Entrevista: Vladimir Carvalho
Por Maria do Rosário Caetano
O documentarista paraibano-brasiliense Vladimir Carvalho tem 84 anos e, mesmo assim, corre de um lado para outro, como se fosse um jovem de trinta. Semanas atrás, assistiu a dezenas de filmes na condição de integrante do júri do festival É Tudo Verdade. Encerrados os trabalhos, correu para o Rio de Janeiro, onde finaliza seu nono longa documental, “Giocondo”, cinebiografia do velho militante comunista, grande amigo do conterrâneo Marighella. “Houve uma época” – brinca – “em que o PCB era conhecido como Partido Comunista Baiano, tantos eram seus integrantes vindos de lá”. E que ninguém conclua que ele pensa em aposentar-se. Vladimir já está de olho em outro projeto, que o ocupa e apaixona há anos, um longa sobre a transposição das águas do São Francisco, o rio da unidade nacional.
Neste sábado, 27 de abril, o cineasta e professor da UnB por quase 40 anos, corre para Brasília, cidade que escolheu para viver, depois de deixar sua Paraíba natal, passar pela Bahia (foi colega de Caetano Veloso, na UFBa) e exercer, no Rio, o jornalismo (e o cinema, como assistente de Arnaldo Jabor, em “Opinião Pública”).
Brasília o chama de volta, porque uma escola de samba, a Aruc (Associação Recreativa Unidos do Cruzeiro), o convocou para série de atividades artístico-culturais. Uma delas consiste na recriação do Cineclube Gavião. O filme escolhido foi “Rock Brasília”, que Vladimir realizou há oito anos e que lhe rendeu o prêmio máximo no Festival de Paulínia. Ele vai mostrá-lo e debatê-lo com a comunidade cruzeirense.
A Aruc vai reviver, também, os Concertos Gavião, dedicados ao rock e à MPB, realizados ao ar livre, defronte à sede da agremiação mais premiada do Carnaval candango. O concerto, que reinaugurará a temporada gavião, homenageará Cássia Eller, cantora lírica e, depois, roqueira famosa, que morou no bairro (hoje Região Administrativa) do Cruzeiro durante sua juventude. A mãe dela – Nancy Eller – também cantora, será uma das atrações da festa musical e cinematográfica.
Nesta entrevista à Revista de CINEMA, Vladimir fala de “Giocondo”, discute a utilização de recursos ficcionais (ou emprestados à animação) no documentário e concorda com uma das ideias mais provocadoras de Jean-Claude Bernardet. Para o professor da USP, os documentaristas brasileiros costumam evitar “zonas de sombra” e, assim agindo, transformam seus personagens em verdeiros santos.
Autor de quase três dezenas de curtas e médias-metragens e de oito longas, Vladimir pondera, não de todo conformado, que pelo menos estes (os de longa duração) estão disponibilizados em DVD ou na programação de emissoras de TV. Ele acaba de lançar, pela Bretz, o DVD de “Cícero Dias, o Compadre de Picasso”, seu oitavo longa.
Grande contador de histórias, repórter das Ligas Camponesas, parceiro de Eduardo Coutinho em “Cabra Marcado para Morrer”, Vladimir tem muito o que lembrar. E, nesta entrevista, ele conta que entrevistou bambas do samba como Pixinguinha e João da Baiana, participou da última coletiva concedida por Donga, o pioneiro do “Pelo Telefone” (o chefe da Polícia mandou me chamar) e frequentou os ensaios da Mangueira (“minha escola!”).
Vladimir, que balanço você faz da trajetória de “Rock Brasília”? O filme foi muito premiado (venceu Paulínia). Uma só restrição foi feita a ele: tinha pouca música na trilha sonora. Você quis assim ou faltaram recursos para pagar direitos autorais?
O Festival de Paulínia foi, em rápido período, o objeto de desejo de todo cineasta brasileiro e, no meu caso, sair vencedor valeu como uma injeção de ânimo, um alento enorme para continuar filmando. Pena que o projeto do festival e todo o complexo que o abrigava, o teatrão construído e os estúdios foram pro vinagre por problemas de ordem administrativa que não vale aqui serem relembrados. Com relação ao “Rock Brasília”, o filme fez razoável bilheteria, com o apoio de boa crítica, para minha alegria, que tenho por ele especial carinho. Alguns cobraram mais música para o seu entrecho, porém a linha que adotei foi contar a história da rapaziada e não me arrependo. Foi uma experiência inesquecível e eu jamais cogitei de realizar um “musical”.
O que significa para você exibir o filme sobre a geração roqueira de Brasília numa quadra de escola de samba, no caso a Aruc? Acredita no renascimento de um cineclube, como o Gavião, num momento em que o streaming vai dominando corações e mentes?
Uma das minhas motivações para realizar um filme sobre o rock brasiliense foi justamente o lugar que o movimento assumiu desde seu surgimento no quadro cultural, que vai se delineando como algo genuinamente “nascido” aqui em Brasília desde a sua inauguração. O samba e o choro foram transplantados para o Planalto, trazidos prontos pelos sambistas dos morros cariocas que vieram servir inicialmente à burocracia e, em menor escala, como mão-de-obra na construção da cidade. No pacote, trouxeram também o futebol e o carnaval. Hoje, notam-se aqui traços também do frevo e do maracatu nordestinos. Entretanto, a geração que ultrapassou fronteiras e terminou surfando na mídia foi o rock, que aqui emergiu no início dos anos de 1980, já no impacto da transição da ditadura para o estado de direito. Constituída em sua absoluta maioria por jovens da classe média letrada, esta geração trazia em sua formação o perfil de gente viajada, filhos de diplomatas e professores com longos estágios na Europa e Estados Unidos, onde o rock and roll se tornara irreversível. Esse é o aspecto que quis destacar – o rock de Brasília era como uma flor do cerrado, só afloraria aqui.
Ressalve-se, porém, que tenho por formação e origem nordestina enorme identificação com a cultura popular em toda a sua extensão, o que naturalmente inclui uma curtição do samba, do choro, do frevo e do baião. No Rio de Janeiro, onde fui repórter de jornal nos anos de 1960, entrevistei Pixinguinha e João da Baiana, frequentei os ensaios da Mangueira (minha escola!) e participei da última coletiva concedida por Donga, o homem de “Pelo Telefone”, no MIS, de Ricardo Cravo Albin, passagens de que muito me orgulho. Com a Aruc tive uma ligação tão efêmera quanto significativa e inesquecível para mim: mal chegado a Brasília no início dos 70, integrei uma comissão julgadora do desfile de suas escolas de samba, inclusive, quando o carnaval era ainda na W-3 Sul. Fui convidado para tal por Tonico Amâncio (sim, o pesquisador e historiador do cinema), que por aqui passou longa temporada como assessor da Secretaria de Turismo. Aruc, como sempre acontecia e acontece, foi imbatível e soberana, arrebatou quase todos os ítens do desfile. Fiquei conhecendo o Hélio Santos, toda a moçada e todo o programa social e cultural da escola. Mais à frente fui distinguido com um troféu da Aruc, que tenho com muita honra em minha estante.
No caso do renascimento do Cineclube Gavião, que marcou época faz algum tempo – antes do sumiço dos cineclubes da nossa paisagem cinematográfica –, penso que não custa nada tentar trazê-lo de volta, sabendo, porém, que o cenário é outro em vista da difusão e maciça presença de outras mídias na onda digital que democratizou o consumo dos filmes. Talvez o Gavião prospere como lugar de encontro para discutir o cinema, como lugar de encontro de novos cineastas exibindo os seus próprios filmes e não mais os clássicos do passado, todos encontradiços nas prateleiras das lojas. Há poucos anos, frequentei na Lapa carioca um cineclube em que os frequentadores eram em sua maioria de novos cineastas e as sessões eram inteiramente dedicadas às suas produções. Verdadeira farra cinematográfica até altas horas, regada a caipirinha.
Você está mergulhado na vida de Gioconda Dias (1913-1987), baiano, contemporâneo e amigo de Marighella. Eles estiveram juntos em prisão em Fernando de Noronha e na Ilha Grande? Esta amizade, apesar das opções opostas que tomariam (um pela luta armada, outro por caminhos institucionais) foi duradoura na vida dos dois, ou eles tiveram rompimento brusco?
Houve um momento aí, pelo final dos anos 50 e início dos 60 do século 20, que o Comitê Central do Partido era em sua maioria constituído por baianos. Ali estavam, entre outros, o Marighella, o Alberto Passos Guimarães, o Jacob Gorender, o Mário Alves e o próprio Giocondo. Havia até uma auto gozação no circuito interno dos comunistas que brincavam com a sigla PCB, dizendo tratar-se do Partido Comunista Baiano e não Partido Comunista Brasileiro. Marighella era fascinante até a exuberância e Giocondo era afável, embora tímido, porém firme em suas convicções. Mas eram como irmãos que se admiravam mutuamente. Giocondo aprendera desde cedo o caminho do diálogo e das alianças a partir do trágico e desastroso episódio da Intentona Comunista de 1935, quando comandou a célebre tomada do principal quartel do Exército em Natal (RN). Baleado mortalmente, sobreviveu a duras penas. Muito mais tarde, já no ápice da luta contra a ditadura militar de 1964, o Marighella fora do Partido que se definira por uma linha de luta pela abertura democrática, houve um proverbial encontro dos dois velhos camaradas, numa conversa fraternal que durou nada menos do que dez horas ininterruptas. Um tête à tête ideológico exaustivo. Giocondo não conseguiu demover o amigo que, como se sabe, era convicto defensor e praticante da luta armada. Despediram-se, cada qual para o seu lado. Quase em seguida, Marighella seria assassinado pela repressão. Quanto à prisão conjunta dos dois, não encontrei, na bibliografia que percorri nem nas entrevistas com militantes, nenhuma alusão à prisão deles em Fernando de Noronha ou na Ilha Grande. Voltarei a consultar minhas fontes.
Giocondo Dias tinha, como Marighella, origem italiana? Ele integrou as Brigadas Internacionais que lutaram com os Republicanos na Espanha? Que outros momentos épicos você está selecionando para compor a trajetória dele? A tomada de Natal, no Levante de 1935, por três dias, terá espaço nobre no filme?
Giocondo Gerbasi Dias era de origem italiana, sim. Mas não lutou nas Brigadas Internacionais na Espanha nem na Segunda Guerra Mundial. Os dois grandes quadros do Partido que lutaram na Europa foram Apolônio de Carvalho e David Capistrano (pai), sendo detentores de medalhas e condecorações por atos heroicos. O levante de Natal é o meu ponto de partida no filme em fase de edição.
Como a clandestinidade foi a marca da vida de Giocondo? Deve haver grande precariedade de imagens em movimento (e até fotos) da Juventude e maturidade dele. Como você contornará esta limitação?
A escassez de imagens em movimento é um fantasma que me assombra desde muito, principalmente porque trabalho quase sempre com assuntos ligados à memória o que exige esforço redobrado e, como sabe, nossa memória visual é uma piada. Agora nesse filme nem é bom falar, em vista do foco voltado inteiramente para um homem que levou quase toda a vida encapsulado na clandestinidade, de aparelho em aparelho, de esconderijo em esconderijo. Daí minha opção pelos tons baixos, nada vibrantes da narrativa, depois de busca incessante, que já dura dois anos, em arquivos difíceis de encontrar, juntando-se a isso a ausência quase total de contemporâneos de Giocondo que, se vivo fosse, teria hoje 106 anos. Sem outra saída, o recurso incontornável foi apelar para depoimentos e entrevistas de pessoas credenciadas, como membros da sua família e raros outros que com ele conviveram.
Vladimir, hoje, mais do que nunca, o cinema documental dialoga, além da ficção, com a animação. Você buscará este recurso? Equilibrará informação com pegada sensorial e subjetiva? Sendo você também um militante histórico do PCB, vai colocar-se na história de seu personagem? Vocês foram amigos próximos?
Sempre procurei fazer o melhor de forma que o assunto falasse por si só, sem apelos a muletas, venham de onde vierem. Entendo que o presencial, se posso assim dizer, é insubstituível, porque em geral o trabalho da câmera resulta implacável, não dá para mascarar os objetos. Senti isso de maneira cabal durante a transição do documentário narrado, em voga antes dos 60 – com um texto e uma voz que contava a história e assumia personagens e pontos de vista – para o processo da entrevista gravada graças ao advento miraculoso do gravador Nagra, acoplado à câmera e que era perfeito em sincronia e fidelidade, unindo pé com cabeça, a imagem e a voz do entrevistado. Esse sistema, como sabemos, gerou escolas e estilos de filmar o documentário, como foi o caso do Direto dos americanos e do Cinema Verdade dos franceses, com Rouch à frente. Então, é difícil tergiversar com a imagem quando o depoente se desveste frente à câmera com seu semblante em close. Não vale simulações nem mentirinhas. Sou sensível a experiências alheias e as respeito incluindo o chamado falso documentário, mas sempre sinto uma espécie de travo, certo desconforto, quando vejo o “real” ficcionado ou quando, numa entrevista, as pessoas são substituídas por “bonecos” desenhados em caprichada animação, como vi recentemente, e era uma distorção total, sem ritmo e caricatural, ainda mais quando confrontados com os seus modelos reais. Me deu grande aflição. Por outro lado, experimento um gosto especial trabalhando na animação de fotos na impossibilidade de obter a imagem filmada, principalmente com os recursos do digital de hoje com intervenção no objeto. Pelo menos, não distorcemos o que pretendemos seja parte do realismo perseguido.
Quanto a colocar-me no “Giocondo” filme, digo-lhe que lancei mão de todos os meios para manter a equidistância, ser isento, sem negar meus princípios. Fui mero militante do Partido, mas sem nenhuma importância em seus escalões de direção. Se tive alguma importância em certo momento foi quando a direção, na Paraíba, acolheu Eduardo Coutinho que a procurou ali para contatos iniciais na pré-produção do “Cabra Marcado”. Coutinho não conhecera o seu personagem que, àquela altura, já havia sido fuzilado, mas eu estive inúmeras vezes com João Pedro Teixeira e fora inúmeras vezes seu hospedeiro quando vinha de Sapé à capital para reuniões do Partido. Então, a pedido deste, levei o cineasta para conhecer dona Elisabeth, a viúva. Giocondo, eu o conheci de passagem, somente na fase final da luta para a legalização do PCB, em suas vindas a Brasília nos anos 80. Foi rápido contato em algum gabinete no Congresso Nacional. Naquelas tratativas, fosse eu mais atilado, teria registrado o importante papel que desempenhou naquela instância. Seria outro o filme que agora tento terminar.
Jean-Claude Bernardet costuma dizer que, no documentário brasileiro, mortos viram santos. Suas zonas de sombras são esquecidas. Você pretende traçar um retrato complexo, com momentos de luz e de sombras vividos por Giocondo Dias?
Jean-Claude tem toda a razão! Esse ponto é crucial e faz parte do jogo. É uma luta que se instaura em seu íntimo e é forçoso reconhecer sempre que a ética deve prevalecer, mesmo quando a busca pela verdade é essencial, sobretudo no respeito ao outro. São desafios nem sempre bem resolvidos. Eu que mexi com biografias sei bem disso. Sabe Deus como enfrentei monstros sagrados como Niemeyer, José Américo, Teotônio Vilela, José Lins do Rego e Darcy Ribeiro e penso que não foi nada mal. Exceto por certos chamuscos, porque temos sempre nos calcanhares a família à espreita. Todo finado é intocável!
Como as novas gerações podem acessar sua obra? Todos os seus filmes (curtas, médias e longas) estão disponíveis em diversos suportes (DVD, streaming, TVs a cabo)? Depois de “Giocondo”, que outros projetos o mobilizarão?
Não tenho nenhum projeto eficaz nessa área. Tenho mínimo poder de fogo e a prioridade é continuar na luta para fazer mais um filme. Os filmes estão dispersos por aí, mas tenho alguns títulos que circularam com o selo do CTAv (“O Homem de Areia”), “O País de São Saruê” (na série da Video Filmes e depois pela Bretz Filmes), “Conterrâneos Velhos de Guerra” (pelo IMS), “Cicero Dias, o Compadre de Picasso” saiu recentemente pela Bretz Filmes; o “Barra 68”, tem circulado numa coprodução do Renato Barbieri com a UnB. Na televisão, o Canal Brasil detém os direitos e tem exibido o “Cícero Dias”. Tem pessoas que me procuram e eu digo “faça um projeto, os filmes estão aí à sua disposição”. Mas nunca concretizamos nada! No momento, estou de ponta-cabeça no “Giocondo” e tenho um projeto interrompido sobre a transposição do Rio São Francisco. Como nunca tive produtora, as coisas vão se arrastando e o tempo passando.
FILMOGRAFIA (LONGA-METRAGEM)
1979 – O País de São Saruê
1981 – O Homem de Areia
1984 – O Evangelho Segundo Teotônio
1991 – Conterrâneos Velhos de Guerra
2000 – Barra 68 – Sem Perder a Ternura
2006 – O Engenho de Zé Lins
2011 – Rock Brasília, a Era de Ouro
2017 – Cicero Dias, o Compadre de Picasso
2019 – Giocondo (em finalização)
2020 – Águas do São Francisco (nome de trabalho)
É uma entrevista tão relevante quanto a obra de Vladimir.
Mas tenho outro assunto Como conhecedor de meu trabalho (inclusive escreve a contracapa de meu livro Escuta do desejo – ensaios sobre cinema e psicanálise), por sugestão dele, encaminho o ensaio abaixo para publicação.
1964 :O BRASIL ENTRE ARMAS E LIVROS, de Lucas Ferrugem, Henrique Viana e Felipe Valerim, fundadores do Brasil Paralelo, Brasil, 2019.
O filme 1964 :as duas faces da mesma moeda.
O filme 1964: O Brasil entre armas e livros, adota uma linguagem de transformação da história brasileira, por meio da interpretação invertida dos fatos.
Pela característica dessa enunciação fílmica, é a voz em off dos fatos ocorridos proferida por um narrador do relato, que conduz a sequência de inúmeros depoentes brasileiros e estrangeiros associada às manchetes de variados jornais da época. Todos os personagens históricos citados são falados por essa voz, até mesmo os personagens centrais: os ex-presidentes da República João Goulart, Jânio Quadros, Juscelino Kubitschek e os políticos Tancredo Neves, José Serra, Almino Afonso, Waldir Pires.
Dessa forma, a voz em off proferida não em lugar dos que construíram nossa história por outros caminhos opostos ao golpe militar, mas apenas em lugar do discurso dos militares intervencionistas, estabelece a versão fílmica como verdade transcendental, associada à imagem de uma porta que se fecha e de símbolos religiosos com o fundo musical Aleluia – Te Deum.
Assim como foi feito pelos integrantes da intervenção militar institucionalizada no golpe, a divisão entre os Estados Unidos e a União Soviética, da chamada Guerra Fria, de fora do Brasil, é trazida para dentro de nosso país colocando políticos, camponeses, jornalistas, artistas, educadores e estudantes contra militares, tendo sido eles mesmos que, desde a transição da monarquia para a República, sempre colocaram os governantes sob a tensão de sua opressão superergoica nos moldes da obscenidade do gozo. Isso que o ex-presidente da República, Excelentíssimo Fernando Henrique Cardoso, demonstra factualmente em sua conferência no evento “50 anos do golpe militar”, transformada em livro.
Consequentemente, a transformação da ameaça em externa, enquanto a ameaça era internalizada pela divisão entre as correntes políticas da direita e da esquerda, desculpa os militares intervencionistas, com argumentos contra o revisionismo. Os mesmos militares que se tornaram símbolo da recusa da sociedade durante as ‘Diretas Já’, mas que mesmo assim, foram anistiados por suas cruéis perseguições, torturas e assassinatos de tantos dos nossos brasileiros.
Para propagar, dessa forma, uma nova anistia aos militares intervencionistas, o filme omite que a tensão entre os Estados Unidos e a União Soviética criou não somente a militarização do país, mas também os novos anseios da jovem sociedade brasileira, os intelectuais e especialistas que nos transmitiram um olhar analítico, ao que, por unanimidade, a mídia divulgava, exceto o jornal ‘Última Hora’, de Samuel Wainer, que terminou sendo exilado juntamente com Fernando Henrique Cardoso, Celso Furtado, José Serra e tantos outros líderes patrióticos.
Embora o subtítulo de “1964” seja “oBrasil entre armas e livros”, nenhum livro é citado sobre a trama do golpe estudado em Um dia que durou vinte anos, de Camilo Tavares, entre tantas outras obras significativas. Não cita também as análises divergentes de como não havia possibilidade de golpe comunista, nem os discursos sobre a não adesão ao comunismo de João Goulart então Presidente da República, eleito por meio de um plebiscito popular, à desapropriação de terras por medidas inconstitucionais, tal como contraditoriamente estabeleceram-se os militares pelo que nomearam de atos institucionais do número um ao número cinco, prolongando o golpe militar de 1964 até 1985.
Em síntese, a ameaça comunista é o único diagnóstico do filme para a intervenção militar no Brasil, como para os danos da divisão na Coréia do Sul e do Norte, na Alemanha Ocidental e Oriental, entre tantos outros países do mundo, e do desenvolvimento explosivo do capitalismo. Sem considerar aquilo que Slavoj Zizek, citando Alain Badiou chamou de “hipótese comunista”, isto é, que o antagonismo social ao qual o comunismo reage sempre existirá e cabe procurar um novo modo dessa ideia, o prognóstico é que o passado será o futuro do próprio passado.
Ademais, é um filme que não avança na leitura de como a massa da Tradição, Família e Propriedade foi induzida a aceitar a intervenção militar, assim como as posteriores aberturas e saídas, na medida em que não delineia as formas subjetivas daqueles que se opuseram e ou adotaram a luta da emancipação.
O apêndice é a herança maldita pelo fracasso na economia, a corrupção na democracia, em uma crise permanente que nos leva a uma ideia de fim da brasilidade.
Rio de Janeiro, abril de 2019.
Dinara Gouveia Machado Guimarães.
Autora dos livros em Psicanálise e Cinema. Vazio Iluminado: o olhar dosolhares (Ed. Garamond), Voz na luz (Ed. Garamond), Escuta do desejo (Cia de Freud)