Noite dos bailarinos do Theatro Municipal e de “Notícias do Fim do Mundo”

Por Maria do Rosário Caetano, de Fortaleza (Ceará)

Dois filmes brasileiros foram exibidos na competição ibero-americana do Cine Ceará, na noite de domingo, ambos com boa recepção do público: o documentário carioca “Ressaca”, de Patrizia Landi e Vincent Rimbaux, e a ficção cearense “Notícias do Fim do Mundo”, de Rosemberg Cariry.

A noite do domingo prometia ser das mais agitadas. Afinal, “Ressaca” registra a crise financeira que se abateu sobre o Rio de Janeiro, a ponto dos corpos estáveis do Theatro Municipal (bailarinos, músicos sinfônicos, coro e funcionários) passarem vários meses sem receber salário. E “Notícias do Fim do Mundo”, um filme-processo, consumiu nove anos de trabalho do seu diretor-roteirista-e-montador Rosemberg Cariry. O resultado é um sintético e fragmentado retrato do Brasil de nossos dias.

Os discursos políticos das duas equipes, porém, foram objetivos e serenos. Patrizia reafirmou fala da atriz Lilia Cabral, “os governos passam, a arte fica”, mas fez questão de registrar um adendo: “no caso dos bailarinos do Theatro Municipal, há que se destacar que eles trabalham contra o tempo”. Afinal, como os jogadores de futebol, os que se dedicam ao balé necessitam da juventude e do vigor físico para atingir seus objetivos (a perfeição dos movimentos e a beleza).

Cariry, o mais produtivo dos cineastas cearenses (doze longas e diversos trabalhos para TV), contou que seu filme nascera como um média-metragem de baixo orçamento, nove anos antes, e que se transformara, com o passar dos anos e novas filmagens, no longa-metragem que seria exibido dali a pouco no Cine São Luiz. Evocou “o momento difícil que estamos atravessando” e dedicou a sessão ao ex-presidente Lula.

“Ressaca” iniciou sua carreira em festivais internacionais (Biarritz, Full Frame Doc e Dok München). Seus diretores — a brasileira Patrizia Landi e o francês Vicent Rimbaux, radicado no Brasil há 18 anos — ficaram impressionados com “a falência financeira do Estado do Rio”. Em coprodução com a França, resolveram realizar um filme sobre o tema, mas sem recorrer ao formato jornalístico-televisivo. Ao depararem-se com as agruras vividas pelos corpos estáveis do Theatro Municipal, descobriram que havia bailarino se transformando em motorista de Uber e funcionários vivendo de cestas básicas, oriundas de doações, pois não recebiam salário há meses.

Durante um ano, Vincent (que é também diretor de fotografia e montador) e Patrizia acompanharam assembleias, manifestações de rua, ensaios exaustivos (os bailarinos sabiam que não podiam abandonar os exercícios diários) e a vida cotidiana de alguns deles. O filme acompanhou, também, a preparação e apresentação da cantata “Carmina Burana”, de Carl Orff, em versão dançada (e acompanhada por poderoso coro de vozes).

A dupla destacou três personagens do coletivo: a bailarina Márcia Jacqueline, a Jacquie, que, angustiada com a situação do Theatro Municipal, vai dançar em companhia alemã, o bailarino Felipe, de ativa militância em defesa dos colegas, e o porteiro João, que reafirma seu imenso amor pela bela casa que o emprega (um theatro de estilo neoclássico, desenhado em moldes franceses). Ele garante, no filme, ter passado mais tempo dentro do Municipal, que na própria (e humilde) moradia.

Não há nenhuma entrevista durante os 86 minutos do documentário carioca, realizado em preto-e-branco. A câmara silenciosa (própria ao documentário observacional) de Vincent Rimbaux aproxima-se, com muita intimidade, dos bailarinos. “Nos tornamos”— contou Patrizia Landi — “cúmplices da luta deles, que, para nós, serviu como microcosmo da derrocada do Rio, um Estado que vinha de momentos de grande esperança e, de repente, se viu em queda livre”. O nome do filme, em francês é “La Chute Vertigineuse” (A Queda Vertiginosa). Bem mais significativo e vibrante, convenhamos, que o anódino “Ressaca”.

O filme deve ser lançado ano que vem nos cinemas brasileiros. Antes, a dupla deseja mostrá-lo a seus protagonistas, aqueles que ajudaram a transformar o Theatro Municipal num dos mais importantes cenários da vida cultural carioca. Mesmo que, nestes anos tão difíceis, pouco se invista nos corpos estáveis da instituição centenária. “Infelizmente”— contaram os cineastas — “o Theatro Municipal tem recebido, nos dias que correm e na maior parte das vezes, espetáculos que chegam prontos de fora”. E o que é pior, “vem sendo alugado para atividades diversas”. Uma delas será “o concurso de Miss Universo”.

“Notícias do Fim do Mundo” motivou debate dos mais participativos no auditório do Oásis Atlântico Hotel, segunda base do Cine Ceará (a primeira e principal é o sexagenário Cine São Luiz). À mesa, junto com Rosemberg Cariry, estavam os atores Everaldo Pontes (Mestre Jacaúna do Reisado), Majô de Castro (Rainha do folguedo), e João Paulo Soares, o embaixador de um país fictício, chamado Golem. E também Petrus Cariry, diretor de fotografia do filme, e Bárbara Cariry, a produtora.

Debate de "Notícias do Fim do Mundo" com a equipe do filme © Rogério Resende

O novo filme de Cariry significa, em certa medida, uma ruptura com suas obras anteriores – “A Saga do Guerreiro Alumioso”, “Corisco & Dadá”, “Patativa do Assaré”, “Cego Aderaldo”, “Os Pobres Diabos” etc. Ele continua apaixonado pela cultura popular, mas, em “Notícias do Fim do Mundo”, resolveu transformar uma história filmada em 2006, com o nome de “Folia de Reis”, em um filme fragmentado e urgente.

A trama, aparentemente, é simples: um ator dramático aposentado (Everaldo Pontes) trabalha numa ONG junto à população de bairro periférico de Kibuna, capital do Estado de Jenipapoaçu. Certo dia, ele resolve encenar um folguedo popular (o Reisado), em apresentação especial no Palácio do Governo. Afinal — intui — a apresentação poderia tornar-se o palco derradeiro do maior e mais grandioso ato teatral de sua vida. Ou seja, o sequestro do embaixador de Golem (outro país fictício). O velho ator exige, já com o refém sob suas ordenas, o direito de ler uma Carta ao Mundo dos Poderosos. O que virá, ao longo de enxutos 70 minutos, é uma desenfreada avalanche de imagens e sons (nesta que é a trilha mais vigorosa dos filmes de Cariry). O cineasta define “Notícias do Fim do Mundo” como “uma aventura transbarroca e pós-moderna, na qual o real se torna simulacro” e desenha-se “um tsunami de lixo no qual só a dor e o desespero são reais”.

Ao elenco que, em 2006, atuou na parte nuclear e originária de “Notícias do Fim do Mundo”, somam-se vozes de Helena Ignez, Luiz Rosemberg Filho, Manfredo Caldas, Chico Diaz, Silvia Buarque, Maria Fernanda e o irascível Cláudio Assis, com um bordão em tudo assemelhado ao que usa para agradecer seus prêmios em tribunas festivaleiras.

Na acelerada e fragmentária montagem (feita pelo próprio Rosemberg, com palpites de Firmino Holanda), vemos imagens de filmes dos soviéticos Serguei Eisenstein e Artavazd Peleshian, de bailados populares mexicanos (ao som de “Adelita”), somadas a registros documentais de favelas (da Rocinha, Morro do Alemão), a filmes-colagens de Luiz Rosemberg Filho etc., etc. O produtor carioca Cavi Borges foi um dos colaboradores do filme.

A produtora Bárbara Cariry, filha do cineasta e irmã do diretor de fotografia Petrus Cariry (realizador de filmes notáveis como “O Grão”, “Mãe e Filha” e “O Barco”) contou que “o filme nasceu de processo colaborativo”. “Se não contássemos” — detalhou — “com a contribuição dos atores, que aceitaram cachês camaradas e a cessão de imagens de produtores e realizadores como Cavi Borges e Luiz Rosemberg, dificilmente teríamos feito este filme”. Cariry, por sua vez, fez questão de registrar a importante colaboração do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST) e do Movimentos dos Trabalhadores Sem-Teto, que cederam imagens de seus acampamentos e ocupações. E lembrou: “são essenciais ao filme, imagens de quilombos, favelas e tribos indígenas, muitas delas colhidas por nós ou cedidas por amigos”.

Petrus, que estreou como diretor de fotografia de longa-metragem justo com “Notícias do Fim do Mundo”, revelou seus temores. “Eu só havia fotografado curtas. E, de cara, meu pai avisou que faríamos um filme de gênero, um filme de ação. Quem conhece meus curtas e longas, sabe que eles são mais contemplativos e sensoriais. Como fazer um filme de ação? Um filme no qual um ator, encarnado num mestre de Reisado, sequestra um embaixador?”

O desafio foi superado e Petrus conseguiu filmar helicópteros que rasgam, com som ensurdecedor, os ares em busca da localização do sequestrado e de seus sequestradores. Quem imaginaria que, um dia, Rosemberg Cariry iria realizar um filme de ação, gênero que fez a glória do cinema comercial norte-americano?

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