Filme de abertura do É Tudo Verdade
Por Maria do Rosário Caetano
“Mike Wallace Está Aqui” será o filme exibido na sessão inaugural da vigésima-quarta edição do É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários, em São Paulo. No Rio, o convidado é o brasileiro “Memórias do Grupo Opinião”.
A fase paulistana do festival começa nesta quarta, 3 de abril, com sessão para convidados, no Auditório do Ibirapuera, do longa dirigido pelo israelense Avi Belkin. Em foco, a trajetória do jornalista Myron Leon “Mike” Wallace (1918/2012), um dos nomes mais respeitados da TV norte-americana, responsável por incisivas entrevistas no programa “60 Minutos”. Mike já foi representado no cinema pelo notável Christopher Plummer, em “O Informante”, filme sobre o poder aliciador da indústria do cigarro.
Para abrir a extensão carioca do É Tudo Verdade, Amir Labaki, seu diretor e curador, escolheu o décimo-sexto longa-metragem de Paulo Thiago, “Memórias do Grupo Opinião”. O realizador mineiro, radicado no Rio desde a juventude, é autor de doze longas ficcionais (entre eles, “Sagarana, o Duelo”, “Águia na Cabeça” e “Policarpo Quaresma: Herói do Brasil”), quatro documentários (um deles, “Poeta de Sete Faces”, sobre Carlos Drummond de Andrade) e de curtas como “A Criação Literária de João Guimarães Rosa”, “Memória e Ódio” e “Baixada Fluminense”.
“Memórias do Grupo Opinião”, uma apaixonada homenagem ao teatro, à música e ao cinema brasileiro, tem recorte clássico, mas envolvente. Um de seus componentes dá à narrativa subjetividade especial: Paulo Thiago, de 73 anos, conta, além das memórias do Grupo Opinião, parte de suas próprias memórias. Afinal, ele integrou a ala musical da trupe responsável, entre outros espetáculos, pelo histórico “Show Opinião” (lançado em 11 de dezembro de 1964).
O “Show Opinião” – registrado em disco e disponível em plataformas como o Spotify – foi montado por artistas de esquerda, depois do golpe militar de 1964. Com produção do Teatro de Arena e CPC da UNE (a União Nacional dos Estudantes estava, então, já posta na ilegalidade), o espetáculo somava música e narrações sobre a realidade social, política, econômica e cultural brasileira. Dois artistas negros – o carioca Zé Keti, sambista do morro, e o maranhense João do Vale, migrante e mão-de-obra empregada na construção civil – somavam-se à mocinha da Zona Sul (Nara Leão, depois substituída por Maria Bethânia). O sucesso foi consagrador. O roteiro, escrito por Armando Costa, Oduvaldo Viana Filho, o Vianinha, e Paulo Pontes, foi transformado por Augusto Boal, o diretor, em uma espécie de “missa leiga” à qual compareciam levas de fieis frequentadores. Para, claro, exorcizar as frustrações advindas do triunfo do golpe militar, que colocara termo às reformas de base.
O registro em elepê do “Show Opinião” (realizado em 1965) preserva, ainda hoje, suas generosas doses de humor e reafirma assumida paixão de seus criadores pelo samba e pela música nordestina (representada por João “Pisa na Fulô” do Vale e pelos ‘trava-língua’ do Cego Aderaldo). E, claro, por “Carcará”, a canção-símbolo do engajado espetáculo.
O filme de Paulo Thiago (75 minutos) será lançado, primeiro, no circuito comercial. Depois, transformado em série de três capítulos, entrará na programação do Canal Brasil.
Em entrevista à Revista de CINEMA, Paulo Thiago relembrou seus tempos de compositor, parceiro de Sidney Miller, e o vício, “uma heroína”, o cinema, atividade que o levaria a abandonar a música. A conversa se deu momentos antes dele partir para o Festival de Chicago, onde mostrará sua mais recente obra ficcional, o longa “A Última Chance”, protagonizado por Marco Pigossi, em cinebiografia de Fábio Leão, menino pobre que caiu no tráfico (e na prisão) até tornar-se um lutador de MMA.
Comecemos pelo início de sua carreira, que se deu na música e não no cinema. Você integrou o Grupo Mensagem, ao lado de Sidney Miller e de outros músicos. No filme, você é discreto ao abordar o assunto. Como se deu este seu início na vida artística e em que momento você trocou a música pelo cinema?
Depois de ter aprendido violão com o Roberto Menescal e convivido com a Bossa Nova, me meti no samba popular e passei a compor. Tive um parceiro, meu vizinho de rua e colega de colégio: Sidney Miller. Amizade e arte se misturavam. Juntos, descobrimos, na Tijuca, a Luhli que estava começando. Nem existia ainda a Lucinha. Nossa turma se reunia numa garagem. Ali, se formou o Grupo Mensagem. Quem deu o nome foi o Vianinha. Militância política e música. Fomos parar no Grupo Opinião. Nossa turma se formava com a Luhli, o Luís Carlos Sá (mais tarde na dupla Sá e Guarabira), a Sônia Ferreira (depois integrante do Quarteto em Cy), Sidney Miller e um cara chamado Marco Antonio Menezes, bom compositor, que procurei feito um louco durante um ano. Perdeu-se para as artes, é a vida. O cinema, minha obsessão juvenil como espectador de westerns e seriados e de filmes sofisticados mais tarde, me pegou pelo pé. Com sinceridade, minha geração foi seduzida pelo canto da sereia do Cinema Novo. Se eles fazem, eu faço também. Uma heroína. Fiz um curta amador, estive no antigo Festival JB, fui aplicado e o vício não me largou mais. Já tinha 21 anos. Mas a música (e essa época), meu Amarcord aos 17 e 18 anos, ficou na memória. Por isso, fui impelido a fazer o filme da Bossa Nova (“Coisa Mais Linda”, 2005) e agora o do Grupo Opinião. Uma curiosidade: com Sidney Miller e Zé Keti, fiz o samba “Queixa” (que toca na passagem dos letreiros finais do filme). O samba classificou-se em terceiro lugar no Festival da TV Excelsior, aquele em que o vencedor foi “Arrastão”, com a Elis Regina. “Queixa” foi defendido por Ciro Monteiro.
Por que você demorou tanto tempo para trazer esta história, que é parte de sua vida, para o cinema? Quando realizou “Coisa Mais Linda – História e Casos da Bossa Nova”, você já se aproximava do tema com segundas intenções?
Não sei por que demorei tanto a fazer este filme. Mas, como diz o Guimarães Rosa, “A gente vive para provar que viveu”. Achei que tinha coisas importantes para contar. Fui testemunha ocular, convivi com aqueles caras e era jovem quando tudo bate mais forte e marca mais. Não há distanciamentos críticos, só emoção. A turma da Bossa Nova, antes, quando eu tinha 15 e 16 anos, e a do Opinião, depois, foram os meus heróis. A opção do “Memórias do Grupo Opinião” nasceu assim. Se fiz a “Bossa Nova”, me perguntei, que documentário faço agora? O que tenho para contar? O que aconteceu depois? O que está forte na memória e não pode se perder? Existem os romances de formação. Podem existir os filmes. Os filmes memorialísticos. Assim foi. O Opinião trago dentro de mim, uma história que eu tinha que narrar. E porque são fatos essenciais da nossa história, da ditadura militar, o período após 1964, antes do AI -5 e da guerrilha, do qual pouco se fala. As novas gerações precisam conhecer.
Os depoimentos de Carlos Lyra (Nara Leão e ele dialogam em fina sintonia, embora ele fale no tempo presente e ela, em depoimento de arquivo), Dory Caymmi e João das Neves trazem muitas novidades para a história do Opinião. E Sá, que só conhecemos da dupla Sá e Guarabira, enche a tela de afeto. Como se deu a escolha dos entrevistados?
Foi progressivo. Primeiro, lógico, fui atrás dos que estavam vivos. Entre eles, o essencial, remanescente do grupo original, João das Neves. Ele estava morando em Minas. Tinha tudo para contar. Escolhi para ser o centro nervoso do documentário. Na outra ponta, os esquecidos. Muitos não sabem que estiveram (ou passaram por lá) nomes como o Antonio Carlos Fontoura e o Carlos Vergara. Depois, os fundamentais como o Dori Caymmi, diretor musical do espetáculo. Carlos Lyra veio como uma ponte entre a Bossa Nova e o movimento. E também muita gente não sabe que ele foi militante do Partido Comunista Brasileiro, compositor do Hino da UNE e com inúmeras canções no show “Opinião” original. A história que conta da conexão que faz entre Zé Kéti, os sambistas de morro e a Nara é revelador. Antônio Pitanga foi ator lá. Não escolhi ninguém que não tivesse feito parte do processo todo (por dentro ou conexo). Vê-se nos depoimentos. Não são coisas “de fora”, institucionais, têm vida. Carlos Heitor Cony veio porque foi o grande romancista dos anos 60, homem da resistência, como Antonio Callado, que morreu muito antes do nosso filme. Se estivesse vivo, estaria em “Memórias do Grupo Opinião”. Quanto ao Luís Carlos Sá, foi meu companheiro de geração e juventude. Um reencontro. Lembramos juntos e nos emocionamos quando nos lembramos do Sidney Miller, que partiu cedo e dramaticamente. Abri a sequência com a sua música “Caçador de Mim”, o que somos todos nós. Nós que Nos Amávamos Tanto.
Impressionante a importância do acervo da TV Cultura, em especial do programa “Ensaio”, de Fernando Faro. Você reavivou imagens incríveis. Houve a ajuda essencial de Antonio Venancio, mas você escolheu as que ficariam na montagem final do filme. Fale de sua emoção ao deparar-se com Sidney Miller e Nara Leão, que partiriam tão cedo.
Os acervos garimpados pelo Venâncio foram uma guerra e consumiram quase um ano (de buscas e aquisição de direitos). Lembre-se que a história narrada no nosso filme faz mais de 50 anos e, no Brasil, não se guarda memória visual. E também elas custam caro. O orçamento era baixo, não tinha tanto dinheiro como no “Coisa Mais Linda”. Os arquivos da TV Cultura são joias que estão lá e precisam ser mais usados. Claro que tem de saber como. Os arquivos mais raros são o da Nara cantando no espetáculo Opinião, o “Sina de Caboclo”, com João do Vale, e o do Sidney com o “Pede Passagem” da TV Cultura. Tem história. O da Nara filmado pelo Pierre Kast, cineasta da Nouvelle Vague, que esteve no Brasil nos anos 60, teve que vir da Alemanha, depois de longa caçada e pesquisa. Inclusive me lembrei de que o Pierre nos filmou, ao Sidney e a mim, mas desse material não corri atrás. Quanto ao acervo do Sidney Miller da Cultura deu-se o seguinte: soubemos que existia, mas tinha que ser telecinado, pois estava guardado em película. Era antigo, poderia ter perecido. Tivemos que bancar. Estava perfeito. Quando vi, bateu uma emoção forte. Me lembrei do encontro que tivemos, Nara, Sidney e eu, para mostrar músicas que comporiam o repertório de um disco que ela ia fazer. Desse encontro, nasceu um disco composto com seis musicas só do Sidney e seis do Chico Buarque. Um disco histórico. O encontro foi no seu famoso apartamento onde nasceu a Bossa Nova. Algo para não esquecer nunca mais.
Como se deu a escolha dos músicos que trazem para o presente o repertório dos espetáculos do Opinião? Por que escolheu o Casuarina e a Késia?
A formação original do Casuarina não pôde fazer o filme. Acertaram tudo, mas brigaram uma semana antes. Então, o João Cavalcanti (filho do Lenine e vocalista principal) me disse que organizava um novo conjunto. Fomos à Gávea ouvir um grupo que fazia uma roda de samba nas segundas-feiras. Adorei voltar aos velhos tempos. Lá, estavam Alan Monteiro, Alfredo del Penho, Pedro Miranda, Thiago da Serrinha. Todos craques da pesada cantando e tocando o regional. E mais, sabiam as músicas todas. Quanto à Késia Estácio, ela é atriz e cantora de musicais, já se apresentou em vários espetáculos. Já a assistira em um sobre a Bossa Nova, no qual ela cantava “Insensatez” lindamente. Bonita, voz exuberante, uma figura.
XXIV É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários
A edição deste ano exibirá 66 filmes de longa e curta-metragem, em sessões gratuitas, em vários cinemas paulistanos e cariocas.
Data: 4 e 14 de abril (São Paulo) e 8 e 14 de abril (Rio de Janeiro)
Programação: etudoverdade.com.br
FILMOGRAFIA
Paulo Thiago (Aimoré-MG, 1945)
1970 – “Senhores da Terra”
1973 – “Sagarana, o Duelo”
1976 – “Soledade”
1978 – “Batalha de Guararapes”
1983 – “Águia na Cabeça”
1987 – “Jorge, um Brasileiro”
1988 – “Policarpo Quaresma: Herói do Brasil”
1993 – “Vagas para Moças de Fino Trato”
2002 – “Poeta de Sete Faces” (doc)
2003 – “O Vestido”
2005 – “Coisa Mais Linda – História e Casos da Bossa-Nova” (doc)
2008 – “Orquestra de Meninos”
2016 – “Doidas e Santas”
2017 – “Fábio Leão – Entre o Crime e o Ringue” (doc)
2019 – “A Última Chance”
2019 – “Memórias do Grupo Opinião” (doc)