema Ibero-Americano de Fortaleza somou festa, evocação fúnebre e cinema sensorial.

A festa ficou por conta do cearense, de Sobral, Renato Aragão, de 83 anos, homenageado por sua trajetória no cinema e na TV. Ele recebeu o Trofeu Eusélio Oliveira das mãos de Fábio Porchat, representante da nova geração de humoristas brasileiros e um dos pilares do grupo Porta dos Fundos. O Cineatetro São Luís estava abarrotado e Aragão foi aplaudido de pé. Contou que está preparando seu quinquagésimo-primeiro longa-metragem, com filmagens previstas para o primeiro semestre de 2019, mais uma vez sob o comando de João Daniel Tikhhomiroff, autor do remake modernizado de um dos maiores clássicos do quarteto Didi, Dedé, Mussum e Zacarias, “Os Saltimbancos Trapalhões”.

O agora octogenário intérprete de Didi Mocó evocou a alegria de ser homenageado em sua terra e brincou: “me perguntaram o que era melhor — viver no Rio ou no Ceará? Sabem o que respondi? No Ceará, porque no Ceará corre um rio, e o Rio não tem um Ceará dentro”. Fãs mais afoitos tomaram a primeira fila do cinema dispostos a tudo para colher autógrafo e selfie com o conterrâneo ilustre. O que foi feito sem que os seguranças pudessem impedir. O amoroso assédio só não demorou uma eternidade, porque Fábio Porchat teve presença de espírito e com sua prática de ‘stand up comedy’ assumiu a função de mestre de cerimônia, podou excessos dos fãs e fez, ele mesmo, as fotos com os celulares que se multiplicavam.

Houve, também, homenagem ao médico e reitor da Universidade Federal do Ceará, Henry Campos, e exibição de curta de animação realizado por oficina de crianças e adolescentes, sob supervisão do cineasta Thelmo Carvalho e patrocínio da Enel, empresa de energia.

No momento “tributo fúnebre” da noite, prestou-se homenagem à trajetória do argentino-brasileiro Tito Almeijeiras (1944-2018), que morrera, vítima de parada cardíaca, na manhã daquele mesmo dia, sábado, 4 de agosto, justo o data da abertura do Cine Ceará. Tito radicou-se em Fortaleza, onde atuou como professor e produtor de cinema (inclusive do longa “As Tentações do Beato Sebastião”, de José Araújo).

Filho de família humilde, nascido na grande Buenos Aires, Tito iniciou sua carreira no cinema como integrante do grupo Cine Liberación, comandado por Fernando Solanas e Octavio Getino, no final dos anos 1960. O sucesso de “La Hora de los Hornos”, monumental e festejado documentário latino-americano (com 4 horas de duração), mobilizava festivais e a juventude peronista. Os cinco fundadores do grupo Liberación dividiram tarefas. Coube a Tito, filho de sindicalistas argentinos, cuidar de exibições de “La Hora de los Hornos” em sindicatos e grêmios espalhados por diversas cidades. Com o triunfo do golpe militar de 1976, o jovem peronista exilou-se no Brasil. Aqui, viveu por quatro décadas, dedicado por inteiro à produção, difusão e magistério cinematográficos. Foi professor no Centro Cultural Dragão do Mar, em Fortaleza, e na Escola Internacional de Cinema e TV de San Antonio de los Baños, em Cuba.

Para completar o tributo a Tito, evocado primeiro com um pequeno documentário, a atriz cubana Laura Ramos, uma das apresentadoras da edição deste ano, chamou ao palco a produtora Bárbara Cariry, que leu emocionado texto escrito por seu pai, o cineasta Rosemberg Cariry, em memória do amigo que morrera naquela triste manhã de sábado.

Finda a evocação fúnebre, o cineasta Petrus Cariry, acompanhado dos atores Verônica Cavalcanti e Nanego Lira, apresentou seu quarto longa-metragem, “O Barco”, inspirado livremente em conto de Carlos Emílio Corrêa Lima (do livro “Ofos”). Trata-se do primeiro dos nove concorrentes ao Troféu Mucuripe (três brasileiros, um português e cinco ibero-americanos de expressão espanhola).

“O Barco” ambienta-se numa ilha de pescadores, imprensada entre longilíneas falésias e a imensidão do oceano. Uma mulher, Esmerina (Verônica Cavalcanti), é mãe de 26 filhos. O pai, Pedro (Nanego Lira), vive em silêncio sepulcral. Um cego (Everaldo Pontes), uma espécie de Thiresias tropical,que  atua como a voz da sabedoria entre os pescadores.

Um cartilha com as letras do alfabeto, que por acaso chegara à comunidade, abalou (e seduziu) de tal modo, o pequeno mundo de Esmerina, que ela deu a cada filho o nome de uma letra. Um deles, “A” (Rômulo Braga), sente necessidade de conhecer o mundo e deixar o povoado. Uma personagem misteriosa, Ana (Samya de Lavor), chega pelo mar como uma sereia, uma Iemanjá ou uma Sherazade das mil e uma noites. Com seu poder de fabulação, ela começa a contar histórias e sua presença, sensual e sedutora, acabará mudando o destino de “A”.

Petrus Cariry é, além de diretor do filme, co-roteirista (com Rosemberg Cariry e Firmino Holanda), montador (com Firmino) e, principalmente, diretor de fotografia. As imagens do filme são arrebatadoras. Há imensa beleza plástica nas imagens externas colhidas na Praia das Fontes, em Beberibe, com suas falésias de tons variados e argilosos. Um dos pontos turísticos mais belos do Ceará (a 80 km de Fortaleza), a Praia foi escolhida como cenário externo, mas não identificado. Não fica claro onde vivem Esmerina, seus filhos e os pescadores. Petrus constrói, também, sequências em interiores de sublime beleza. Os personagens, todos de peles tostadas pelo sol (menos Ana, que chega e cria visual próprio, colorindo o rosto com pós nos tons das falésias), aparecem sempre iluminados só por lampiões ou candieiros.

O filme imprime universo fabular muito próprio e pode confundir os que estão acostumados só a estórias lineares. Aqueles, porém, que desejarem viver experiência sensorial e poética, irão encantar-se com a história de uma mulher que tenta entender os mistérios da palavra escrita, descobrindo que algumas poucas letras podem gerar sentidos como “Deus, Deusa, Adeus”, por exemplo. E que outra mulher, Ana, com seu poder de evocar narrativas, pode funcionar como força transformadora numa comunidade perdida no tempo.

“O Barco” tem lançamento previsto, a cargo da distribuidora Sereia Filmes, para o primeiro semestre de 2019. Neste segundo semestre, percorrerá o circuito de festivais. E Petrus já finalizou seu quinto longa-metragem, “A Jangada de Welles”, documentário realizado em parceria com Firmino Holanda. A dupla é autora de um DOCTV (“Cidadão Jacaré”) sobre tema similar — a vinda de Orson Welles ao Brasil (Ceará e Rio de Janeiro) para realizar episódios de “It’s All True”. Agora, o novo longa (“Cidadão Jacaré” é um média-metragem) ganhou escopo bem mais abrangente. E, ano que vem, Petrus realizará seu sexto longa, “Mais Pesado que o Céu”.

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