Belas Artes lança “Terra de Espanha”

Por Maria do Rosário Caetano

Até Ken Loach mostrar “Terra e Liberdade”, obra ficcional que o projetou mundialmente (no Festival de Cannes de 1995), o mais famoso dos filmes sobre a Guerra Civil Espanhola era “Terra de Espanha”, dirigido por Joris Ivens, coescrito e narrado por Ernest Hemingway. Este documentário chega, passados 83 anos, ao público brasileiro, com lançamento digital do Petra Belas Artes à la Carte, em cópia restaurada e com legendas em português.

Dezenas de filmes e cinejornais foram feitos sobre a guerra civil que antagonizou Republicanos e Falangistas, entre 1936 e 1939. O primeiro a se destacar trazia a assinatura de Luiz Buñuel e chamava-se “Espanha Leal em Armas” (1936). Não confundir com “Las Hurdes – Terra sem Pão” (1932), o mais famoso dos documentários do bruxo andaluz. Outro que documentou a guerra fratricida na Península Ibérica foi André Malraux, futuro ministro da Cultura da França. Seu filme chamou-se “Sierra de Truel” (1939).

“Terra de Espanha” (o Belas Artes preferiu o título “Terra Espanhola”) nasceu de um verdadeiro mutirão de forças. Joris Ivens (1898-1989), que se tornaria um dos maiores documentaristas do mundo (e, por filmar em todos os continentes, seria conhecido como o “holandês voador”), reuniu, entre seus colaboradores, os escritores John dos Passos (1896-1970), Ernest Hemingway (1899-1961) – estes na feitura do filme – e nomes da esquerda norte-americana, como Lilian Hellman, Fredric March e Louise Rainer em sua difusão e campanha de coleta de fundos em prol dos Republicanos. O primeiro espectador do filme nos EUA foi o presidente Franklin Delano Roosevelt. Estava dada a senha para que a Hollywood progressista ajudasse com suas doações.

“Terra de Espanha” tornou-se um filme de agitprop como nunca se vira. Houve cópias com a voz de Orson Welles, que lia o texto de Hemingway. Este, também ilustre por seus escritos e ímpeto em lutar do lado que considerava justo, colaborou com sua voz potente. A cópia francesa teve locução de Jean Renoir. Como a Guerra Civil foi – e é – considerada “a última grande causa mobilizadora do mundo” (vide o apoio recebido das Brigadas Internacionais), a cada país que “Terra de Espanha” chegava, um grande artista lhe emprestava voz.

Até engajar-se na Guerra Civil Espanhola, Joris Ivens era o filho de um rico industrial holandês, que se iniciara no cinema com experimentos de vanguarda, como os curtas “A Ponte” (1928) e “A Chuva” (29). No início da década de 1930, ele encantou-se com a causa socialista. Visitou a União Soviética a convite de Vsevolod Pudovkin (1893-1953) e entregou-se ao documentário social e político. Em 1932, assinou “Konsomol” e, no ano seguinte, “Borinage” (Miséria em Borinage), sobre trabalhadores nas minas de carvão da Bélgica (parceria com Henri Storck). Faria, ainda, “Terra Nova” (1934), antes de seu projeto espanhol.

No momento em que as falanges de Francisco Franco insurgiram-se contra a jovem República espanhola (uma frente que unia socialistas, comunistas, anarquistas e moderados), Joris Ivens partiu para o palco da guerra. Com o fotógrafo John Ferno e o escritor John dos Passos, o holandês começou a conceber “Terra de Espanha”. Dos Passos deixou o projeto e Hemingway assumiu seu lugar. Uma produtora, Contemporary Historians Inc, foi estabelecida para realizar o documentário que registraria não só o conflito bélico, mas também a vida cotidiana de lavradores e de transportadores de mercadorias, em lombos de burro.

A equipe escolheu o povoado de Fuentidueña, de apenas 1.500 habitantes, situado entre Valência e Madri, capital republicana, como seu principal cenário. E, claro, registrou os combates na “tumba do fascismo” (assim era conhecida Madri). Quando a força aérea da Alemanha de Hitler começou a apoiar as forças de Franco, a situação se agravou. Mesmo assim, os Republicanos não perdiam as esperanças. O filme garante que estes “venceriam a Guerra em seis semanas, não fosse o dedo de Hitler”. Dedo que seria acionado no massacre de Guernica (ocorrido em março de 1937) e daria origem à mais famosa das criações de Pablo Picasso.

A derrota da República viria em 1939 e o generalíssimo Francisco Franco governaria a Espanha até sua morte, em 1975. Mas – voltemos ao documentário –, quando Joris Ivens o realizou, a esperança estava no ar. E a equipe mirava o povo espanhol, não comandantes de pelotões, tanques ou aeronaves.

Quem continuava alimentando as tropas que defendiam Madri? Quem vestia as tropas civis? Gráficos e mapas mostram os combates, mas Ivens e seu câmera estão preocupados em registrar, com tocantes imagens, a construção de um canal que levará água até os campos de Fuentidueña, com a missão de irrigar as plantações. Apaixonado por ventos e chuvas, o “holandês voador” irá esperar a hora de ver a nova fonte jorrar. Com a guerra, fazia-se, mais que necessário, urgente multiplicar por dez a produção de grãos (trigo, em especial).

Na maior parte do tempo (o filme dura 52 minutos), veremos camponeses arando ou semeando a terra, mulheres lavando roupa, tropeiros percorrendo caminhos. E, claro, voluntários cavando o canal que levará água até os campos semeados. Veremos, claro, Madri sendo defendida palmo a palmo, mas sofrendo baixas. Bombardeios, prédios destruídos, cadáveres, desespero. Mas a esperança, simbolizada na conquista do objetivo traçado para o povoado – levar água aos campos de Fuentidueña – inseminará o olhar do espectador. Pelos menos dos solidários com a Frente Popular Republicana.

Ao longo de toda sua vida, que durou 90 anos, o “holandês voador” tornar-se-ia um cidadão dos mundos. Faria filmes na União Soviética, na Bélgica, na França, na Alemanha Oriental, em Cuba, na China, no Vietnã, no Chile.

Joris Ivens nunca filmou no Brasil. Mas coproduziu projeto internacional (“Rosa dos Ventos”, 1957), concebido na Alemanha Oriental, onde ele viveu por alguns anos. Um dos episódios foi realizado aqui, por Alex Viany, com argumento de Jorge Amado, fotografia de Chick Foyle e elenco liderado por Vanja Orico, Aurélio Teixeira, Miguel Torres e a jovem estreante Marlene França. Os outros episódios foram realizados na França, Itália, China e União Soviética. A atriz Helene Weigel, companheira de Bertolt Brecht, fez a narração que amarrava as cinco histórias. O filme, com seus cinco episódios, não foi lançado comercialmente no Brasil. Ivens participria, desta vez como realizador, de outro filme em episódios: “Loin du Viet-Nam” (1967), com Jean-Luc Godard, Agnès Varda, Chris Marker, Alain Resnais, Claude Lelouch e William Klein.

Em 1967, o “holandês voador” visitou o Brasil, vindo do Festival de Viña del Mar, no Chile. Seu anfitrião foi o cineasta Sérgio Muniz, que conseguiu hospedagem para o ilustre convidado em hotel paulistano da família de Rubens Paiva, que seria assassinado pela ditadura militar brasileira, no início da década de 1970. No Rio, o cineasta foi hóspede do produtor Luiz Carlos Barreto. Nas duas cidades, assistiu a muitos documentários brasileiros, incluindo os produzidos pela Caravana Farkas. Viu “Opinião Pública”, de Arnaldo Jabor, e – testemunha Muniz – “ficou encantado com a câmera de Dib Lutfi”.

Anos depois, em 1976, o documentarista e professor universitário Sílvio Tendler realizaria sua dissertação de mestrado na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris, tendo a obra de Joris Ivens e sua relação com a História como tema. O diretor de “Jango” e “Utopia e Barbárie” faria de Ivens e mais dois cineastas europeus (os franceses Chris Marker e Jean Rouch), suas permanentes fontes de diálogo criativo. Como Marker e Ivens, Sílvio Tendler pratica, ainda hoje, um “cinema de base política, militante e humanista, mas nunca partidário”.

Os 80 filmes realizados pelo “holandês voador” estão reunidos na Fundação Europeia Joris Ivens, em sua cidade natal, Njimegen, na Holanda. Ele deixou substantiva autobiografia de nome instigante: “La Caméra et Moi”. Seu derradeiro filme, o longa-metragem “Uma História do Vento” (1988), retomou tema de seu média-metragem “Vento, Filmar o Impossível”, realizado em 1965. Ivens era louco por gente, por água e pelo (quase) invisível vento.

Terra de Espanha (Spanish Earth)
Produção internacional realizada em 1937. Documentário filmado em Vila de Fuentidueña de Tajo e Madri.
Direção: Joris Ivens
Texto e narração em inglês: Ernest Hemingway
Fotografia: John Ferno
Música: Marc Blitztein
Montagem: Helen van Dongen
Duração: 52 minutos
Disponível em streaming, no Petra Belas Artes à la Carte

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