“A Hora da Estrela” e “Pacarrete”, em Florianópolis

Por Maria do Rosário Caetano, de Florianópolis (SC)

A atriz paraibana Marcélia Cartaxo veio direto do Festival de Vitória, no Espírito Santo, para o FAM (Florianópolis Audiovisual Mercosul), evento catarinense que programou dois dos filmes mais importantes de sua longa carreira, iniciada aos 12 anos. “A Hora da Estrela”, de Suzana Amaral, realizado há 34 anos atrás, integra o núcleo histórico do FAM, e “Pacarrete”, de Allan Deberton, participa da Mostra de Longas Ficcionais do Mercosul.

O cearense “Pacarrete” é o único longa-metragem de ficção brasileiro na disputa pelo troféu Panvision. Ele concorre com cinco filmes de fala hispânica (o colombiano “Menina Errante”, o equatoriano “Cinzas”, o boliviano “O Rio”, e os argentinos “El Rocío” e “Yo Niña”.

No júri, que escolherá o melhor filme, estão a atriz Antonella Costa (argentina nascida na Itália), que brilhou em “Garage Olimpo”, “Diários de Motocicleta” e “Dry Martina”, o chileno Claudio Pereira, do Festival de Viña del Mar, e o brasileiro José Geraldo Couto, crítico de cinema e tradutor. Os troféus Panvision serão entregues no Teatro Álvaro de Carvalho, no centro de Florianópolis, na noite desta quarta-feira, 2 de outubro.

Marcélia Cartaxo está vivendo, aos 55 (ou quase 57 anos, nas contas da amiga e atriz Soia Lira), um novo conto de fadas. O primeiro aconteceu em 1985, quando “A Hora da Estrela”, que Suzana Amaral adaptou da obra homônima de Clarice Lispector, estreou no Festival de Brasília e ganhou onze dos 13 troféus Candango em disputa. Inclusive os de melhor filme e melhor atriz. Poucos meses depois, em fevereiro de 1986, ela ganhou o Urso de Prata de melhor intérprete no Festival de Berlim, por sua sua Macabéia, moça frágil, escriturária desprovida de beleza, que se envolvia com Olímpico (José Dummont, também em grande desempenho).

Passados mais de 30 anos, Marcélia Cartaxo, nascida em família pobre, no município de Cazajeiras, sertão da Paraíba, volta a ser o centro das atenções. Em Gramado, ela viveu — por causa da bailarina sexagenária e “louca” que interpreta em “Pacarrete” — outro conto de fadas. O filme conquistou oito Kikitos, incluindo o de melhor longa brasileiro e o de melhor atriz. Pelas ruas da cidade gaúcha, habitada por descendentes de italianos e alemães, a nordestina era parada por fãs, que queriam abraçá-la e fazer uma selfie. A atriz perdeu a conta de quantas vezes posou para selfies com fãs anônimos e, também, famosos.

Macabéia e Pacarrete são personagens que exigem muito e, por isto mesmo, ficam marcadas na vida de suas intérpretes e na memória de cinéfilos e fãs. Depois de Gramado, Marcélia foi consagrada em duas sessões no Cine Ceará, realizado mês passado em Fortaleza. A primeira, no Cine Dragão do Mar, para moradores de Russas, município natal da verdadeira Pacarrete, a bailarina e professora de dança Maria Araújo Lima (1912-2004), fonte de inspiração do cineasta Allan Deberton. Ele mesmo, um russano. A segunda, na noite de encerramento do festival, no Cine São Luís, na Praça do Ferreira. A atriz foi aplaudida de pé.

Semana passada, no Festival de Vitória, no Espírito Santo, Marcélia brilhou tanto quanto duas outras musas do evento: a atriz Vera Fischer (“sou curvilínea”, gosta de dizer a catarinense) e a “dama do povo”, Rita Cadillac. As três até fizeram figuração de luxo em curta-metragem feito por alunos de oficina comandada por Luiz Carlos Lacerda, o Bigode.

Marcélia chegou a Vitória com seu nome nos créditos de dois filmes: “Pacarrete” e “O seu Amor de Volta (Mesmo que Ele Não Queira)”, de Bertrand Lira, amigo desde a infância. Eles cresceram juntos em Cajazeiras. Bertrand integra o Clã Lira, composto com quatro atores e/ou diretores. A vida da atriz está profundamente ligada ao destino artístico de Soia, Nanego, Buda (nomes curiosos e muito talentosos) e Bertrand Lira. Nos dois debates dos filmes que a têm como participante, Marcélia viu seus trabalhos serem elogiados e respondeu a muitas (e curiosas) perguntas.

Marcélia como Pacarrete, em cena do filme de Allan Deberton

Depois de décadas de silêncio em torno de sua vida pessoal, a atriz cajazeirense vem, aos poucos, se revelando. Bertrand, que vê “O seu Amor de Volta” como um documentário, não teve nenhuma dificuldade em registrar perda amorosa de outra grande atriz que está no filme, a paraibana Zezita Mattos (intérprete da irmã cadeirante de Pacarrete). Zezita narrou a dor (real) da separação do marido, Breno, com quem militou na Juventude Comunista e viveu casamento de 40 anos. O baque foi tão devastador, que ela passou dois anos em estado de depressão, tendo que recorrer a tratamento psiquiátrico e psicanalítico. Já Marcélia custou a falar de perda amorosa que a levou a dor profunda.

Bertrand, que conhece a atriz e amiga como poucos, usou de artifício engenhoso. Primeiro, pediu que Marcélia revivesse a relação de Macabéia com Olímpico. Só depois falaria da separação real, que a deixou muito fragilizada. A atriz construiu, então, um primeiro depoimento “ficcional”, antes de narrar o real. O cineasta, porém, diz que tal testemunho, o “fictício”, tem muito de verdadeiro, pois Marcélia vivenciou muito do que vemos em “A Hora da Estrela”. Bertrand explica: “ela foi para São Paulo, fazer teste para o filme de Suzana Amaral, de ônibus, praticamente sem dinheiro, sem ter onde morar”.

Num desabafo, Marcélia acrescenta: “vivi mais de um ano na casa da atriz Rosi Campos, uma pessoa maravilhosa, que além de grande intérprete, fazia um belo trabalho como divulgadora teatral”. Quando Rosi, que “tinha um filho pequeno, estava ocupada com o trabalho de atriz e divulgadora, eu tomava conta da criança”. Nas horas vagas, “aproveitava para fazer todos os testes que apareciam no cinema ou no teatro”. Só que “não conseguia nada”. Um dia, uma atriz de peça infantil teve que abandonar seu papel. “Aí, sim, me aceitaram como atriz substituta”.

O Urso de Prata ganho em Berlim não facilitou a vida da jovem paraibana, então com vinte e pouquinhos anos. “Atuei em pequeno papel em ‘Brasa Adormecida’, de Djalma Limongi, e fiz ‘Fronteira das Almas’, de Hermano Penna”. Mas o trabalho continuava rarefeito. Mudou-se para o Rio e fez algumas novelas na Globo. “Mas sempre como empregada doméstica, daquelas que carregam bandeja para os protagonistas e têm poucas falas”.

Com o tempo, mas com intervalos preocupantes, desempenhou papeis em filmes que tiveram boa repercussão: “Madame Satã”, de Karim Aïnouz, “Batismo de Sangue”, de Helvécio Ratton, “Baixio das Bestas” e “Big Jato”, ambos de Claudio Assis, “A História da Eternidade”, de Camilo Cavalcante. Neste exato momento, os cinemas exibem um de seus filmes paraibanos, o longa ficcional “Ambiente Familiar”, de Torquato Joel.

A situação amorosa (terminou matrimônio conturbado) e os problemas financeiros a afastaram do Rio. Ela resolveu, então, deixar os pequenos papéis na Globo e regressar à sua Paraíba natal. Tornou-se funcionária da Funjope (Fundação Cultural de João Pessoa) e passou a dirigir curtas-metragens (“Tempo de Ira”, codireção de Gisella de Mello, “Da Lua” e “Redemunho”). Agora, prepara-se para dirigir seu primeiro longa, o melodrama “Eu Vou Tirar Você Desse Lugar”.

Allan Deberton, que entregou a Marcélia o papel da russana Pacarrete, promete realizar um filme sobre a difícil trajetória da atriz. Não será um documentário, mas sim uma ficção. Afinal, tem muito de conto de fada a história da menina pobre de Cajazeiras, que um dia triunfou em Berlim. Um triunfo, registre-se, recheado de contratempos.

“Durante o Festival de Berlim” — relembra Marcélia —, “eu estava num ônibus e fui insultada por um alemão. Eu não entendi nada, pois desconhecia o idioma dele. Percebi, claro, que ele estava bravo. Aí me explicaram que ele me confundiu com uma judia”.

A atriz, que aniversaria no próximo dia 27, tem convites para muitos outros festivais, no Brasil e no exterior. Tudo por causa da fascinante “Pacarrete”. Ela só espera que o difícil momento atravessado pelos artistas brasileiros, em especial os cineastas, não atrapalhe a concretização de seu primeiro longa-metragem como diretora, nem sua cinebiografia engendrada por Deberton. Como muitos produtores e diretores estão vendo seus projetos enfrentarem novos obstáculos (a Ancine sob a mira do Governo Bolsonaro), Marcélia evoca sua fase budista: “vamos lutar pela paz, pelo entendimento, pelo fim do ódio”. Ela — avisa — quer “distância de forças destrutivas”.

Marcélia Cartaxo e Assunção Hernandez © Allan Deberton

No FAM, a atriz reencontrou muitos amigos. E uma amiga especial, a produtora Assunção Hernandez, da Raiz Filmes, empresa que assinou “A Hora da Estrela”, um dos filmes mais festejados de nossa cinematografia, eleito um dos cem melhores longas brasileiros pela Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). E um “cult” feminista, que costuma encabeçar todas as listas dos melhores filmes brasileiros dirigidos por mulheres.

One thought on ““A Hora da Estrela” e “Pacarrete”, em Florianópolis

  • 1 de outubro de 2019 em 23:33
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    Bela matéria Maria do Rosário.

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