A Última Abolição
O documentário “A Última Abolição”, que estreia nesta quinta-feira, 18 de outubro, em São Paulo, Rio, Brasília, Porto Alegre, Curitiba, Salvador e Aracaju, marca a estreia da roteirista Alice Gomes na direção. Escorada em equipe feminina (as produtoras Bianca de Felippes e Carla Esmeralda, a entrevistadora Luciana Barreto, a montadora Natara Ney, a fotógrafa Marcela Bourseau e a coprodutora Cristiane Arenas) – tendo como supervisor artístico o cineasta Jeferson De, bendito fruto entre as mulheres – o filme compõe-se com depoimentos capazes de provocar intensos e acalorados debates.
Afinal, Alice buscou fontes novas e corajosas, algumas bem atrevidas, para abordar um dos temas mais polêmicos de nossa história: a abolição da escravatura, fruto da assinatura de uma princesa (Isabel), com pena de ouro (daí o nome Lei Áurea), em 13 de maio de 1888. Portanto, há 130 anos.
O que aconteceu no dia seguinte, o 14 de maio? Havia programas de governo para atender à imensa massa de trabalhadores “libertada”? Ruy Barbosa mandou mesmo destruir a memória documental da escravidão? Houve projeto de branqueamento higienizador para evitar que o Brasil se transformasse em uma nação negra? Por que os abolicionistas brancos (Joaquim Nabuco e Ruy Barbosa à frente) se tornaram próceres da República e os abolicionistas negros (José do Patrocínio, em especial) enfrentaram dificuldade até de sobrevivência?
Para responder a estas e a muitas outras perguntas, a equipe feminina comandada por Alice Gomes ouviu estudiosos da escravidão, muitos deles, negros. E alguns brancos, como o incansável João José Reis, da UFBa (Universidade Federal da Bahia). E fato, que merece registro (por sua raridade), ouviram muitas pesquisadoras mulheres, cultas e muito articuladas.
João José Reis é um provocador no melhor sentido da palavra. Sereno, mas provocador. Ele começa colocando nitroglicerina na fogueira. Diz que os quilombos eram lugares terríveis, nada a ver com imagens idealizadas em tempos recentes. Neles – assegura – não havia igualdade, nem abolicionistas.
Como assim? Ele esclarece: “esta visão é anacrônica”. Ou seja, fruto de olhares contemporâneos. No século XVII, não havia movimento abolicionista. Ele só se estruturaria nos séculos seguintes. Então, mesmo Palmares, o mais longevo e conhecido dos quilombos, era habitado por pessoas que haviam fugido e viviam em condições muito precárias e desiguais.
Mais tarde, o professor da UFBa fará declaração ainda mais perturbadora: “os jovens negros do Brasil de nossos dias vivem pior do que viviam na época da escravidão”. Depois de alertar que não está, jamais!, defendendo volta à escravidão, ele explica sua afirmação. Naquele tempo, mesmo sendo escravo, o negro, em especial o jovem, por ser “mercadoria” que rendia lucros a seu dono, era defendido por este. Perdê-lo significava prejuízo. Hoje – indaga – quem defende os jovens negros (muitos morrem antes dos 30 anos nas periferias brasileiras) da sanha dos policiais?
O desembargador Paulo Rangel, pós-doutor em Ciências Penais, é outro que traz poderosos questionamentos à inserção do negro na vida social brasileira. E o faz estudando o Código Penal, lembrando que este texto legal, já em 1890, fora escrito para condenar os ex-escravos. Eles saíam das senzalas para “serem punidos por curandeirismo, vadiagem, mendicância ou por jogar capoeira”. Todas estas práticas eram passíveis de pena de prisão aos que fossem maiores de 14 anos.
Um estudioso branco, depois de citar o livro “O Diploma de Brancura – Política Social e Racial no Brasil – 1917-1945” (de Jerry Dávila, Editora Unesp, 2005), descreve o trabalho desenvolvido por intelectuais (como Fernando Azevedo, entre muitos outros), para respaldar políticas de Estado voltadas ao embranquecimento de nossa população. Textos de educadores de alta reputação pregavam a urgência de buscar mão-de-obra branca para impedir que os negros, então presença majoritária no país, fizessem do Brasil uma nação não-europeia. Aí, houve incentivos financeiros para que italianos, em especial, para cá viessem trabalhar nas lavouras e fábricas. Os negros foram, então, ainda mais marginalizados.
Muitos depoimentos se somarão, em “A Última Abolição, para questionar o conceito freyriano de “democracia racial brasileira”. Suely Carneiro, que encerra o filme com depoimento emocionante, assegura, com todas as letras, tratar-se, na verdade, de “uma falácia racial brasileira”.
O filme discute, ainda, temas candentes como cotas nas universidades e o direito à reparação. E mostra que é falsa a ideia de que o movimento coletivo e organizado de negros brasileiros seja cópia dos movimentos black norte-americanos. “Antes dos Panteras Negras, de Malcoln X e de outras lideranças dos EUA, o Brasil já organizara uma importante Frente Negra”. E esta, sim, teria influenciado os Black Panther e outros líderes e movimentos estadunidenses.
Do ponto de vista do conteúdo, “A Última Abolição” é de riqueza concreta. Os muitos depoentes, mulheres e homens, negros e brancos, falam com calma e sólida argumentação. Um deles, negro, defende a Lei Áurea e a importância da Princesa Isabel. Lembra que ajudou a criar o “20 de Novembro”, Dia de Zumbi dos Palmares e da Consciência Negra, mas que jamais negará que o “13 de Maio” foi data significativa, pois simbolizou/coroou luta de décadas do movimento abolicionista.
Outro depoente defenderá Ruy Barbosa: ele não queimou a memória da escravidão, mas sim notas fiscais de senhores de escravos, que queriam utilizá-las para exigir indenização do Governo, pelas “perdas econômicas” geradas pela abolição.
E do ponto de vista da linguagem? Estamos diante de mais um documentário que soma dezenas de “cabeças falantes”?
Num mundo assoberbado pelo excesso de informação, temos condições de absorver tamanha carga de ideias e análises? Tantos depoimentos? Não se deveria apostar, também, em elementos sensoriais, capazes de dar uma espécie de repouso reflexivo aos nossos neurônios?
Para discutir estes aspectos, a Revista de CINEMA conversou com Alice Gomes.
Para evitar que o filme fosse construído apenas como um “cabeças falantes”, você usou intervenções visuais ou gráficas em gravuras (Debret), fotos e desenhos. Acredita que foram suficientes?
Alice – Esse foi um dos principais desafios na construção da linguagem do filme, como evitar fazer um filme histórico que aborda um período pré-fotografia, ou com uma fotografia ainda incipiente, e não ser contado apenas com “cabeças falantes”. Optamos, por exemplo, por destacar frases originais das personalidades abordadas no filme e trazer essas frases como um elemento gráfico. Outros textos também viraram elementos visuais que trazem ritmo para a narrativa. Já quanto às imagens de arquivo, sabíamos que, mesmo sem fotografia, existe uma vasta produção iconográfica do período, como ilustrações, mapas e pinturas, mas não queríamos simplesmente usar as mesmas imagens que já conhecemos dos livros de história, queríamos trazer uma modernidade para essas imagens históricas. Para isso, optamos por usar uma linguagem visual moderna e dinâmica, com recortes e destaques que conduzem o olhar. Cinema é uma construção em equipe e para essa questão das imagens iconográficas contei com a parceria da Patrícia Pamplona, da Ficheiro Pesquisa, que ficou encarregada da pesquisa das imagens, e com a Radiográfico, estúdio de design com uma proposta visual moderna e autoral, que realmente agregou muito à estética do filme.
Seu documentário traz muitas vozes negras para o centro da narrativa. Todas muito calmas, serenas, reflexivas, amorosas. Isto foi intencional? Ou coincidência?
Alice – O tom usado foi intencional e cuidadosamente pensado. Queríamos fazer um filme agregador, que convidasse não só o espectador já iniciado nos temas e lutas do movimento negro no Brasil, mas também aquele espectador que não tem um interesse prévio no tema, conquistar esse espectador era e é fundamental para a mensagem do filme. Para isso, optamos por realizar um documentário sereno, convidativo. Ao escolher entrevistados que dominam seus temas em suas áreas de pesquisa, já fizemos um recorte muito específico, pautado no conhecimento profundo. A serenidade é também dos próprios entrevistados, porque o conhecimento embasado traz essa característica da segurança naquilo que se está falando. Para a escolha dos entrevistados e condução das entrevistas, contei com a parceria da jornalista Luciana Barreto, que pesquisa e milita há mais de 10 anos nas causas do movimento negro no Brasil e na luta antirracista. A interlocução do entrevistado com a entrevistadora também foi importante para construir essa atmosfera amorosa e reflexiva.
Por que há pouca música no filme (som de atabaques e uma ou outra composição cantada), sendo a música uma das mais fortes contribuições dos negros à cultura brasileira? Questões de direitos autoral? Ou confiança no poder da palavra dita, que foi priorizada, em detrimento de procedimentos mais sensoriais?
Alice – Eu acho até que tem bastante música! (risos!) Não foi uma questão de direitos ou de orçamento, foi uma proposta pensada mesmo. Toda a trilha sonora do filme ficou a cargo do compositor e músico Tiganá Santana, que além de excelente músico é também um acadêmico, um grande estudioso das sonoridades de origem e influência africanas. Não queríamos usar muitas músicas com letra, por exemplo, para não comprometer o entendimento das falas do filme. De certa forma, sim, a confiança no poder da palavra dos nossos entrevistados foi determinante. Novamente, entra aqui a questão de ampliar o discurso, torná-lo o mais claro e potente possível. A música pontua e ajuda na dinâmica do filme, mas o principal é o discurso, o conteúdo. Tudo sempre contribuindo para a tal atmosfera amorosa e reflexiva a que você se referiu.
A Última Abolição
Direção: Alice Gomes
Produção: Gávea Filmes e Esmeralda Produções, em parceria com a Globo Filmes, GloboNews e TV Escola
Duração: 94 minutos
Entrevistados: Alexandre do Nascimento (prof. e Fundador Pré-Vestibular para Negros e Carentes), Álvaro Pereira do Nascimento (prof. Dr. História na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ), Amilcar Araújo Pereira (prof. De Ensino de História Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ), Ana Flávia Magalhães Pinto (profa. de História da UnB), Ângela Alonso (profa. de Sociologia da USP), Antônio Carlos Higino da Silva, doutorando da UFRJ), Elciene Rizzato Azevedo, historiadora da Universidade Estadual de Feira de Santana), Fernando Conceição (prof. pesquisador em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia – UFBa), Giovana Xavier (profa. Prática de Ensino de História da UFRJ), Hebe Mattos (profa. titular de História do Brasil, da UFF), Humberto Adami (advogado e mestre em Direito, presidente da Comissão Nacional Verdade da Escravidão OAB), João José Reis (historiador da UFBA), Nielson Rosa Bezerra (prof. e coordenador do Museu Vivo do São Bento, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, e da Faculdade de Belford Roxo), Paulo Rangel (desembargador e pós Doutor em Ciências Penais, da UERJ), Sueli Carneiro (filósofa, diretora do Geledés – Instituto da Mulher Negra), Tom Farias (escritor, pesquisador e roteirista), e Wlamyra Albuquerque (profa. associada de História do Brasil e pesquisadora CNPQ, UFBa).
Por Maria do Rosário Caetano
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