Tema do feminicídio marca a sexta noite do Festival de Brasília

Por Maria do Rosário Caetano, de Brasília

O feminicídio, que tem ocupado as páginas dos jornais e está no centro das preocupações do movimento feminista, foi tema de emocionado discurso de Ana Flávia Cavalcanti, atriz-protagonista e diretora (em parceria com Júlia Zakia) do curta paulistano “Rã”. Ao subir ao palco do Cine Brasília, ela clamou por um “basta” à violência contra a mulher.

A mineira Marília Nogueira, que se fez acompanhar de Clara da Matta, sua assistente de direção, dedicou seu discurso de apresentação do curta “Ângela”, à luta pela presença da mulher em postos de criação e produção audiovisual”. Ela é o esteio do Projeto Cabíria, concurso de roteiros e, agora, festival de cinema feminino.

O terceiro filme da noite, “Loop”, foi apresentado por seu autor, Bruno Bini, como “o primeiro longa-metragem de Mato Grosso a competir no Festival de Brasília, o mais antigo e tradicional do país”. Acompanhado de atores (Branca Messina e Nikolas Antunes) e das produtoras Luciana Druzina e Angelina Stein, o cineasta lembrou “o momento difícil vivido pelo audiovisual brasileiro”, mas, otimista, disse “que o setor vai resistir, que a regionalização tornou-se realidade e que não se destrói indústria que gera mais de 150 filmes por ano e emprega milhares de pessoas”.

Stein e Druzina fizeram questão de lembrar que, mais que matogrossense, “’Loop’ é um filme brasileiro”, pois mobilizou profissionais gaúchos (as duas coprodutoras), brasilienses (a diretora de arte Maíra Carvalho), paulistas e cariocas (em especial os atores Bruno Gagliasso, Branca Messina, Roberto Birindeli e Zé Carlos Machado).

Ao final da sessão, os aplausos foram fartos para os dois curtas. E contidos para o longa. No debate, realizado no dia seguinte, algo similar se processaria. Muitos elogios e perguntas positivas para o curta mineiro e o paulistano, e fogo cerrado sobre “Loop”. O longa matogrossense foi massacrado.

Bini, Branca, Druzina e Stein deram respostas tímidas aos questionamentos da plateia. Ao contrário de Francisco Bosco, também submetido a pesado escrutínio pelos debatedores do longa “O Mês que Não Terminou”, eles pareciam sem argumentos para defender o filme mostrado na tela do Cine Brasília. Foram civilizados, como Bosco. Mas se o carioca se abriu ao diálogo, com sólida defesa de seu documentário, e até admitiu falhas em sua construção estética, o matogrossense e sua equipe mostraram perplexidade, timidez e discurso limitado.

Para complicar ainda mais a situação de Bruno Bini e seus pares, “Loop” caiu em programa triplo com dois curtas que têm nas mulheres suas protagonistas, roteiristas e diretoras. Mulheres vistas como sujeitos de sua história, colocadas em sólidas situações de amizade ou amor filial.

“Ângela” é um curta sobre mulheres idosas que se reinventam. Sua protagonista (Teuda Bara, grande atriz do Grupo Galpão) é uma sexagenária solitária, que coleciona diagnósticos médicos e preenche uma enorme parede com estudos sobre cada sintoma de seus supostos males. Encontrará na sororidade feminina sua razão de viver. Suas vizinhas numa pequena cidade do interior de Minas, também idosas, serão as parceiras de dias vindouros e melhores. Tudo temperado com amor e humor.

“Rã” recria história de Val, uma jovem mãe da periferia (Ana Flávia Cavalcanti), que vive com as duas filhas pequenas, em casa muito humilde, sujeita a vazamentos provocados pela chuva. Numa determinada noite, alguém bate à sua porta. É Neném Preto, caixa do mercadinho local, que faz a ela um pedido: que guarde, por uma noite, uma carga desconhecida. As rãs entrarão em cena para provocar saborosa confraternização.

Já “Loop”, um mix de ficção científica (tipo “De Volta para o Futuro”) e thriller violento, dividiu a plateia. Não foi vaiado, mas recebeu aplausos apenas protocolares. Muita gente não entendeu o que um filme de características “tão explicitamente comerciais” fazia na seleção do festival.

O primeiro longa de Bini tem um feminicídio no centro da narrativa. Na hora do debate, realizadoras feministas como Marília Nogueira (“Ângela”), Sabrina Fidalgo (“Alfazema”) e Ana Flávia Cavalcanti (“Rã”) foram incisivas em suas perguntas a cineasta e equipe.

Marília Nogueira, a mais incisiva de todas, é a criadora do Projeto Cabíria, dedicado ao alargamento de espaços para as mulheres no audiovisual brasileiro. Ela inspirou-se em pesquisas do Instituto Geena Davis, atriz de “Thelma & Louise”, responsáveis por revelações surpreendentes. Um exemplo: “apenas 23% dos protagonistas de blockbusters made in USA eram nomes femininos, cabendo portanto aos homens 77% dos grandes papéis”. Frente a tais dados, Marília resolveu criar, em 2015, o Cabíria. Sua primeira e mais vistosa atividade foi a edição de concurso de roteiros nos quais houvesse espaço essencial para mulheres. Este ano, neste mês de novembro, a coordenadora do projeto promoveu a primeira edição do Festival Cabíria, que reuniu, no Rio de Janeiro, 27 curtas e oito longas femininos.

“Loop” não tem nenhuma mulher em seu núcleo criativo, protestou Marília. E conclamou as duas coprodutoras (Druzina e Stein) e a atriz Branca Messina, a provocarem, nas equipes em que atuam, questionamentos sobre a ausência de mulheres em postos ligados à criação (direção, roteiro, fotografia etc). Diretor, atriz e coprodutoras prometeram, em projetos do tempo presente e futuro, dar a devida atenção à presença feminina. Bini, sob a saraivada de questionamentos, parecia acuado, mas disse que “aceitava as críticas”, pois “estava trocando ideias e aprendendo”.

As três realizadoras-questionadoras lamentaram o retrato das duas principais intérpretes femininas de “Loop” (além de Branca Messina, a atriz Bia Arantes). Messina interpreta a irmã do protagonista (Bruno Gagliasso), uma mulher que vive em função do irmão. Bia representa a namorada dele, moça frívola, que apanha do parceiro e, em seguida, faz sexo com ele. E, o que mais indignou as três cineastas, é vítima de feminicídio dos mais brutais.

O pernambucano Djalma Galindo, diretor de “Uma Balada para Rock Lane” (2016), amigo de Severino Dadá e participante ativo dos debates do festival, quis saber da curadoria colegiada (de cinco integrantes) o que a motivara a escolher um filme como “Loop” para uma competição de apenas sete títulos (inscreveram-se 196 longas-metragens, vindos das cinco regiões brasileiras).

Anna Karina Carvalho, da curadoria colegiada e moderadora do debate, explicou que “a ideia fora apostar no pluralismo”, apresentar “também filmes que buscam o diálogo com o público”. O produtor e cineasta Marcus Ligocki, também da curadoria, justificou: “num momento em que vivemos ameaça de desconstrução da atividade audiovisual no Brasil, quisemos nos orientar pela famosa frase de Paulo Emilio Salles Gomes, da equipe que criou o Festival de Brasília: ‘o pior filme brasileiro nos ajuda a compreender nosso país, mais que o melhor filme estrangeiro’”. E completou: “num momento em que produções como ‘Vingadores’ chegam a ocupar 90% de nosso circuito exibidor, optamos pela seleção também de filmes que falem além dos nichos, que não preguem só para convertidos”.

Na Mostra Brasília BRB, destinada à produção candanga, foi exibido o longa documental “Mito e Música – A Mensagem de Fernando Pessoa”, de Rama Oliveira e André Luiz Oliveira. Como André, diretor de uma série de longas-metragens (“Meteorango Kid”, “A Lenda de Ubirajara”, “Louco por Cinema”, entre outros), é o fio condutor do filme, ele achou por bem dividir a direção com a filha Rama.

Além de cineasta, o codiretor da “Mensagem de Fernando Pessoa” é músico. Nas três últimas décadas, ele dedicou-se a compor e gravar (com grandes instrumentista e intérpretes, gente da grandeza de Gilberto Gil, Caetano Veloso, Cyda Moreira, Dulce Pontes e António Zambujo) 44 composições que colocaram melodia em todos os poemas do livro “Mensagem”, único que Pessoa publicou em vida.

Ao longo de 96 minutos, vemos imagens colhidas em Portugal e no Brasil (incluindo biblioteca e bucólica casa-sítio do cineasta) somarem-se em um tecido delicado e informativo. Grandes estudiosos da obra de Fernando Pessoa (1888-1935) analisam o conjunto de poemas publicados em vida, tido como “nacionalista, hermético e pleno de revelações”, escritos ao longo de 22 anos (de 1912 a 1934) e que foi premiado em concurso promovido pelo Governo Salazar. Vemos, também, André Luiz Oliveira, o compositor-cineasta, dedicando-se à criação e registro dos três discos que transformaram 44 poemas em 44 composições musicais.

Caetano Veloso fala de sua ligação com o poeta, aquele que assegurou que “minha pátria é minha língua” (ou seja, a Língua Portuguesa). O próprio André evoca, na “Mensagem”pessoana, a presença do “Encoberto” ou “Encantando” (Dom Sebastião, rei de Portugal, que desapareceu na Batalha de Alcácer-Quibir e virou lenda e liderança messiânica) e do sonhado Quinto Império (que teria no Brasil seu epicentro). Carlinhos Brown toma intimidades e chama — antes de interpretar uma das composições de André Luiz, em seu Gheto do Candeal — o poeta de “Seu Fernando”. Ney Matogrosso interpreta os versos de Pessoa com viva paixão, Mônica Salmaso também. Cyda Moreira, presente em momentos diferentes do projeto, canta e encanta.

O filme busca atmosfera capaz de expressar o imenso amor de André Luiz Oliveira pela poesia de Fernando Pessoa, sua identidade com a pregação mítica e mística contida nos versos daquele que foi uma das maiores expressões da alma lusitana. O filme mostra, ainda, que, quanto mais o tempo passa, “mais dimensões ‘Mensagem’ revela”.

A montagem, assinada por Cristina Amaral, condensa materiais os mais diversos e faz deste filme o inventário de uma paixão (pela poesia, pela música, pela língua portuguesa, por vozes melódicas da África, Portugal e Brasil). A imensa paixão de um cineasta que virou músico (sem abandonar o cinema) para trazer ao convívio das novas gerações, um dos poetas mais inventivos e enigmáticos da língua portuguesa e da literatura universal.

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