Cine Ceará vive noite calma com homenagem a Lilia Cabral

Por Maria do Rosário Caetano, de Fortaleza (Ceará)

Depois de abertura marcada por muitos protestos e aplausos, o Cine Ceará viveu momentos de muita calma. Da noite inaugural, só restaram as palmas, que foram muitas e calorosas para a homenageada Lilia Cabral, que recebeu, das mãos do ator José Loreto, o Troféu Eusélio Oliveira.

Depois da homenagem à atriz e da exibição, em caráter hors concours, de “Maria do Caritó” — com estreia agendada para 31 de outubro —, o público assistiu ao primeiro filme da competição oficial ibero-americana, o peruano “Canção sem Nome”, de Melina León.

Com muito afeto, Lilia Cabral contou, no palco do Cine São Luiz, que fizera menos filmes do que gostaria, e que estava ali, muito feliz e agradecida, por receber troféu por sua trajetória no teatro, TV e cinema. Sua única incursão pela política foi das mais discretas: “os governos passam e a cultura fica”.

A atriz convidou o público a assistir ao filme “Maria do Caritó”, dirigido pelo estreante João Paulo Jabour e realizado a partir de peça teatral que o pernambucano Newton Moreno escrevera especialmente para ela. E que ficou cinco anos em cartaz, tamanho o sucesso alcançado.

Lilia gosta de dizer que “Maria do Caritó” é uma “comédia que soma poesia e humor”. Não o humor rasgado, mas sim aquele “ingênuo, que busca emocionar o público”. Durante o debate de “Maria do Caritó”, ao qual compareceram, além de sua protagonista, o diretor Jabour, a produtora Elisa Tolomelli e o ator Fernando Neves, Lilia disse que “adoraria ter todos os atores da peça no elenco do filme, mas que isto seria impossível”. E explicou por que: “no teatro, um ator da minha idade pode fazer meu pai, já no cinema, isto não é crível, o público não aceita”. Por isto, “ Fernando Neves, que esteve em quatro papéis na montagem teatral (inclusive como meu pai) no filme, faz apenas o Bispo”.

A atriz, nascida em São Paulo há 62 anos e radicada no Rio, onde tornou-se uma das grandes estrelas da Globo, estreou no cinema em “Stelinha” e passou pelos elencos de “Dias Melhores Virão”, “Assim na Tela como no Céu” e “Como Ser Solteiro”. Seu primeiro papel de protagonista só viria em “Divã” (José Alvarenga Jr, 2009), longa também oriundo de peça teatral. Agora, Lilia sente-se realizada com “Maria do Caritó”, nascido de clamor do público fora do eixo Rio-São Paulo. “No quinto ano de nosso espetáculo”— contou a atriz —, “começamos a excursionar pelo país e muita gente me dizia: mas esta peça tem que virar filme. Me convenci de que tinham razão”.

A peça de Newton Moreno foi então adaptada para o cinema por José Carvalho (em parceria com o dramaturgo). Foram suprimidos alguns personagens e criados outros. E a ambientação natural ganhou relevo. As filmagens aconteceram na Zona da Mata mineira, na cidade de Piacatuba, entre Cataguases e Leopoldina. E, em torno de Lilia Cabral, a protagonista absoluta, circula uma dezena de personagens, nenhum deles interpretado por astro de TV. Claro que Leopoldo Pacheco, intérprete de um Coronel (aliás, o único em registro caricato) e Juliana Carneiro da Cunha (do Cirque du Soleil parisiense) são muito conhecidos. Mas não integram o star system televisivo, fato que agrega certo frescor ao filme.

João Paulo Jabour, que dirige novelas e minisséries na Globo, disse que tais escolhas foram intencionais. “Já contávamos com Lilia, que é muito conhecida”. Por isto, “escolhemos grandes atores de teatro, alguns vindos da montagem de “Maria do Caritó”, para estar conosco”. Do elenco de “Tom na Fazenda”, ele trouxe a roliça Kelzy Ecard, que interpreta Fininha, a maior amiga de Maria do Caritó, e Gustavo Vaz, o galã (ou galão) Anatole, astro de circo, que assegura ser de origem russa.

No debate, Jabour e Lilia fizeram questão de agradecer ao produtor da peça de Marc Bouchard, o ator Armando Babaioff: “a montagem de Tom na Fazenda conta com quatro atores. Tiramos metade deles e os levamos para a Zona da Mata Mineira, por dois meses. Babaioff os substituiu e manteve a peça em cartaz. Quando Kelzy e Gustavo regressaram, foram reintegrados ao espetáculo. Ele foi muito generoso com seus atores e conosco”.

O galã Anatole seria interpretado, no filme, por Domingos Montagner (1962-2016). A morte prematura do ator deixou a equipe consternada. Como Montagner e seu colega Fernando Sampaio tinham sólida formação circense (Circo Zanni e Cia La Mínima), eles vinham ajudando na preparação do elenco, já que parte de “Maria do Caritó” se passa num picadeiro. Com a morte do ator, seu colega Fernando Sampaio assumiu os trabalhos de preparação do elenco e interpretou o palhaço Fonsequinha. Um palhaço de olhos tristes e comoventes e, ainda por cima, mudo, por sugestão da produtora Elisa Tolomelli.

O pai de Maria do Caritó, que a ofereceu como noiva eternamente virgem a São Djalminha, ganha vida na sensível interpretação de Sylvio Zilber. Completam o elenco, as atrizes Alice Assef, que faz a noiva do Coronel, e Larissa Bracher, uma cartomante.
A população de Piacatuba faz figuração essencial no filme, seja em procissões, comício do Coronel, que é candidato a prefeito, ou nas cenas do circo, quando cantam (e encantam) como vozes duplicadoras da colcha de retalhos de canções-chiclete que Maria do Caritó interpreta para conseguir lugar no circo (e ficar próxima do galã Anatole, seu possível príncipe encantado).

O filme é uma comédia de formato televisivo, mas destaca-se pelo ótimo elenco (exceção para o grande ator Leopoldo Pacheco, que errou na dosagem de seu vilão), pela fotografia (belas imagens externas, de pastagens, igrejas e, em especial, de uma linda ponte) e por muitos achados de Newton Moreno (que aliás é autor da letra do “hino da solteirona virgem”, muito divertido).

Se o grande público resolver prestigiar o filme, quando de sua estreia no final de outubro, encontrará uma comédia censura livre, sem apelações escatológicas, com boa trilha sonora (embora, como as telenovelas, tenha música em excesso) e um delicado final libertário. Até as feministas gostarão do fecho desta comédia tributária de ingênuas chanchadas, do cinema caipira de Mazaroppi e, em certa medida, de “Lisbela e o Prisioneiro” e “O Auto da Compadecida”, ambas de Guel Arraes. Sem, registre-se, a qualidade deste último, baseado em Ariano Suassuna, que Daniel Filho rebatizou de “O Milagre da Compadecida”.

“Canção sem Nome”, representante do Peru, primeiro filme na disputa pelos troféus Mucuripe, está em outro patamar. É cinema de alta qualidade artística, fincado na realidade social e política do Peru dos anos da guerrilha comandada pelo Sendero Luminoso. A chamada década perdida, ou década do horror. Os anos 1980, início dos 1990, são relembrados pela cineasta Melina León com imagens documentais, evocações dos anos em que um professor de Filosofia, Abimael Guzmán, assumiu o comando da guerrilha de orientação marxista-leninista-maoista. Para batizar seu grupo insurgente, escolheu um nome poético (Caminho Luminoso). Com base em Ayacucho, na região andina, Guzmán, conhecido também como Presidente Gonzalo, liderou a guerra de guerrilhas até ser preso, em 1992, quando Alberto Fujimori governava o Peru.

“Canção sem Nome”, selecionado pela Quinzena de Realizadores de Cannes, não é um épico histórico. Ao contrário. Constitui-se como um drama íntimo, de base documental. Sua protagonista, Georgina (a atriz e antropóloga Pamela Mendoza, que a todos encantou, aqui no Ceará) interpreta uma jovem de origem indígena, migrante que deixara sua Ayacucho natal, para viver na periferia de Lima. Grávida, ela procura uma clínica para ter seu bebê. Nasce uma menina, que desaparece do berçário da “falsa” clínica. Desesperada, Georgina sai em busca da filha. Bate em muitas portas, em vão. Até que encontra um jornalista, Pedro Campos (Tommy Párragas), empenhado, apesar de todos os riscos, em denunciar desaparecimento de crianças, muitas vezes usadas por traficantes de órgãos.

A diretora de "Canção sem Nome", Melina León, e sua protagonista, Pamela Mendoza

A via crucis da jovem mãe envolverá organismos do Estado (inclusive a Justiça), omissos na solução dos problemas de migrantes pobres, saídos das regiões andinas, conflagradas pelos embates entre a guerrilha e o exército, e indo morar num bairro pobre, o Lima Sur, criado para abrigar, mesmo que de forma precária, os desterrados.

Melina León, que escreveu o roteiro em parceria com Michael J. White, inspirou-se em fatos reais e, principalmente, em reportagens de seu pai, importante jornalista peruano, empenhado na cobertura da década do horror. Autora de dois curtas, um deles fotografado por Inti Briones, um dos grandes fotógrafos da América Latina, a cineasta fez questão de estrear com um filme em preto-e-branco, em formato 4×3 (o mesmo do oscarizado “O Filho de Saul”), sem nenhum exotismo.

Coube a Briones, que já fotografou muitos filmes no Brasil, no Chile, no Peru e na Europa, assinar a fotografia de “Canção sem Nome”. Seu envolvimento foi tamanho, que ele assumiu, inclusive, o papel de coprodutor do longa peruano. No debate, o diretor de fotografia de “Exilados do Vulcão” (Paula Gaitán), “Vazante”, “O Banquete” (ambos de Daniela Thomas) e “Hebe, a Estrela do Brasil” (Maurício Farias), contou que ele e Melina queriam um filme sem nenhuma grandiloquência. Por isto, a opção por austero preto-e-branco. E, principalmente, pelo formato 4×3, no qual “até cenas internas parecem filmadas em interiores”. Em busca das imagens desejadas, eles assistiram a filmes como “Terra Amarela”, de Chen Kaige (fotografado por Zhang Yimou) e “Damnation” e “O Cavalo de Turim”, do húngaro Bela Taar.

O filme peruano sensibilizou a crítica cinematográfica, que compareceu em peso ao debate com a diretora, com sua protagonista e com Inti Briones. Melina contou que o cinema peruano vive um bom momento, graças a mecanismos de fomento patrocinados pelo Ministério da Cultura e que o Festival de Lima, o maior do país, costumava mostrar poucas produções locais. Nas últimas edições, em especial na que foi realizada mês passado, o cinema peruano brilhou. E “mesmo o público”— contou ela — “que costumava priorizar os filmes argentinos e brasileiros, passou a prestigiar também nossos filmes, lotando as salas”.

O crítico e pesquisador Emílio Bustamante, conterrâneo da cineasta e presente ao debate, contou que a produção peruana vive mesmo um grande momento, realizando média de 60 filmes por ano (nada mal para um país de apenas 30 milhões de habitantes). Mas que a distribuição e a exibição continuam sendo o calcanhar de Aquiles dos realizadores e produtores. “Como não há cota de tela”— detalhou —, “muitos filmes nem são lançados e os que chegam às telas dos cinemas o fazem em condições adversas”.

“Canção sem Nome” ainda não tem distribuição brasileira assegurada.

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