Longa documental vai rever trajetória de Flávio Migliaccio

Por Maria do Rosário Caetano

Flávio Migliaccio, que deixou a vida para entrar na história do cinema, teatro e TV brasileiros, foi um homem de muitos ofícios. Até escolher a morte, por “desgosto com os rumos do mundo”, sozinho em seu sítio, o ator, diretor, roteirista e dramaturgo, nascido no Braz paulistano há 85 anos, somava currículo invejável. E não estava “encostado”. Atuava em telenovela (até setembro passado, em “Órfãos da Terra”), no teatro (“Confissões de um Senhor de Idade”) e no cinema (“Jovens Polacas”, lançado em fevereiro último).

Ator desde os tempos iniciais no Teatro de Arena, ele integrou elencos memoráveis ao lado de Gianfrancesco Guarnieri, Lima Duarte e outros parceiros. Escreveu textos dramáticos, alguns engendrados nos momentos de descanso em seu sítio em Rio Bonito. Participou de dezenas de telenovelas e séries, muitas montagens teatrais e mais de 50 filmes. Recebeu inúmeros prêmios, entre eles o festejado Troféu Oscarito, em Gramado/2014, por sua trajetória no audiovisual (foto).

Migliaccio dirigiu sete longas-metragens (a maioria destinada ao público infanto-juvenil). E atuou em filmes dos mais diversos gêneros. De “A Hora e Vez de Augusto Matraga” (Roberto Santos, 1965) e “Terra em Transe” (Glauber Rocha, 1967), passando por comédias eróticas (como “O Donzelo” e “Os Machões”), até filmes mais recentes, como “Os Porralokinhas”, de Lui Farias, “Verônica”, de Maurício Farias, e “Jovens Polacas”, de Alex Levy-Heller.

Agora, a trajetória do ator paulistano será lembrada no longa documental “Um Brasileiro em Cena”, produção da Afinal Filmes, em parceria com a GloboNews, Canal Brasil e Rede Globo, emissora que o abrigou desde 1972, quando estreou numa telenovela, a divertida e romântica “Meu Primeiro Amor”. O sucesso de seu personagem, o atrapalhado Xerife, foi tão grande que ele e seu parceiro, o mecânico Shazan (Paulo José), ganharam série semanal (“Shazan & Xerife”), que divertiu a garotada na década de 1970.

Ainda não se sabe quem vai dirigir “Um Brasileiro em Cena”. O cineasta José Joffily conta que foi convidado a dirigi-lo. “Ano passado” – contou à Revista de CINEMA –, “assisti à montagem da peça autobiográfica de Flávio Migliaccio, um lindo monólogo. Simples, singelo, confessional, com o jeitão despretensioso dele”. Diretor de doze filmes ficcionais e documentais (entre eles, “A Maldição de Sanpaku” e “Soldado Estrangeiro”), Joffily até pensou o filme como “uma homenagem ao ofício de representar”. Afinal, “ninguém como o Flávio, com tantos anos de estrada para falar sobre isso”. Porém, “como eu estava com outro projeto em curso e o prazo para entregar o longa documental era novembro do ano passado, vi que não poderia cumpri-lo”. Em resumo, “não fiz esse filme, perdi o contato com os produtores, mas espero que esta homenagem ao grande artista tenha sido realizada”.

Não foi, ainda. Quem, também, trabalha num longa-metragem sobre Flávio Migliaccio é seu filho, o jornalista e produtor Marcelo Migliaccio, que já soma muitas horas de material filmado.

O Canal Brasil já contou um pouco da vida artística de Flávio Migliaccio, em episódio da série “Retratos Brasileiros”, dirigido pela documentarista e produtora Marise Farias. Filha de Roberto Farias (1932-2018), cineasta e ex-presidente da Embrafilme, sobrinha de Reginaldo Faria e irmã de Mauro, Lui e Maurício Farias, ela conheceu Flávio na infância. Afinal, ele foi participante ativo das realizações das Produções Cinematográficas R.F.Farias, a poderosa empresa dos irmãos Roberto, Reginaldo e Riva Faria(s). Guardou do ator (e diretor) a imagem de um artista muito brincalhão e bem-humorado. Por isto, seu “Retrato Brasileiro” recebeu o título de “Flávio Migliaccio –Uma Vida, uma Comédia”.

Marisa lembra que “Flávio era um artista completo, além de ator, era também diretor, roteirista e dramaturgo”. Um artista que “mantinha uma ligação muito forte com o universo infanto-juvenil e adorava fazer filmes pra criança”.

E quem foram os sobrinhos de Tio Maneco no primeiro filme infanto-juvenil que o ator-cineasta dirigiu? Os irmãos de Marise – Mauro, Luís Mário, o Lui, e Maurício. Eles se divertiram muito nas filmagens de “Aventuras de Tio Maneco” (1971). Já nos dois filmes seguintes, realizados em 1975 (“Caçador de Fantasmas”) e 1978 (“Maneco, o Super Tio”), outras crianças foram convocadas, pois Mauro, Lui e Maurício (hoje experientes e diretores de cinema e TV) já haviam crescido.

“Meus irmãos” – conta Marise – “participaram da gênese do personagem Tio Maneco” e eram os maiores entusiastas do projeto. “O primeiro filme da trilogia” – “Aventuras com Tio Maneco” – “foi produzido por meu pai, em 1971, a partir de sugestão do Lui, que queria fazer um filme de aventuras para crianças. Como eu tinha apenas três anos na época do projeto original, não me envolvi. Nem com ele, nem com os outros que vieram para complementar a trilogia”.

A documentarista vê em “Os Porralokinhas”, de seu irmão Lui Farias , “um tributo, uma sincera homenagem ao Tio Maneco”. Afinal, pondera, “Os Porralokinhas, que contou com Flávio Migliaccio no elenco, mais uma vez na pele do atrapalhado Tio Maneco, funcionou como uma continuação do primeiro filme da trilogia (“Aventuras com Tio Maneco”, sequenciado com “Caçadores de Fantasmas” e “Maneco, o Super Tio”).

A diretora de “Flávio Migliaccio – Uma Vida, uma Comédia” sente a morte do ator-diretor como “uma perda enorme para a cultura brasileira e para minha família, especialmente, porque além de muito carinho e da admiração que tínhamos por ele, temos um histórico de trabalhos e parcerias que começou na Refefê (R.F.F Farias – os irmãos, todos com nomes iniciados com R e as assinaturas Figueira Farias), produtora do meu pai e tios. Ele participou, como ator ou diretor, de oito dos muitos filmes de nosso acervo. Dez, se contarmos “Os Porralokinhas” e “Verônica”.

Estes dois filmes tiveram Migliaccio em seus elencos. O primeiro foi produzido e dirigido por Lui Farias e é “uma espécie de continuação de ‘Aventuras com Tio Maneco’”. Já “Verônica”, drama social protagonizado por Andrea Beltrão, intérprete de professora que resolve proteger e fugir com uma criança , foi produzido e dirigido por Maurício Farias.

“Com a morte de Flávio Migliaccio”, lamenta Marise, “vai embora um pouco da nossa infância e da nossa alegria. Ele era muito querido e uma pessoa muito humana. É triste ver alguém que nos fez sorrir ir embora por tristeza”.

Como a produtora dos irmãos Farias sempre foi muito bem organizada, Marise forneceu à Revista de CINEMA o desempenho comercial dos oito filmes da empresa que tiveram Migliaccio, na função de ator ou diretor (ver tabela). Três deles venderam mais de um milhão de ingressos. Um, parte da Trilogia Roberto Carlos, chegou perto dos três milhões de tíquetes. “Prá Frente, Brasil” e “Os Machões” fizeram 1,2 milhão de ingressos cada um.

Marise garante que a produtora da família dispõe de negativos e cópias de alguns dos filmes de Migliaccio. Mas não de todos. “De alguns deles” – alerta – “temos que procurar as matrizes e ver em que estado de preservação se encontram”.

Cenas de Flávio Migliaccio no filme "O Homem que Comprou o Mundo", de Eduardo Coutinho

A estreia de Flávio Migliaccio na direção cinematográfica se deu com longa-metragem que se propunha a ser a “primeira comédia do Cinema Novo”: “Os Mendigos” (1962). Entusiasmado com dois projetos dos quais participou – “Cinco Vezes Favela”, produção do CPC-UNE (União Nacional de Estudantes), e “Meu Lar É Copacabana” (Fábula), do sueco Arns Sucksdorff, o ator resolveu dirigir um filme protagonizado por Ruy Guerra e Vanja Orico. Ruy, além de ator, assinou a montagem. No elenco, nomes promissores da esquerda ligada ao Teatro de Arena, ao CPC-UNE e ao Cinema Novo: o jovem cineasta Leon Hirszman, o roteirista Eduardo Coutinho (e Ruy Guerra, claro), o artista gráfico Ziraldo (autor de muitos cartazes de produções cinemanovistas), os atores Oduvaldo Viana Filho, o Vianinha, Cecil Thiré. E, para completar, um dos principais teóricos dos Centro Populares de Cultura, Carlos Estevão. “Os Mendigos” resultou em fracasso comercial. Mas os seis filmes seguintes do realizador, todos com ingredientes de comédia ou infantis, tiveram melhor sorte ao dialogar com o público.

De origem italiana (daí o “miliatio”), Flávio acabou consagrado na TV em papeis étnicos. Em “Caminho das Índias”, interpretou o indiano Karan. Depois, matou o público de rir com o Sr. Chalita, um árabe da série “Tapas & Beijos”. Transformou-se no palestino Mamede em “Órfãos da Terra”. Para Ugo Giorgetti, um oriundi como Migliaccio, o ator era assemelhava-se aos tipos consagrados pelo Neo-Realismo italiano. Por isso, fez questão de tê-lo no elenco dos dois “Boleiros”: o de 1998 , “Era uma Vez no Futebol” e “Vencedores e Vencidos”, realizado oito anos depois. Como diz o título do documentário da Afinal Filmes, Flávio Migliaccio era, realmente, “Um Brasileiro em Cena”.

 

FLAVIO MIGLIACCIO E AS BILHETERIAS

. “Roberto Carlos a 300 Km por Hora”…….2.785.232
. “Pra Frente Brasil”………………………………..1.292.431
. Os Machões………………………………………….1.284.633
. “Aventuras Com Tio Maneco”…………………..825.810
. “A Penúltima Donzela”……………………………580.000
. “Pra Quem Fica, Tchau…………………………….674.700
. “O Caçador de Fantasmas……………………….. 449.300
. “Maneco o Super Tio”……………………………….363.354

FLAVIO MIGLIACCIO DIRETOR

. 1962 – “Os Mendigos”
. 1970 – “Os Caras-de-Pau”
. 1971 – “Aventuras com Tio Maneco”
. 1971 – “Assalto à Brasileira”
. 1975 – “O Caçador de Fantasmas
. 1979 – “Maneco o Super Tio”
. 1989 – “Os Trapalhões na Terra dos Monstros”

FLAVIO MIGLIACCIO ATOR (destaques)

.1958 – “O Grande Momento”
. 1962 – “Cinco Vezes Favela”
. 1962 – “Meu Lar É Copacabana” (Fábula)
. 1965 – “A Hora e Vez de Augusto Matraga”
. 1967 – “Terra em Transe”
. 1968 – “O Homem que Comprou o Mundo”
. 1969 – “A Penúltima Donzela”
. 1970 – “Em Busca do Su$exo”
. 1970 – “O Donzelo”
. 1970 – “Vida e Glória de um Canalha”
. 1970 – “Quatro Contra o Mundo”
. 1971 – “Prá Quem Fica, Tchau”
. 1973 – “Os Machões”
. 1973 – “Um Virgem na Praça”
. 1974 – “O Filho do Chefão”
. 1979 – “Parceiros da Aventura”
. 1998 – “Boleiros – Era Uma Vez no Futebol”
. 2006 – “Boleiros 2 – Vencedores e Vencidos”
. 2007 – “Os Porralokinhas”
. 2009 – “Verônica”
. 2020 – “Jovens Polacas”

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