Cinema brasileiro no streaming

Por Maria do Rosário Caetano

Já é possível encontrar em plataforma de streaming o raríssimo (e quase septuagenário) “Rio 40 Graus”, de Nelson Pereira dos Santos. E o que é melhor, em versão restaurada. Basta acessar a Globoplay.

Alguns dos filmes de Glauber Rocha (“Deus e o Diabo na Terra do Sol”) e Ruy Guerra (“Os Fuzis”) podem ser vistos no Canal Brasil Play. Quem quiser reencontrar imagens exuberantes da cantora Carmen Miranda poderá acessar, no Now, o documentário “Bananas is my Business”, de Helena Solberg.

Os que se interessam pelo cinema brasileiro do passado e do presente não devem, porém, ser tomados pelo entusiasmo. Como acontece no circuito de salas exibidoras, a produção nacional segue como uma “estranha no ninho” também no streaming. Principalmente, no cardápio das grandes plataformas. Caso da Netflix, Amazon e Apple.

Com os transtornos causados pela pandemia ao circuito de salas presenciais, o cineastas brasileiros viveram um impasse: tinham a obrigação contratual de, primeiro, lançar seus filmes nos cinemas. Só depois, poderiam chegar ao streaming. Por isso, dezenas de filmes foram arremessados em raros horários e espaços (bem mais raros e clandestinos que os costumeiros) para obedecer à cláusula contratual estabelecida pela Ancine (Agência Nacional de Cinema). E, depois, também de forma quase clandestina, chegaram à oceânica (e planetária) lista de ofertas de algumas plataformas.

Na poderosa Netflix, além de sucessos como “Tropa de Elite”, o espectador encontrará filmes como “Cidade de Deus – 10 Anos Depois”, documentário de Cavi Borges e Luciano Vidigal, sobre o destino do elenco mirim e juvenil de “Cidade de Deus”, sucesso de Fernando Meirelles. Encontrará também, “Temporada”, de André Novais Oliveira, “Aquarius”, de Kleber Mendonça Filho, “Paraíso Perdido”, de Monique Gardenberg, “Mãe Só Há Uma”, de Anna Muylaert, “Jonas”, de Lô Politi, e “Democracia em Vertigem”, documentário de Petra Costa, finalista ao Oscar 2020.

O cinema brasileiro, porém, e em maioria, só consegue acesso a plataformas de menor alcance, embora mais qualificadas. Afinal, dedicam-se à difusão de filmes mais arriscados e vindos dos vários cantos do mundo.

Curta-metragem “A Tradicional Família Brasileira Katu”, de Rodrigo Sena

Antes de listar algumas das opções brasileiras no streaming, vale destacar a vigorosa defesa do insuspeito Martin Scorsese, realizador que mantém excelente relação com a Netflix (vide a origem do formidável “O Irlandês”). Em ensaio encomendado pela Harpers Magazine, traduzido e multiplicado nas redes sociais, o diretor de “Taxi Driver” e presidente da The Film Foundation, defendeu a pluralidade de linguagens e procedências dos “conteúdos” programados pelas plataformas.

Em seu substantivo ensaio jornalístico, o novaiorquino lamenta o uso dado, hoje, à palavra “conteúdo”, tomada como sinônimo de qualquer coisa, seja “um filme de David Lean, um vídeo de gatos, um anúncio do Super Bowl ou uma sequela de um filme de super-heróis”.

“As quantidades infinitas” (de conteúdos), na compreensão de Scorsese, acabam escondendo filmes de grandes mestres do cinema, ao invés de revelá-los. Como vivemos sob as ordens do “negócio” e sob o domínio genérico do “conteúdo”, Scorsese constata que “tudo” está “praticamente seco e pronto” para, sob o rótulo de filme de arte, ser jogado numa plataforma. Enumera, sinteticamente, exemplos de momentos luminosos da história do cinema diluídos no mar infinito-azul-doméstico: “Aurora” (Murnau, 1927), “A Estrada da Vida” (Fellini, 1954) e “2001” (Kubrick, 1968).

Com a esperança que lhe é característica (se não fosse assim ele não presidiria uma fundação destinada ao resgate de clássicos do mundo inteiro), Scorsese faz questão de lembrar “aos proprietários legais desses filmes”, que “eles representam muito, muito mais do que meras propriedades a serem exploradas e, em seguida, trancadas”. Afinal, constituem “os maiores tesouros de nossa cultura e devem ser tratados como tal”.

Como o nome de Martin Scorsese aparece em frequentes parcerias com a Cineteca di Bologna, outro foco de resgate do grande cinema mundial, fica claro que ele sonha em ver filmes que ajudou a restaurar – caso do africano “Garota Negra”, de Ousmane Sembene, dos brasileiros “Limite” e “Terra em Transe”, dos italianos “Viagem à Itália” e “Bandido Giuliano”, e asiáticos, como o taiwanês “Um Dia Quente de Verão”, de Edward Yang – nas telinhas alimentadas pelo streaming. Por isso, ele coloca em relevo “serviços como o MUBI e o Criterion Channel”, que trabalham sob respeitáveis curadorias. Ou seja, “apresentam sugestões de filmes ao seus utilizadores, a partir de uma seleção prévia”, de um trabalho de curadores que amam o cinema.

O distribuidor Bruno Wainer, da Downtown, que divide sua cartela entre filmes mais comerciais e obras de empenho cultural, enfrentou esses difíceis tempos de pandemia, colocando 30 de seus filmes em serviços de streaming. “A Netflix”, detalha, “adquiriu quase três dezenas de títulos de nosso acervo e os vem programando aos poucos”. Não houve exclusividade, lembra o distribuidor. “Por isso, alguns desses mesmos 30 filmes estão disponibilizados na Globoplay e Telecine Play”.

“Sambalanço, a Bossa que Dança”, de Fabiano Maciel

No final do ano passado, para que a Downtown não se inviabilizasse financeiramente, Wainer vendeu – com exclusividade para a Amazon Prime Video – três filmes 100% inéditos, sem que passassem, antes, pelos cinemas – as comédias “No Gogó do Paulinho” e “Carlinhos e Carlão” e o terror “A Gruta”.

Abaixo, a Revista de CINEMA lista alguns filmes brasileiros que, nos últimos anos, encontraram espaço, mesmo que reduzido, no streaming. Produções que tentam destacar-se em meio à quantidade infinita e doméstica de “conteúdos” vindos dos EUA, Europa, Ásia (e, modestamente, da América Hispânica e África).

Vale recomendar aos leitores que acessem o serviço de streaming do Sesc São Paulo (Serviço Social do Comércio), vitrine privilegiada da produção brasileira (nesses meses de fevereiro/março, o Projeto Sesc Cinema em Casa apresenta muitos dos filmes de Ugo Giorgetti, o “Adoniran Barbosa de nosso audiovisual”).

 

. “Sambalanço, a Bossa que Dança”, de Fabiano Maciel, com roteiro de Tarik de Souza. Um delicioso mergulho na geração que colocou a Bossa para dançar, ‘sambalançar’, liderada por Orlandivo e Durval Ferreira (Now, Vivo Play).

. “A Ponte de Bambu”, documentário de Marcelo Machado. O filme, que participou da seleção oficial do Festival É Tudo Verdade, mostra o jornalista brasileiro Jayme Martins e sua família (esposa e duas filhas) vivendo, por décadas, na China de Mao Tse-Tung (Vivo Play, Now, Oi Play)

. “Partida”, de Caco Ciocler, documentário de formato híbrido, que surpreendeu em seu diálogo com público e critica. E que ganhou até prêmios internacionais. Com Caco Ciocler, Georgette Fadel e Vasco Pimentel integrando trupe que põe o pé na estrada, rumo ao Uruguai, onde espera encontrar o ex-presidente José Mujica (Belas Artes à la Carte, Now, Vivo Play, Sky Play)

. “Fotografação”, documentário de Lauro Escorel, que revê com sólidos depoimentos (mas longe dos ‘cabeças-falantes’) e muitas fotografias do século XIX aos nossos dias, a história dos mais seminais fotógrafos brasileiros (Tamandua.tv, Curta! Play, Now, Vivo Play, Sky Play)

. “Pacarrete”, longa de estreia do cearense Allan Deberton, que acumulou quase 40 prêmios em festivais brasileiros (oito em Gramado) e internacionais. Com Marcélia Cartaxo em estado de graça. Uma narrativa popular e embalada por instigante trilha sonora (Looke, Apple TV, Google Play)

. “A Febre”, de Maya Darin, um dos filmes brasileiros que melhor recepção alcançou em festivais internacionais, nos últimos dois anos. Em orgânico diálogo com o cinema documental, essa ficção da jovem diretora carioca mostra a relação de pai e filha indígenas, ele, trabalhador no porto de Manaus, ela, aprovada para estudar Medicina na UnB – Universidade de Brasília (Netflix, Google Play)

. “Aos Olhos de Ernesto”, de Ana Luiza Azevedo, ficção brasileira vinda da Casa de Cinema de Porto Alegre, com show de interpretação de dois atores latino-americanos (o uruguaio Jorge Bolani, de “Whisky”, e o argentino Jorge D’Elia), que se somam aos brasileiros Júlio Andrade e Gabriela Poester. O filme, aliás, tem algo do minimalismo melancólico do cinema do país platino (Vivo Play, Now e Oi Play).

. “Arábia”, de Affonso Uchôa e João Dumans, filme vencedor do Festival de Brasília de 2016, ambientado numa Ouro Preto distante dos cartões postais e em outros espaços paisagístico-laborais de Minas. Um trabalhador, Cristiano (Aristides Souza) sobrevive em empregos temporários seja em fábricas ou fazendas. Em diálogo com o cinema documental, a dupla mineira realiza um filme obrigatório (Now).

. “Sementes: Mulheres Pretas no Poder”, de Éthel Oliveira e Júlia Mariano. Documentário sobre a participação de mulheres afro-brasileiras, que, inspiradas em Marielle Franco, passaram a revindicar o direito de ocupar postos nos poderes Legislativo e Executivo (Now, Vivo Play, Oi)

. “Pastor Cláudio”, de Beth Formaggini. Um impressionante relato de ex-agente da repressão política em tempos ditatoriais, que revela locais onde eram incinerados corpos de presos políticos, inclusive fornos de canavial fluminense (Canal Brasil Play, Vivo Play, Now, Gplay, Itunes, Looke) Da mesma autora, “Xingu Cariri Caruaru” (nos mesmos serviços).

. “Dentro da minha Pele”, de Toni Venturi e Val Gomes. Um importante e bem-construído documentário sobre o racismo estrutural brasileiro, com depoimentos de grande relevância (Globo Play)

. “Callado”, de Emília Silveira. Sintética e bem-montada revisita à obra do jornalista e escritor Antônio Callado (1917-1997), aberta com imagens de “Masculino Feminino”, de Godard, e encerrada com trechos de “Funeral Bororo”, de Heinz Forthman e Darcy Ribeiro, embalados em trilha arrebatadora (Now, Looke, Vivo Play e Oi Play)

. “Todos os Mortos”, de Caetano Gotardo e Marco Dutra. Obra ficcional, de linguagem inventiva, que representou o Brasil no Festival de Berlim. A narrativa se desenvolve na passagem do século XIX para o século XX, ou seja, nos anos pós-Abolição, em que afro-brasileiros buscavam espaços de inserção no mercado de trabalho. No elenco, Mawusi Tulani, Clarissa Kiste, Thomas Aquino, Gilda Nomacce e a lusitana Leonor Silveira (Apple TV, Google Play, YouTube)

. “Adoniram, meu Nome é João Rubinato”, de Pedro Serrano. Divertida, como não poderia deixar de ser, cinebiografia documental do cantor, compositor e ator Adoniram Barbosa (Now, Vivo Play, Sky Play)

. “A Sombra do Pai”, obra ficcional da inventiva roteirista e cineasta Gabriela Amaral Almeida, que direcionou sua criação ao gênero do horror. Com Nina Medeiros, Júlio Machado e Luciana Paes (Amazon Prime)

. “Idade da Água”, longa-metragem documental de Orlando Senna (codiretor de “Iracema – Uma Transa Amazônica”), lançado em 2018, marca a volta do cineasta à direção de filmes. A obra, que já participou de mais de 10 festivais no Brasil e no exterior, aborda a crise hídrica na Amazônia, com a participação de Dira Paes, Gaby Amarantos, Jorge Bodanzky, entre outros (Amazon Prime)

. Curtas-metragens na Spcine Play – A empresa paulistana de cinema utiliza seu serviço de streaming para apresentar mostras do melhor do cinema internacional, sem esquecer-se da produção brasileira. Em especial a de curta-metragem. Alguns títulos disponibilizados pela SPCinePlay: “A Tradicional Família Brasileira Katu”, de Rodrigo Sena, uma joia potiguar, “Baile”, de Cíntia Domit Bittar, “Presente Enquanto”, de Ana Carolina Nunes, “Pelano!”, de Calebe Lopes & Chris Mariani, “As Aventuras de Pety”, de Anahi Borges, “Tabuh”, de Sofia Federico, “Pipoca Moderna”, de Helder Lopes, “República Madalena”, de Fernando Belo, “Aurora, a Rua Que Queria Ser Rio”, de Radhi Meron, “O Grande Cortejo da Memória Paulistana”, de Juan Quintas! , “ Copacabana Madureira”, de Leonardo Martinelli, “Quilimérios”, de Emerson Penha, “Vidas Entregues”, de Renata Prata Biar. Além da primeira temporada da série documental “História Secreta do Pop Brasileiro”, de André Barcinsky.

OUTROS TITULOS:

. “Casa”, de Letícia Simões, “Tarde para Morrer Jovem”, produção Chile-Brasil, de Domingas Sotomayor, “Macabro”, de Marcos Prado, “New Life S.A.”, de André Carvalheira (Now, Vivo Play, Sky Play)

. “Los Silencios”, de Beatriz Seigner (MUBI)

. “Blitz”, de Paulo Fontenelle, “Não se Esqueça que Eu Venho dos Trópicos”, de Francisco Martins (ou Kiko Martins, que formou memorável dupla com José Antônio Garcia), “Um Casamento”, de Mônica Simões, “Canção da Volta”, de Gustavo Rosa Moura (Amazon Prime) + o luso-brasileiro “Raiva”, de Sérgio Treffaut (Belas Artes à la Carte e Amazon Prime)

. “Carlinhos e Carlão”, de Pedro Amorim, “No Gogó do Paulinho”, de Roberto Santucci, e “A Gruta”, de Arthur Vinciprova (exclusivos da Amazon Prime)

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