Fotografação
Por Maria do Rosário Caetano
O cineasta e diretor de fotografia Lauro Escorel não é o criador do neologismo “Fotografação”, nome e tema de seu terceiro longa-metragem, estreia desta quinta-feira, 5 de março, em São Paulo e Rio, e semana que vem em Porto Alegre. O termo foi criado por Mário de Andrade (1893-1945), que, além de escritor e gestor cultural, revelou-se excelente fotógrafo.
O documentário de Escorel, still de “Terra em Transe”, autor das imagens de “São Bernardo” e diretor de “Sonho sem Fim”, nos revelará, com acuidade e paixão, a importância do poeta e fotógrafo modernista, já que, além de registros das gentes do Brasil profundo, ele exercitou-se em retratos de sofisticada composição plástica (destaque para seus próprios perfis feitos de sombra).
“Fotografação”, o filme, é uma viagem pela memória da fotografia brasileira, narrada em primeira pessoa por seu diretor, Lauro Escorel Filho, um carioca, filho de diplomata, nascido em Washington, em 1950. No centro da sintética narrativa, está a foto fixa, desde que um padre francês desembarcou, em 1840, no Rio de Janeiro, com uma câmera e suas chapas de vidro. A novidade tecnológica viria a exercer imenso fascínio em Dom Pedro II, a ponto de transformá-lo em um de seus mais destacados cultores. Junto com a família imperial, o monarca tornou-se, além de foco privilegiado dos fotógrafos, um assíduo praticante da fotografia.
O filme contará, ainda, um pouco da relação do próprio Lauro Escorel com as imagens fixas (e em movimento). Para que ele assumisse a narrativa em primeira pessoa, seu corroteirista, o também cineasta Evaldo Mocarzel, teve que gastar muita saliva e sólidos argumentos. Conseguiu, com muita insistência, dobrar o recatado fotógrafo-cineasta, tímido cultor da voz baixa e educada, mais interessado em ouvir que falar.
O resultado é dos mais instigantes. Lauro aparece em cena conversando com Maureen Bisilliat, renomada fotógrafa e cineasta anglo-brasileira. O papo flui em cores fortes (como as das fotografias e filmes dela). A soma de depoimentos – essenciais aos sintéticos 76 minutos de “Fotografação” – resulta notável. Milton Guran, antropólogo, fotógrafo e pesquisador, dá um show com suas ousadas análises do olhar, muitas das vezes banhado em “exotismo”, que os pioneiros da imagem, maioria de origem europeia, imprimiam de nossos indígenas, afro-brasileiros e paisagens.
Todos os entrevistados têm muito o que dizer. Da soma dos olhares (de Boris Kossoy, Inez Turazzi, Joaquim Marçal, Rubens Fernandes, Luiz Carlos Barreto, Jérome Souty, Alex Baradel e Fábio Dann) resultará apaixonante aula cinematográfica. Uma masterclass ilustrada com inteligência, sensibilidade e imenso amor pelo Brasil e por alguns de seus artífices. Destaque sublime para os profetas do Aleijadinho, postados no Santuário do Bom Jesus de Matozinhos-Minas Gerais, para as formas niemáricas de Brasília, os festejos populares e as apavorantes carrancas do Rio São Francisco.
O filme não se enquadra no desgastado formato das “cabeças falantes” (ou declaratórias), porque as conversas são substantivas, serenas e valorizam os silêncios. O espectador, além de ouvir apuradas análises, poderá fruir imagens de imensa beleza produzidas por craques como Augusto Stahl, Marc Ferrez, Marcel Gautherot, Hildegard Rosenthal (bendita fruta entre os homens), José Medeiros, Augusto Malta, o Major Thomaz Reis, Pierre Verger e, até, Jean Manzon, francês descolado e sempre a serviço dos poderosos.
Lauro Escorel revelará, com doce sinceridade, o diálogo que manteve com as fotos fixas (feitas por estes influenciadores) em muitos dos filmes que fotografou. Seja no “Xangô de Baker Street” (Miguel Farias), seja em “Quilombo” ou “Bye, Bye Brasil” (ambos de Carlos Diegues), ou “Brincando nos Campos do Senhor” (Babenco), “São Bernardo” ou “Eles Não Usam Black-Tie” (ambos de Hirszman), ou “Coronel Delmiro Gouveia” (Geraldo Sarno).
O documentário abrirá, ainda, espaço nobre para um filme – “Vidas Secas” (Nélson Pereira dos Santos, 1963) – que, como raros outros, estabeleceu o mais fértil dos diálogos entre a fotografia (fixa) brasileira e as imagens em movimento. A motivação de tal destaque é estética e afetiva. O diretor de fotografia deste filme seminal era o fotojornalista Luiz Carlos Barreto, da badalada revista O Cruzeiro. Três ou quatro anos depois de filmar o livro de Graciliano no Nordeste, Barretão assinaria, no Rio, sua segunda (derradeira e revolucionária) direção de fotografia, a de “Terra em Transe” (Glauber Rocha, 1967). E quem era o still do inventivo filme glauberiano? O jovem Laurinho Escorel, aos 16 anos, em estreia precoce que o marcaria pela vida inteira.
Há que se registrar a qualidade dos profissionais mobilizados por Escorel para esta “Fotografação”. A começar pelo “caçador de imagens” Antonio Venancio (ele vasculhou infinitos arquivos), seguindo com a montadora Idê Lacreta, brilhante em sua sedutora síntese, e a trilha sonora, discreta e saborosa, de Zé Nogueira. Os quatro diretores de fotografia conseguiram somar esforços e não falharam na captação de imagens de um documentário que tem, afinal, a própria imagem como sua razão de ser. Vale registrar, também, o apoio que a produtora Zita Carvalhosa conseguiu de três instituições de imensa importância na preservação de nossa memória fotográfica: o IEB (Instituto de Estudos Brasileiros) da USP, o IMS (Instituto Moreira Salles) e a Fundação Pierre Verger.
A preocupação de Lauro Escorel em realizar um filme sobre a potência da imagem, evitando a falação excessiva, faz-se evidente, também, no farto uso de trechos de curtas-metragens depositados em velhos arquivos fílmicos, somados ao essencial “Cinema Novo” (Joaquim Pedro de Andrade, 1967), “Chico Antônio, Herói com Caráter” (Eduardo Escorel, 1983) e “Festas da Bahia de Oxalá” (Ronaldo Duque).
Ninguém pense que “Fotografação” é um filme banhado em saudades. Ou seja, passadista. Escorel soma o passado ao presente já na abertura de seu primeiro longa documental. Um grupo de skatistas registra, via celular, suas manobras na Praça XV, um dos berços da fotografia brasileira. Em suas imagens finais, vemos milhares de selfies impondo-se na paisagem física e digital dos muitos Brasis.
A voz, suave, nunca impositiva, do diretor concluirá: “Por mais apressadas (até descuidadas de valores de composição plástica), que sejam essas selfies, elas estão registrando a imensa variedade de rostos que compõem a nação brasileira”. Calcula-se, informa o filme, que 93 milhões de imagens dessa natureza baixem nas redes a cada novo dia.
Por fim, vale registrar as questões que motivaram Escorel nesta que é sua terceira incursão na memória da fotografia brasileira (primeiro com o curta ““Improvável Encontro”, depois com a série “Itinerários do Olhar”, apresentada no Canal Brasil): “Fotografar, hoje, é mostrar-se, postar na rede e talvez lembrar, e não centrar-se na imagem, na ideia de captar um momento único, um quadro, uma composição”. Para, então, indagar: “Como seremos lembrados, no futuro, a partir destas fotografias?”. A questão fica em aberto.
Fotografação
Brasil, 76 minutos, 2019
Direção: Lauro Escorel
Roteiro: Evaldo Mocarzel e Lauro Escorel, com pesquisa de imagens de Antonio Venancio
Direção de fotografia: Carlos Ebert, Guy Gonçalves, Jacques Cheuiche e Lúcio Kodato
Montagem: Idê Lacreta
Música original: Zé Nogueira
Produção: Zita Carvalhosa (Superfilmes)
Censura livre
FILMOGRAFIA
Lauro Escorel (Washington-EUA, 05/01/1950)
Como diretor (longa-metragem)
1985 – “Sonho sem Fim” (ficção)
2019 – “A Fera na Selva” (ficção, codireção)
2020 – “Fotografação” (doc)
Como diretor (curta-metragem)
1972 – “Primeiro de Maio” (doc)
1974 – “Teatro de la Calle” (doc, Peru)
1976 – “Libertários” (doc)
1979 – “Arraes de Volta” (doc)
2015 – “Improvável Encontro – Medeiros e Farkas” (doc)
2019 – “Itinerários do Olhar” (série doc em cinco episódios)
Como diretor de fotografia (53 créditos) – Destaques:
1972 – São Bernardo (Leon Hirszman)
1973 – “Toda Nudez Será Castigada” (Arnaldo Jabor)
1978 – “Mar de Rosas” (Ana Carolina)
1978 – “Coronel Delmiro Gouveia” (Geraldo Sarno)
1980 – “Bye, Bye Brasil” (Carlos Diegues)
1981 – “Ato de Violência” (Eduardo Escorel)
1981 – “Eles Não Usam Black-Tie” (Leon Hirszman)
1986 – “Eu Sei que Vou te Amar” (Arnaldo Jabor)
1987 – “Ironweed” (Hector Babenco)
1991 – “Brincando nos Campos do Senhor” (Babenco)
2005 – “Jogo Subterrâneo” (Roberto Gervitz)
2006 – “Batismo de Sangue” (Helvécio Ratton)
2009 – “O Contador de Histórias” (Luiz Villaça)
2011 – “Não se Preocupe, Nada Vai Dar Certo” (Hugo Carvana)
2020 – “O Pai da Rita”, de Joel Zito Araújo (em finalização)
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