Tragédia de Mariana em filme inédito de Walter Salles

Por Maria do Rosário Caetano

Quatro anos atrás, 5 de novembro de 2015, uma das maiores tragédias socioambientais da história brasileira soterrava vários povoados e deixava 19 mortos, um desaparecido e centenas de desabrigados no município de Mariana, região do ouro de Minas Gerais.

O rompimento de barragem da mineradora Samarco gerou um rio de lama que destruiu os vilarejos de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, espalhando desespero e dor por mais de 600 km. Às perdas humanas, somou-se grave destruição do ecossistema do Rio Doce.

O Canal Brasil vai relembrar a “Tragédia de Mariana”, nesta terça-feira, 5, exibindo, às 21h50, um dos episódios – “Quando a Terra Treme” – do longa-metragem “Em que Tempo Vivemos?”, primeira produção coletiva do BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), comandada pelo cineasta Jia Zhangke, com parceiros em cada um dos países envolvidos (no caso brasileiro, a parceria se deu com a Videofilmes).

A exibição programada pelo Canal Brasil tem um lado positivo e um negativo. Primeiro, o espectador ganha a chance de assistir a um ótimo (e inédito) filme, para o qual Walter Salles convocou parceiros muito especiais. A começar por Gabriela Amaral Almeida (diretora de “O Animal Cordial” e “A Sombra do Pai”), autora de roteiro envolvente e forte. Destaque para o elenco, encabeçado por Maeve Jinkings e complementado por Sandra Corveloni, Rômulo Braga, Rodrigo Bolzan, André Novais Oliveira e atores não-profissionais da região. A fotografia é do craque peruano Inti Briones.

O lado negativo tem a ver com o nebuloso futuro que se anuncia para os projetos coletivos dos BRICS. Se nem os nomes de Walter Salles e Jia Zhangke (à frente deste projeto de grande significação geopolítica e simbólico-cultural) foram suficientes para colocá-lo no circuito exibidor brasileiro, o que será?

Apresentado na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em 2017, “Em que Tempo Vivemos?” demonstrou sua força. Além das substantivas qualidades do episódio brasileiro, o público encantou-se com o russo, uma pequena obra-prima (de Alexey Fedorchenko), com os tocantes episódios da Índia (de Madhur Bandarkar) e China (do próprio Jia Zhangke) e (só) não entendeu bem o episódio sul-africano, uma estranha ficção científica dirigida por Jamil X.T. Qubeka.

Este ano, a recém-encerrada 43ª edição da Mostra SP apresentou o segundo longa em episódios do Projeto BRICS, mais uma vez sob o comando de Jia Zhangke: “Vizinhos”. O grande cineasta chinês, também produtor e diretor de festival em seu país, corrigiu falha de escalação do primeiro filme, que teve todos os seus episódios entregues a nomes masculinos.

Para “Vizinhos”, o diretor de “Still Life – Em Busca da Vida” mobilizou três mulheres (a brasileira Beatriz Seigner, a indiana Rima Das e a sul-africana Jenna Bas) e dois homens (o chinês Han Yan e o russo Alexander Zulotukin). O resultado é formidável. O episódio brasileiro reúne a veterana Léa Garcia a Norberto Novaes de Oliveira (pai do ator Renato e do cineasta André, presente no elenco do filme de Walter Salles) para contar a história de uma vizinha solidária, que a todos acolhe.

Os episódios indiano e chinês, mais uma vez, lembram as lições do Neo-Realismo italiano, com tramas marcadas pelo afeto e pelo humanismo. A África do Sul mostra a luta de um grupo Sem-Teto pelo direito à moradia com pegada documental. A participação russa baseia-se em Tchekov, o grande dramaturgo e ficcionista russo, e optou pela sátira (não pela ternura de seus pares).

Será que os dois filmes que carregam o selo BRICS serão, um dia, lançados no circuito comercial brasileiro? Ou na TV aberta, por assinatura ou streaming? Com a palavra, Walter Salles (filmografia abaixo) e Beatriz Seigner (de “Bollywood Dream” e “Los Silencios”).

Enquanto “Em que Tempo Vivemos?” e “Vizinhos” esperam sua hora e sua vez, nada melhor que assistir ao episódio “Quando a Terra Treme” (homenagem de Walter Salles ao terceiro longa-metragem de Luchino Visconti – o poderoso “La Terra Trema”, 1947).

Maeve Jinkings é a protagonista da parte brasileira do BRICS 1. Ela interpreta Luciana, uma professora, que, após perder casa e todos seus bens materiais (devido ao rompimento da barragem da Samarco), sofre a dor maior: ver o nome do marido na lista de desaparecidos. Ela tenta superar o trauma ao lado do filho Guto. O garoto guarda esperanças em ter o pai de volta. Dia após dia, Luciana e o filho tentam adaptar-se às condições adversas de uma vida pós-desastre, nutrindo expectativas e desejos diferentes, e que os mantêm vivos.

“Quando a Terra Treme” foi rodado, dois anos depois do desastre socioambiental provocado pela Samarco, em locações reais. Walter Salles conta que, ao ser convidado por Jia Zhangke a realizar um sintético retrato brasileiro de nosso tempo, pensou imediatamente no rompimento da barragem de Mariana.

“Não era somente o maior crime ambiental da história do país” – refletiu –, “mas também um retrato da gritante impunidade brasileira”. Afinal, “vidas foram ceifadas, vilarejos destruídos e milhares de pessoas perdiam ali a relação de pertencimento com o local onde moravam. Pensamos nas memórias soterradas pela tragédia, nos laços de afeto que se desfaziam brutalmente, naquelas vidas que seriam modificadas para sempre”.

O realizador carioca, que não dirige um longa-metragem desde o potente documentário “Jia ZhangKe, um Homem de Fenyang” (2014), elegeu fato perturbador como elemento central de “Quando a Terra Treme”: um corpo nunca encontrado. Esta trágica realidade permitiu a ele e sua equipe de colaboradores construir narrativa a partir de uma indagação: “o que acontece numa família de três pessoas profundamente unidas, quando uma delas desaparece em uma tragédia?”

O vasto material gravado por Walter e sua equipe, para alimentar o roteiro de Gabriela Amaral, rendeu também o documentário “Vozes de Paracatu e Bento”, composto com depoimentos dos habitantes de Paracatu de Baixo e de Bento Rodrigues. O filme foi exibido, pela Globonews, em agosto de 2018. Em junho de 2019, ficou entre os três finalistas ao “One World Media Awards” britânico, prêmio jornalístico que distingue documentários sobre questões ambientais.

Quando a Terra Treme
Brasil, 26 minutos, 2018
Epispódio do longa-metragem “Em que Tempos Vivemos?”
Direção: Walter Salles
Produção: BRICS
Elenco: Maeve Jinkings, Rômulo Braga, Rodrigo Bolzan, Sandra Corveloni, André Novais Oliveira, Richard Santiago e Júnior Fernandes Ventura
Exibição: Canal Brasil, 5 de novembro, às 21h50

FILMOGRAFIA
Walter Salles (Rio de Janeiro, 1956)

1991 – “A Grande Arte”
1996 – “Terra Estrangeira”(codireção Daniela Thomas)
1998 – O Primeiro Dia (codireção Daniela Thomas)
1998 – “Central do Brasil”
2001 – “Abril Despedaçado”
2004 – “Diários de Motocicleta”
2005 – “Água Negra”
2006 – “Paris, Je t’Aime” (um episódio)
2008 – “Linha de Passe” (codireção Daniela Thomas)
2012 – “On the Road”
2014 – “Jia Zhangke, um Homem de Fenyang”
2017 – “Em que Tempo Vivemos?” (episódio “Quando a Terra Treme”)

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