Simonal

Por Maria do Rosário Caetano

“Simonal”, primeiro longa-metragem de ficção do montador carioca Leonardo Domingues, estreia nesta quinta-feira, 8 de agosto, em circuito nacional. O filme reconstrói, com produção caprichada, bom elenco, figurinos coloridíssimos e ótima fotografia, a glória e a queda do cantor (e cidadão) Wilson Simonal de Castro (1938-2000), astro black da música dançante brasileira.

Na década de 1960, Simonal lotava estádios, era garoto-propaganda de grandes marcas, namorava belas mulheres e dirigia carros envenenados. No começo dos anos 70, período mais duro da ditadura mediciana, meteu-se em enrascada político-policial e, acusado de dedo-duro, perdeu palcos, amigos e conheceu o ostracismo.

Esta trágica história foi contada, dez anos atrás, no documentário “Simonal – Ninguém Sabe do Duro que Dei”, de Cláudio Manoel, Calvito Leal e Micael Langer. Neste filme, Leo Domingues, que assinou a pós-produção, conheceu, fascinado, a conturbada trajetória do artista que teve tudo nas mãos, mas, ao dar um ou dois passos em falso, não conseguiu reerguer-se. Resolveu, então, narrar esta história em um filme de ficção.

O cineasta, que estudou cinema na UFF (Universidade Federal Fluminense), sabia que, para retomar a trajetória do artista em registro ficcional, necessitaria de um diferencial forte.

O que ele e seu fotógrafo, Pablo Baião, fizeram? Apostaram na mise-en-scène, dando destaque a dois planos-sequência que causaram entusiasmo nos festivais de Gramado, Rio, Mostra SP e Aruanda, na Paraíba.

Quem aprecia e festeja os alucinantes planos-sequência dos filmes da Nova Hollywood (Scorsese, De Palma, Coppola) e de seus herdeiros (Paul Thomas Anderson), vai curtir o plano de abertura de “Simonal”. E também outro plano-sequência, em que, cheio de bossa e marra, o cantor deixa o público do Maracanãzinho entoando o estribilho de “Meu Limão, meu Limoeiro” e vai tomar um gole num bar. A câmera segue sua ida e seu regresso. Ele retoma, como se nada tivesse acontecido, o controle daquele imenso coral de 30 mil vozes.

Leo Domingues assume, numa boa, o diálogo com os grandes realizadores norte-americanos. “Compartilho de certo fetiche pelos planos-sequência, e sei que o mesmo se passa com algumas pessoas, em especial cinéfilos”. Junto com Pablo Baião, ele viu e reviu vários “clássicos” filmados com memoráveis planos-sequências. Duas influências são prazerosamente assumidas: “Os Bons Companheiros” (Scorsese, 1990) e “Boogie Nights” (Paul Thomas Anderson, 1997).

Montador experiente de uma dezena de longas documentais e ficcionais, Leo sabe “quando a duração de um plano começa a causar efeito dramático, a fortalecer a narrativa”. Ele exemplifica: “o plano da saidinha do show busca reforçar o inusitado que é um cantor deixar o palco para dar um passeio, enquanto a plateia fica esquecida e sem receber nenhuma explicação”. E isto acontece, “porque a câmera está acompanhando Simonal na sua ida e regresso do bar”.

O esfuziante plano inicial busca, segundo explicação do cineasta, “ambientar o espectador neste clima dos anos 60 e 70”. Já que “o público vai aos poucos seguindo os personagens, percebendo o glamour daquela noite, da casa de shows, dos figurinos, da expectativa da apresentação-surpresa”. Forma-se o suspense: “o que está para acontecer?” O público só descobrirá quando começar o show.

Diretor e fotógrafo tiveram que enfrentar grandes dificuldades. “O plano-sequência inicial exigiu complexa orquestração das ações do elenco e dos figurantes”, pondera o realizador. E mais: “além da banda musical e do elenco, tínhamos 250 figurantes no nosso campo de ação”. Para executar o primeiro plano-sequência, “o trabalho dos assistentes de direção foi crucial, eles coordenaram este ballet”. Para trazer “mais fluidez a toda esta caminhada, escolhemos usar o steadycam” (a câmera presa ao corpo do diretor de fotografia ou de seu camera-man).

Leonardo lembra que “eram muitos os fatores que podiam dar (e deram) errado, pois, no início do plano-sequência, havia aqueles automóveis de luxo dos anos 70, a descida da escadaria de acesso à casa noturna, o deslocamento entre os convidados e os músicos no palco”. E cita sequência em que o erro obrigou a novas tentativas: “houve situações em que a câmera nem chegava ao palco no momento certo em que Simonal (Fabrício Boliveira) começaria a cantar”.

“Mas, apesar de todas as dificuldades” – relembra, aliviado –, “toda a equipe artística e técnica estava muito empolgada e concentrada para que a realização do plano-sequência chegasse ao ponto almejado. Gastamos um dia inteiro só pra rodar este início do filme. E todo mundo vibrou quando conseguimos”.

Para fazer de “Simonal” um espetáculo capaz de dialogar com o grande público, Leo reuniu elenco estelar. Além de Fabrício Boliveira, o protagonista, foram escalados Isis Oliveira (Tereza, a louríssima companheira de Simonal), Leandro Hassum (Carlos Imperial), Caco Ciocler (agente do Dops), Sílvio Guindane (integrante do conjunto DryBoys), Mariana Lima (Laura, mulher de Abelardo Barbosa e patronesse do show que abre o filme), João Velho (Miéle), entre muitos outros.

O doloroso período de ostracismo de Simonal – registra a história – começou quando ele pediu a um agente do Dops (a polícia política da era militar) que aplicasse uma surra (então sinônimo de tortura) em seu contador (Bruce Gomlevsky, em ótimo desempenho). O artista supunha que seu funcionário estaria desviando dinheiro de sua conta bancária. Afinal, o gerente lhe avisara que sua firma estava totalmente sem lastro financeiro. Não passou pela cabeça do cantor que ele era um estroina quando o assunto era gastar.

Tanto o documentário, quanto a ficção foram realizados com total apoio da família Simonal, de Tereza e seus três filhos. Nenhum deles exigiu que os dois filmes fossem hagiográficos. Simoninha e Max Castro participam inclusive dos créditos da ficção como autores da trilha sonora (a incidental). Simonal canta, na primeira parte, a mais luminosa do filme, sucessos como “Não Vem que Não Tem”, “Que Maravilha”, “Carango” e “País Tropical”, quatro de seus maiores hits.

O diretor e seu corroteirista Victor Atherino puderam trabalhar livremente as contradições do ex-cabo do Exército que iniciou sua carreira artística no desconhecido conjunto vocal Dryboys, virou secretário do “pilantra” Carlos Imperial e estourou nas paradas de sucesso com sua voz privilegiada e seus inegáveis carisma e suingue.

Além da surra no contador, outro fato – este o mais controvertido da carreira de Simonal –, o estigmatizou como informante do Dops. Esta nódoa não recebe, no filme, detalhamento similar ao episódio do contador. Ganha registro fugaz. Num restaurante, Simonal e Tereza não conseguem uma mesa para o jantar. Naquele momento, o cantor já se tornara um pária social. Uma mulher o encara e diz, para todo mundo ouvir: “Simonal, você dedurou Caetano e Gil”.

Os fatos que se referem aos brutais maus tratos sofridos pelo contador têm comprovação, inclusive judicial. Houve processo civil, as provas se mostraram abundantes e Simonal foi condenado a cinco anos de prisão (passou nove dias encarcerado e, favorecido por habeas corpus, pôde cumprir a pena em liberdade). Já a questão da delação é controversa e de mais difícil aferição. Mas foi esta pecha terrível que o marcou pelo resto de seus dias (ele morreu, aos 62 anos, esquecido, em São Paulo).

O filme registra sequência (real ou fictícia?) em que Simonal conversa com Elis Regina, interpretada por Lilian Menezes. A cantora lembra que, também, foi perseguida por ter se apresentado nas Olimpíadas do Exército. Tal comparação induz à seguinte conclusão: ela foi perdoada por ser branca, Simonal, crucificado por ser preto. Comparação desproporcional. Uma coisa é cantar para militares, outra, mandar espancar (torturar) um contador. Ou delatar colegas por suas opções políticas.

Simonal
Brasil, 105 minutos, 2019
Direção: Leonardo Domingues
Elenco: Fabrício Boliveira, Isis Oliveira, Caco Ciocler, Leandro Assum, Mariana Lima, Bruce Gomlevsky e Sílvio Guindane
Trilha sonora: Simoninha e Max Castro
Fotografia: Pablo Baião / Fabrício Tadeu (steadycam)
Montagem: Pedro Bronz e Vicente Kubrusly
Figurino: Yurika Yamazaki
Produção: Pontos de Fuga, TV Zero, Globo Filmes
Distribuição: Downtown-Paris

 

MÚSICAS CANTADAS POR SIMONAL

Que Maravilha
Walk right in
Terezinha
Balanço Zona Sul
Lobo Bobo
É de Manhã
Vesti Azul
Limão
Carango
Nem Vem que Não Tem
Tributo Martin Luther King
País Tropical
Shadow of your smile com a Sarah
Sá Marina

FILMOGRAFIA DE LEONARDO DOMINGUES
(Rio-RJ/20/11/1973)

. 2002 – “Amyr Klink – Mar sem Fim” (doc., montador)
. 2004 – A Pessoa é Para o que Nasce” (doc, codiretor, com Roberto Berliner)
. 2008 – “Pindorama: A Verdadeira História dos Sete Anões” (doc, montador)
. 2009 – “Simonal, Ninguém Sabe o Duro que Dei” (doc – pos-produção)
. 2012 – “Onde a Coruja Dorme” (doc, montador)
. 2013 – “Serra Pelada – A Lenda da Montanha de Ouro” (doc, montador)
. 2015 – “Nise: O Coração da Loucura” (ficção, montador)
. 2019 – “Simonal, o Filme” (diretor)

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