Fernando Meirelles reencontra o sucesso com “Dois Papas”
Por Maria do Rosário Caetano
O cineasta Fernando Meirelles tem dois filmes na repescagem da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que prossegue até esta quarta-feira, 6 de novembro, no CineSesc: o ficcional “Dois Papas”, produção da Netflix, com DNA brasileiro, e o documentário britânico “A Grande Muralha Verde”, de Jared P. Scott, no qual desempenhou a função de produtor executivo.
Se, como produtor, a trajetória de Meirelles, paulistano de 64 anos, nunca sofreu revezes (a O2 segue produzindo muitos filmes e séries para TV), o cineasta conheceu altos e baixos. Sua carreira como realizador, que soma nove longas-metragens e participação em um filme de episódios (“Rio Eu te Amo”) teve em “Cidade de Deus” seu ponto mais luminoso. E polêmico, a ponto de ocupar espaço nobre e central na vida cultural do país (vide as paroxísticas discussões que antagonizaram a “cosmética da fome” x a “estética da fome”).
“Cidade de Deus”, recriação do livro homônimo de Paulo Lins, alcançou imenso sucesso de público (3,2 milhões de ingressos no Brasil), concorreu a quatro Oscar e, mesmo tendo dividido a crítica radicalmente, assegurou seu lugar na história do cinema brasileiro. Basta ver o reconhecimento que Lúcia Nagib e Samuel Paiva dão ao diretor e a seu filme no longa documental “Passagens”, produção britânica exibida (e debatida) na Mostra SP.
Nenhum dos longas-metragens que Meirelles realizou nas últimas décadas chegou perto do impacto de seu favela movie. “O Jardineiro Fiel” concorreu em Veneza e teve indicações ao Oscar. Mas ficou no meio do caminho. “Ensaio sobre a Cegueira” chamou atenção (relativa) pelo prestígio do autor do livro (José Saramago) que lhe deu origem e por seu elenco internacional, mas não estourou junto ao público, nem entusiasmou a crítica. Repercussão pequena teve outro projeto internacional de Meirelles, “360”, apesar do time de estrelas que reuniu.
Dois outros filmes do cineasta paulistano, “Som & Fúria” e “Pescador de Pérolas”, este em parceria com Carlos Náder, vieram da TV (o primeiro, de série realizada para a Globo) e da ópera. Chegaram discretamente ao circuito exibidor.
Agora, um filme – “Dois Papas” – recoloca o cineasta no circuito dos festivais e vem causando boa impressão por onde passa. Muitas críticas positivas foram publicadas no exterior (incluindo grandes jornais norte-americanos) e no Brasil. Coube a “Dois Papas” a condição de convidado hors concours da noite de encerramento da 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em concorrida sessão no Auditório do Ibirapuera.
O novo filme de Meirelles passou por trinta festivais, nos EUA, Canadá (Toronto), Europa e Ásia. Ganhou o prêmio do público no Middleburg Film Festival e no Mill Valley Film Festival, foi eleito o melhor longa no Orcas Island Film, na Islândia, e recebeu prêmios no Hamptons Film Festival e no 37 Miami Film Festival.
No Mumbai Film Festival, que acontece anualmente na cidade que conhecíamos como Bombaim e que foi o berço da Bollywood asiática, Meirelles ganhou prêmio por sua carreira e coube a ele proferir masterclass para imensa e atenta plateia internacional.
Foi em Mumbai (ou Bombaim), que Meirelles deu sua opinião sobre os filmes de super-heróis que tomaram conta, de forma avassaladora, de todos os circuitos exibidores planetários. A ponto de Martin Scorsese, o grande diretor de “Taxi Driver” – seguido por Francis Ford Coppola, Ken Loach e Pedro Almodóvar – inaugurar polêmica que vem se desenvolvendo ao longo dos últimos meses em páginas de revistas e jornais dos EUA e Europa.
Para Scorsese, os filmes baseados em super-heróis da Marvel transformam o cinema num “parque de diversões”. Coppola foi mais longe e qualificou tais filmes de “desprezíveis”, depois de avisar que “nós (os espectadores) esperamos aprender com o cinema, ganhar alguma coisa, algum conhecimento”. Pedro Almodóvar, por sua vez, qualificou tais filmes de “rasos”, pois “a sexualidade não existe para eles”. E foi adiante: “parece que (os super-heróis) são castrados ou não têm gênero identificado, só o que importa é a aventura”.
A Revista de CINEMA pediu a Fernando Meirelles que detalhasse sua opinião sobre os filmes da Marvel, já que sua palestra na Índia repercutira no Brasil. Com seu humor costumeiro, ele brincou: “não sei como uma resposta numa masterclass em Bombaim possa ter viajado tanto!”.
“Fui apenas honesto” – explicou – “ao dizer que não poderia emitir opinião, pois não assisto aos filmes da Marvel. Bem que tentei algumas vezes, mas eles me dão sono”. E mais: “os efeitos visuais são muito bem feitos, mas eu gosto de histórias. Assisti, confesso, no cinema, ao ‘Dead Pool’, porque gostei do trailer. Gostei do filme também”. Mas, aí, “depois fui ver o ‘Dead Pool 2’, na TV, e acabei me entediando, fui acelerando e assisti ao filme em 40 minutos. A história não parava em pé. Nunca mais tentei”. Por isso: “não posso julgar”.
“Dois Papas”, o filme que devolveu a Meirelles a alegria de voltar aos festivais, um atrás do outro, e que pode resultar em alguma indicação ao Oscar (melhor ator?, melhor roteiro para o neozelandês Anthony McCarten, o mesmo de “Bohemian Rhapsody”?) foi feito para o streaming. Dia 20 de dezembro, ele será disponibilizado aos assinantes da Netflix. Antes disso, será lançado em salas comerciais de diversos países, mas em circuito reduzido.
Quem pensou que “Dois Papas” resultaria em um filme pequeno, sedimentado no diálogo entre Bento XVI (Anthony Hopkins) e Francisco (Jonathan Pryce) – como a peça que lhe deu origem – enganou-se. Meirelles, com a poderosa retaguarda da Netflix, fez um longa-metragem que dura mais de duas horas, com filmagens na Argentina e no Vaticano. No país platino, Meirelles filmou a juventude de Jorge Bergoglio, sua polêmica atuação em tempos ditatoriais e sua ação pastoral em favelas, em especial na Villa 21. No Vaticano, em monumentais sequências externas e internas, destacam-se longas filmagens na Capela Sistina (recriada em estúdio da Cinecittà), obra-prima de Michelangelo, que Cesar Charlone fotografou com maestria.
O filme concentra sua ação no padre, cardeal e, finalmente, Papa Francisco, o 266º da Igreja Católica. Claro que os diálogos entre o argentino e o alemão Bento XVI ocupam grande espaço na narrativa. Mas, para que ela não se tornasse enfadonha, Anthony McCarten, o roteirista, e Meirelles exploraram as imensas possibilidades do cinema. O filme nunca cai na monotonia, nem soa literário (ou teatral). E conta com tiradas inteligentes e irônicas, pois o bávaro conservador (Bento) e o argentino progressista (mas com manchas em seu passado) são homens de ideias complexas (embora se sujeitem a dogmas de fé).
Diretor e roteirista capricharam no humor (fino e sutil), matéria-prima do inigualável “Habemus Papam” (Nanni Moretti, 2011). A trilha sonora, descolada e com hits bem conhecidos, traz Mercedes Sosa, conterrânea de Bergoglio, e até o hino dos revolucionários partigiani “Bella Ciao”, resgatado pela série “La Casa de Papel”.
Os criadores de “Dois Papas” tiveram liberdade para fugir da biografia chapa-branca. O envolvimento de auxiliar próximo de Bento XVI com a pedofilia entra na narrativa. Poderia ter sido melhor explorado. Neste sentido, o chileno Pablo Larrain brilhou com “O Clube” (2015).
Já a controversa atuação política de Bergoglio durante a ditadura militar, esta sim, é muito bem explorada. Ocupa espaço nobre para nos mostrar que o religioso argentino manteve-se próximo dos dirigentes fardados e responsáveis pela morte de milhares de dissidentes. Até um avião despejando corpo no mar, o espectador verá.
O público verá, também, que os cardeais, responsáveis pela eleição do Papa, são politiqueiros como qualquer detentor de voto. Até a fumaça branca aparecer na chaminé do Vaticano, rolará muito conchavo. Afinal, mostra o filme, ali estão seres humanos, com seus desejos, ambições, vaidades e crenças.
O desempenho do elenco, essencialmente masculino (pois a alta hierarquia da Igreja Católica não abre espaço para mulheres), é excelente. Jonathan Pryce parece um sósia do Papa Francisco. Sua versão jovem, o ator argentino Juan Minujin, dá conta do recado. E o grande Anthony Hopkins brilha mais uma vez, longe de qualquer simplificação.
Meirelles faz questão de destacar o DNA brasileiro desta produção internacional, falada em espanhol (nas sequências argentinas), em italiano e, em boa parte, em inglês, idioma usado nos diálogos entre o Papa (que renunciou) e o que o substituiu. Mas roteirista e diretor não perdem a oportunidade de mais uma ironia: falar inglês (para um alemão e um argentino) o tempo todo cansa!
Os brasileiros, na equipe de “Dois Papas”, produção que uniu EUA (via Netflix), Inglaterra, Itália e Argentina, são – além de Meirelles no comando – o diretor de fotografia Cesar Charlone (o mesmo de “Cidade de Deus”), o editor Fernando Stutz, “um talento impressionante, que tem total domínio da narrativa e trabalha da reconstrução do roteiro até os mínimos detalhes da música e do desenho de som”, e a “galera da pós-produção” da O2. Foi na sede paulistana da empresa que Stutz orquestrou os 125 minutos de duração do filme.
Dois Papas
Ficção produzida pela Netflix
Direção: Fernando Meirelles
Roteiro: Anthony McCarten
Fotografia: César Charlone
Elenco: Jonathan Pryce, Anthony Hopkins e Juan Minujin
Sessão na Repescagem, neste domingo, 3 de novembro, às 20h00, no CineSesc. Duração: 125 minutos
A Grande Muralha Verde
Documentário britânico
Direção: Jared P. Scott
Produção executiva: Fernando Meirelles
Com participação da cantora e ativista Inna Modja, do Mali
Em cartaz na Repescagem, nesta segunda-feira, 4 de novembro, às 20h40, no CineSesc. Duração: 92 minutos
FILMOGRAFIA
Fernando Meirelles (São Paulo/SP, 1955)
1998 – “Menino Maluquinho 2 – A Aventura” (codirigido com Fabrizia Pinto)
2001 – “Domésticas” (codirigido por Nando Olival)
2002 – “Cidade de Deus”
2005 – “Jardineiro Fiel”
2008 – “Ensaio sobre a Cegueira”
2009 – “Som & Fúria, o Filme”
2011 – “360”
2014 – “Rio Eu te Amo” (um episódio)
2018 – “Ópera Aberta: Os Pescadores de Pérola” (codirigido por Carlos Náder)
2019 – “Dois Papas”
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