Cine Ceará apresenta “Vozes da Floresta”

Por Maria do Rosário Caetano, de Fortaleza (CE)

A quarta noite da vigésima-nona edição do Cine Ceará foi dominada pelas mulheres, que este ano ocupam 42% das vagas da mostra competitiva ibero-americana e, a partir do ano que vem, contarão com cota representativa de, no mínimo, 30%.

As cineastas Betse de Paula, diretora de “Vozes da Floresta”, e a mexicana de origem iraniana Bani Khoshnoudi, da ficção “Luciérnagas” (“Vagalumes”), subiram ao palco do Cine São Luiz para apresentar seus filmes.

Betse se fez acompanhar de três mulheres: Rosenilde Costa, a Rosa, representante do Movimento de Quebradeiras do Côco do Babaçu, de Neta Serejo, do Movimento de Atingidos pela Base Espacial de Alcântara, e de Nice Machado, da Associação das Comunidades Negras e Quilombolas, todas vindas do Maranhão.

A cineasta brasileira lembrou que seu documentário assumiu grande e incômoda “atualidade e urgência”, já que o Governo Bolsonaro enfrenta, hoje, “clamor planetário contra uma Amazônia em Chamas”. Mas não houve palavras de ordem, nem discursos mobilizadores no palco. Quando a sessão terminou, a plateia aplaudiu calorosamente. Por cumplicidade com as representantes de movimentos sociais presentes no Cine São Luiz e, claro, pelo mobilizador e oportuno tema do filme: a luta pela propriedade empreendida por mulheres indígenas, quilombolas, ribeirinhas e catadoras de côco do babaçu.

No debate de “Vozes da Floresta”, Betse de Paula contou que o filme nasceu de série de TV (“Guardiãs da Floresta”), para a qual ela registrou 400 horas de imagens colhidas em diversos Estados brasileiros. “Senti necessidade”— justificou — “de ampliar o alcance da série, que foi editada de forma didática, com narração em off e registro jornalístico televisivo. Senti que um filme seria mais mobilizador, chamaria mais atenção para as lutas travadas por essas mulheres”.

Para gerar um documentário cinematográfico, Betse convidou o cineasta gaúcho Tyrell Spencer para sua equipe. Ele sagrou-se vencedor do Festival É Tudo Verdade 2017 com o longa-metragem “Cidades Fantasmas”. No ano seguinte, foram parceiros no júri do festival paulistano, trocaram ideias e ele se dispôs a enfrentar as 400 horas de material gravado e dele extrair um roteiro e um plano de edição. Com novo título (“Vozes da Floresta”, aos invés de “Guardiãs”), o documentário teve sua narrativa condensada em 97 minutos. E livre de “didatismo, recursos gráfico-explicativos e narração em off”. A montagem consumiu oito meses de trabalho.

O filme começa com a primeira advogada indígena, Joênia Wapichana, defendendo, no Supremo Tribunal Federal, a demarcação da Reserva Raposa do Sol. Primeiro em sua língua materna e, depois, em português. Seguem outras vozes femininas, em especial a de Sônia Guajajara, que nas últimas eleições foi candidata a vice em chapa do PSOL. O filme parte, então, para os locais onde vivem ribeirinhas que defendem as águas e terras banhadas por rios ameaçados, catadoras de côco do babaçu e quilombolas em luta permanente pela posse da terra de seus ancestrais. Em especial, aquelas que enfrentam projetos da complexidade da Base Espacial de Alcântara, responsável pelo deslocamento forçado de centenas de famílias.

Dona Rosa esclareceu dúvidas do público, que compareceu ao debate de “Vozes da Floresta”, referentes a lei que permite às catadoras a busca de sua matéria-prima (o côco do babaçu) em fazendas alheias. “Como a planta é nativa”— explicou ela — “e as terras, em maior parte dos casos, griladas, há leis em alguns municípios maranhenses, que nos permitem buscar o côco para beneficiá-lo (seja como castanha comestível ou óleos medicinais”).

“Esta permissão”— acrescentou — “se dá em poucos municípios e a título precário”. Como o filme mostra, “somos obrigadas a passar por cercas de arame farpado com nossos pesados cestos. O que defendemos é a entrega dessas terras a nós, quilombolas, que estamos ali desde os tempos da escravidão. Nossos territórios foram apropriados por fazendeiros, que as grilaram”.

Neta Serejo, por sua vez, registrou o difícil momento vivido pelos quilombolas da região de Alcântara, no Maranhão, onde está instalada, há décadas, a Base Espacial. “Mesmo nos Governos Lula e Dilma, sensíveis à nossa causa e abertos ao diálogo, não conseguimos concretizar a titulagem de nossas terras”. Agora, “por decisão do Governo Bolsonaro, datada de 15 de março último, a Base Espacial será gerenciada em parceria com os EUA. Se já era difícil antes, agora será muito mais, pois o novo governo não esconde sua hostilidade aos quilombolas”.

Nice Machado também lembrou que “os governos ditos de esquerda mais prometeram, que cumpriram”. Mas lembra que “no campo educacional, muito fizeram. Há filhos de indígenas, de quebradeiras de côco e de quilombolas que conseguiram concluir seus cursos universitários”.

“Luciérnagas”, que resultou de coprodução entre México, Grécia e República Dominicana, causou ótima impressão entre o público e a crítica. Sua autora, Bani Khoshnoudi, nasceu em Teerã, capital do Irã, em 1977. Com a Revolução dos Aiatolás, dois anos depois, partiu com a família para o exílio, nos EUA. Estudou Fotografia, no colégio, e Arquitetura, na Universidade do Texas. Ao formar-se, foi viver na França, onde passou dez anos produzindo ou realizando documentários, alguns deles ambientados no Irã (ela tem livre acesso ao país).

Debate do filme "Vagalumes" © Rogério Resende

A cineasta estreou na ficção, em 2012, com “Ziba”. Para realizar seu segundo longa, “Luciérnagas”, somou um protagonista iraniano a atores conhecidos no México. O principal cenário do filme é a cidade portuária de Vera Cruz, que recebeu, no século passado, levas e levas de imigrantes vindos do Líbano, da China, de outros países latino-americanos, sem contar os milhares de refugiados da Guerra Civil Espanhola (1936-1939).

“Vagalumes” conta, de forma lacunar e contida, a história de Ramin, um jovem iraniano que embarca clandestinamente em um navio cargueiro, tendo a Grécia (ou a Turquia) como destino. Mas não consegue visto de permanência no país europeu. Parte, então, em outro cargueiro, para o México, desembarcando no porto de Vera Cruz. Trabalha em ofícios pesados como a colheita de abacaxi ou a construção civil. Aos poucos, com refinada delicadeza, saberemos que ele é homossexual e deixou o companheiro no Irã. Hospedado numa pensão barata, Ramin fará amizade com a solar proprietária Léti (Edwarda Gurriola), que cuida do tio idoso (Elígio Meléndez). E se aproximará de um rapaz de muitas tatuagens, Guillermo (Luis Alberti), que sonha migrar para Los Angeles, na Califórnia. O namorado de Léti já consumou o sonho de muitos mexicanos (cruzar a fronteira). Ele a abandonou para viver no Texas.

A zona portuária de Vera Cruz é explorada em cores quentes pela bela fotografia do chileno Benjamín Echazaretta. Ele registra a faina diária das máquinas e trabalhadores do grande porto. Registra, também, a sensação de abandono e solidão que vem das edificações vistas em noites escuras. Parecem ruínas de uma cidade que conheceu, no passado, dias de glória e apogeu econômico. Echazaretta filma corpos de forma epidérmica, destacando tatuagens e cicatrizes. As marcas nas costas de Ramin serão explicadas sem nenhum discurso verbal, só com o poder da sugestão visual.

O nome da ficção mexicana não tem nada a ver com a homossexualidade. Há dezenas de termos para designá-la no México e em outros países hispano-americanos. Mas nenhum tem a ver com vagalume. A cineasta contou que encontrou o nome de seu filme em ensaio de Pier Paolo Pasolini (“O Vazio do Poder na Itália”, conhecido como “o artigo dos vagalumes” e publicado em 1972). Este artigo foi tema de reflexão posterior empreendida pelo francês Georges Did-Haberman (em “Sobrevivência dos Vagalumes”).

Nestas duas fontes ensaísticas, o vagalume é visto como símbolo de resistência, mesmo que sua luz se acenda e logo se apague. Intermitente, sim, mas ela logo se acenderá. E se apagará. Bani lembrou, ainda, que em suas muitas leituras sobre o curioso inseto, foi possível encontrar uma possível e leve carga erótica. Afinal, apenas o macho da espécie emite luz (a fêmea não tem esta capacidade). E mais: “inspirei-me, também, nas luzes do imenso porto de Vera Cruz”.

A cineasta iraniano-mexicana não concordou com aqueles que viram, no filme, um protagonista homossexual fadado ao sofrimento. “De forma alguma” — argumentou — “ele chega a um país que não é o que escolhera, pois queria permanecer na Grécia ou ir para a Turquia. Faz trabalhos pesados, não fala espanhol e sente saudades do companheiro que deixou no Irã. Mas Ramin sabe que está em um país que, mesmo sendo católico, oferece — se comparado ao Irã — imensa liberdade aos homoafetivos”. Por isto, ela acredita que “Ramin vive momentos de solidão e melancolia, mas se empenha em se integrar, aprender espanhol (com Léti, a dona da pensão) e viver. Há esperança no filme”.

“Luciérnagas” participou de vários festivais, muitos deles destinados ao público LGBTI, e foi bem-recebido. Até os pais da cineasta, de perfil conservador, aprovaram o que viram em um festival, em Los Angeles, por entender que o filme “poderá sensibilizar a comunidade iraniana que vive nos EUA”.

O elenco de “Vagalumes” é majoritariamente mexicano. O principal papel feminino coube à roliça Edwarda Gurrola, atriz desde a infância (atuou nas novelas “Carrossel” e “Vovô e Eu” e em “Star Wars – Episódio 5” e “Efeito Colateral”). Só dois personagens são iranianos: o protagonista interpretado por Arash Marandi, ator radicado na Alemanha, e o rapaz que dá rosto ao namorado iraiano (só o vemos em conversa via Skype). Para este pequeno papel, foi convocado um jovem que vive em Washington, nos EUA. “Seria muito difícil”— ponderou a diretora — “encontrar atores, que vivem no Irã, dispostos a interpretar tais papéis”. Ou seja, “homossexuais”.

Na coprodução de “Luciérnagas”, Bani Koshnoudi encontrou dois nomes de grande prestígio no México e na República Dominicana: os diretores e produtores Laura Amelia Guzmán e Israel Cárdenas, a dupla que dirigiu “Dólares de Areia”, protagonizado por Geraldine Chaplin.

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