Festival de Gramado homenageia Carla Camurati

Por Maria do Rosário Caetano

Um exótico filme equatoriano, “O Filho do Homem – A Maldição do Tesouro de Atahualpa”, espécie de derivação pop do herzoguiano “Aguirre, a Cólera dos Deuses”, abriu, na noite de sábado, a competição latino-americana do 47º Festival de Cinema de Gramado.

A noite completou-se com a exibição de dois curtas, o paranaense “A Mulher que Sou”, de Nathália Tereza, e o pernambucano “Marie”, de Leo Tabosa, e do longa brasileiro (e gaúcho) “Raia 4″, de Emiliano Cunha. Houve ainda homenagem à atriz e cineasta Carla Camurati, que recebeu o Troféu Eduardo Abelin, destinado a diretores de cinema.

Com tocante simplicidade, a diretora da bem-sucedida chanchada histórica “Carlota Joaquina, Princesa do Brasil”, agradeceu o reconhecimento e lembrou que Gramado fora seu primeiro festival. Dele, participara com “O Olho Mágico do Amor”, de José Antonio Garcia e Ícaro Martins, filme que a revelou e projetou. Hoje, mais cineasta que atriz (e também gestora pública), Carla Camurati prepara novo filme, um documentário sobre o processo de redemocratização do país. Em boa hora, convenhamos, pois a democracia, por aqui, parece em risco.

O equatoriano “O Filho do Homem” foi dirigido por um de seus protagonistas, Luis Felipe Fernández-Salvador Campónico, sob o exótico nome artístico de Jamaicanoproblem, em parceria com o argentino Pablo Aguero (de “Eva Não Dorme”). No divertido e descolado debate do filme, o cineasta-ator, acompanhado da platinada atriz Lily van Ghamen, de origem germânica (como Werner Herzog), explicou a razão de sua exótica assinatura artística: “eu estava realizando meu filme, quando meu pai, um representante do feudalismo no Equador, morreu. Sofri um abalo muito grande e decidi fazer um filme real, com personagens reais. Eu interpreto um pai que tenta se aproximar do filho (representado por seu filho verdadeiro, Luis Felipe Fernández-Salvador y Boloña). Achei, então, melhor não usar meu nome civil. Aflorou o Jamaicanoproblem, que me pareceu mais adequado.

O longa-metragem, inspirado na jornada do herói, de James Campbell, fonte seminal de tantas aventuras hollywoodianas, mostra um jovem, Pibe, levado pelo pai, em expedição, a buscar os tesouros de Atahualpa, o Inca, dando seguimento aos projetos do avô, recém-falecido. Como acontece em “Aguirre”, monta-se um grupo de aventureiros, formado com pai e filho, indígenas como ajudantes, e, vestida ora como uma estrela de Hollywood, ora como uma Nina Hagen dos trópicos, a bela Lily.

Se o cineasta germânico construiu um dos mais belos e exitosos filmes de aventura da história do cinema (com apenas US$ 350 mil) e conquistou o mercado de arte do mundo inteiro, Jamaicanoproblem e Aguero não conseguiram atingir tais metas com “A Maldição do Tesouro de Ataualpa”. O filme não tem orçamento milionário, mas deve ter custado infinitamente mais que a obra herzoguiana. E, ainda, não encontrou o esperado sucesso internacional. Lançado em seu país de origem, o filme foi indicado ao Oscar, mas passou despercebido. Pelo menos — garantiu o ator-cineasta durante o debate — vem sendo convidado para festivais na China, Alemanha, América Latina etc, etc.

Jamaicanoproblem vem expressando-se em tantas línguas, que, em Gramado, no início do debate gramadiano, não sabia que idioma usar. Acabou optando pelo espanhol (o filme é falado em inglês, alemão, quechua e castelhano). Um trunfo foi apresentado pelo diretor: “o presidente de meu país adorou nosso filme. Ficou tão entusiasmado, que prometeu investir no fomento de novas produções equatorianas”.

Calé Rodriguez, um dos produtores de “O Filho do Homem”, interrompeu a filmagem do debate para descrever a situação da indústria audiovisual no país andino: “estamos produzindo, em média de 15 a 20 longas-metragens por ano. Fui presidente, por dois anos, da Academia de Cinema do Equador e conheço bem nossa realidade. Há um fundo público para o fomento de novas produções, distribuído aos projetos aprovados por Editais, mas os recursos são reduzidos. Por sorte, algumas empresas privadas começam a investir em nossos filmes e temos conseguido concretizar parcerias internacionais, caso deste “A Maldição do Tesouro de Atahualpa”.

Jamaicanoproblem não se incomoda com a comparação de seu filme com “Aguirre”, mas estabelece diferença que considera essencial: “Herzog usa a ficção para nos levar à realidade, já nosso filme parte da realidade para chegar ao que defino como realismo fantástico. Tudo nele é real, não há ficção. Eu interpreto o pai de meu filho na vida real e evoco a memória de meu pai, um integrante das classes feudais”.

A filiação de “A Maldição do Tesouro de Ataualpa” à vertente do Realismo Fantástico foi defendida com ardor pelo cineasta. Como o romancista cubano Alejo Carpentier (em manifesto-prefácio de “O Reino deste Mundo”), ele insistiu que não confundíssemos Realismo Fantástico com Realismo Mágico (vertente que teve em García Márquez seu maior expoente). E que tomássemos Realismo como um conceito cinematográfico. Não literário.

Pelo que deu a entender em suas detalhadas, mas intrincadas explicações, o cineasta-ator usa o qualificativo feudal, “um conceito que traz muito de arcaico”, para definir os grandes proprietários de terra do Equador contemporâneo. Algo como uma aristocracia de ‘terratenientes’, o corresponde dos latifundiários brasileiros. A esta categoria, pertencia seu pai.

Ele explicou, ainda, que, com sua “Maldição do Tesouro de Atauhalpa”, exorcizou, poeticamente, sua difícil relação com o pai, que é extensiva também à dele com o filho adolescente. Quanto ao papel da linda e louríssima Lily van Ghemen (que evoca abertamente a filha do personagem de Klaus Kinski em Aguirre”), Jamaicanoproblem a definiu: “ela desempenha uma função poética, é a musa que estabelece a ponte entre pai e filho, tendo, portanto, uma função quase mágica.

A atriz — registre-se — adorou a comparação (mesmo que desfavorável ao filme equatoriano) com “Aguirre, a Cólera dos Deuses”. E Jamaicanoproblem aceita, satisfeito, o qualificativo “pop” para seu filme, banhado em música de Nina Hagen e uma dezenas de outros criadores.

“O Filho do Homem – A Maldição do Tesouro de Atauhalpa” é uma ‘epópera’ ambientada em floresta verde entrecortada por magníficas quedas d’água. Um alucinado cartão postal das belezas naturais equatorianas, filmadas por drones. O ator e diretor corrige: “não são drones, são uma invenção técnica de nossa equipe, que batizamos de steady-cam voadora”.

E forneceu mais portas de entrada para seu filme aventureiro: “trata-se de uma tempestuosa e terapêutica viagem fílmica, uma espécie de exorcismo de um filho que perdeu o pai e vê-se, então, motivado a aproximar-se de seu próprio filho, de quem estava distante”. E como promover esta aproximação? ”Levando-o a buscar, em ritmo de aventura, o tesouro de Atahualpa”.

Debate do longa "O Filho do Homem – A Maldição do Tesouro de Atahualpa" © Cleiton Thiele

Perto de “O Filho do Homem – A Maldição do Tesouro de Atahualpa”, um filme delirante, o segundo longa brasileiro da competição, “Raia 4”, pode ser definido como um “minimalista e melancólico” filme uruguaio. Emiliano Cunha, diretor e roteirista, foi nadador na infância e adolescência (até os 20 anos). Hoje, cineasta e professor de cinema, quis reviver seus tempos de nadador, reunindo 14 pré-adolescentes em sua rotina de treinos e competições. Esta é primeira camada do filme.

Ao acompanhar, em especial, a vida da nadadora Amanda (Brídia Moni), menina de temperamento arredio e muito calada, seja em seus treinos e competições (ou nos vestiários do clube náutico), seja em casa, com os pais médicos e muito ocupados (Fernanda Chicolet e Rafael Sieg), Emiliano impregnou sua história de elementos do cinema de horror. Implícitos e explícitos. Nesta última condição, está a devoção dos adolescentes pelos filmes de terror (que assistem no ônibus que os leva a competições em outras cidades) e, em especial, em um dos mais apavorantes (realizado pelo mesmo Emiliano), em que vemos uma mulher grávida (Fernanda Carvalho Leite), sendo agredida por terrível objeto cortante.

No debate de “Raia 4″, o principal questionamento ao filme fixou-se no seu desfecho (que não se revelará aqui). Muitos não gostaram da opção do realizador, embora elogiassem a refinada construção da narrativa.

O cineasta gaúcho citou os filmes com os quais dialogou: “Imensidão Azul”, do francês Luc Besson, o sueco “Deixe Ela Entrar” e, especialmente, o cinema de Lucrécia Martel. “Os silêncios e olhares, somados ao som narrativo dos filmes dela (a diretora argentina) são minha mais assumida inspiração. Está nos meus curtas e está em ‘Raia 4′”.

O curta paranaense “A Mulher que Sou” se fez representar, no debate, por sua diretora, Nathália Tereza, pela atriz curitibana Cássia Damasceno, que protagoniza o filme (ao lado do mineiro Renato Novaes, da trupe Filmes de Plástico, de Contagem), e pelas produtoras-executivas Dora Amorim e Thaís Vidal.

O pernambucano “Marie” reuniu, para o debate, o diretor Leo Tabosa, a atriz Divina Valéria e o produtor Arthur Leite. Sob o lema “Je vous aime, Marie”, que evoca o “Je vous Salue, Marie” católico, Tabosa mostra o regresso de Marie, que nasceu Mário, no sertão nordestino, e partiu para longe. Ficou distante por 20 anos. Regressa à cidade natal para enterrar o pai. E acaba cedendo ao último desejo dele: ser enterrado no Crato, no Cariri cearense, no mesmo túmulo em que fora enterrada a esposa. Ajudada pelo amigo de infância Estevão (Rômulo Braga), Marie coloca o caixão no teto de uma camionete e os dois ganham a estrada. Vão conversando sobre o passado de ambos. Ela, que nasceu homem e tornou-se uma mulher. Ele, que, às vezes, a chama de Mário, às vezes de Marie, garante não ter se unido aos que a condenaram por ser diferente.

Leo Tabosa e Arthur Leite, muito articulados, responderam a todas as perguntas com muitas informações e clareza, mas quem roubou a festa, durante o debate, foi Divina Valéria, uma das mais conhecidas transformistas do país (é uma das oito personagens de “Divinas Divas”, o formidável longa documental de Leandra Leal).

Vestida a caráter, muito maquiada e esfuziante em seus comentários, Divina Valéria contou que estava em temporada em Paris, quando foi chamada a filmar no… Crato. Veio, com muito prazer, interpretar a mãe de Estevão, uma mulher do povo, pobre, de cabelos grisalhos e roupas humildes. Zero glamour.

“Sou, e me orgulho disso, a primeira travesti brasileira a interpretar uma mulher de verdade num filme brasileiro”. E garantiu: “não foi um desafio, pois estou apta a interpretar qualquer papel que me solicitarem. Sou uma atriz”. No final, cantou ousada e sofisticada canção (sobre o que faz uma artista travesti), que preparara para apresentar no palco do Palácio dos Festivais, mas não houve tempo. Cantou no encerramento do debate e foi calorosamente aplaudida.

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