“Golpe de Ouro” marca a volta de Chaim Litewski ao É Tudo Verdade

Por Maria do Rosário Caetano

Doze anos depois de vencer, com o poderoso “Cidadão Boilesen”, o É Tudo Verdade, Chaim Litewski volta à programação do festival paulistano com seu segundo longa documental, “Golpe de Ouro”.

Teria o novo filme litewskiano a mesma potência de “Cidadão Boilesen”, eleito um de nossos 100 melhores documentários pela Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema)?

O cineasta, funcionário da ONU, radicado nos EUA, dá sequência a seu mergulho no autoritarismo brasileiro? Afinal, com “Cidadão Boilesen”, ele conseguiu enfrentar um dos tabus do documentário brasileiro. Segundo Jean-Claude Bernardet, nossos documentaristas não costumam enfrentar três temas espinhosos: o poder econômico, a mídia e as Forças Armadas.

Ao mostrar o profundo envolvimento do empresariado brasileiro com a máquina repressiva montada pela ditadura militar, em especial a Operação Bandeirantes (OBAN), Litewiski construiu um documentário de rara potência e coragem. Focou em nome em especial, o executivo de origem dinamarquesa Henning Albert Boilesen (1916-1971), que, além de carrear recursos para a implantação e manutenção da máquina repressiva brasileira, gostava de assistir a sessões de tortura.

“Golpe de Ouro”, o novo Litewski, tem sua história situada nos primeiros meses do triunfo do golpe militar de 31 de março de 1964. Em maio, portanto algumas semanas depois do triunfo verde-oliva, Assis Chateaubriand, magnata da mídia brasileira, resolveu mobilizar sua poderosa cadeia de jornais, revistas, rádios e TV para coletar “Ouro pelo Bem do Brasil”. A população deveria doar anéis, pulseiras, brincos, o que tivesse, para que o Brasil pudesse pagar sua imensa Dívida Externa.

O movimento de doação cívica – mostra o filme, com farta documentação visual e trechos de noticiários impressos – foi um sucesso. Mulheres e crianças, em especial, faziam filas para depositar suas joias (de modestas alianças a chiques pulseiras) em urnas de juta ou cofres. Tudo sob o implacável registro das câmeras dos veículos dos Diários Associados e sob narrações eloquentes e mobilizadoras.

Como ocorrera com a Operação Bandeirantes, tema de “Cidadão Boilesen”, São Paulo foi o epicentro da campanha aurífero-arrecadadora. Capital e interior se entregaram ao dever cívico, reafirmando apoio total ao militares recém-chegados ao poder. Homens fardados – como o General Amaury Kruel – compareciam em pessoa para prestigiar as vistosas cerimônias de doação, que geravam filas gigantescas. Todo mundo (até inocentes crianças) queria ser um “Legionário da Democracia”. Para estes, foi criada uma “tábua da lei” com 15 itens, a ser seguida pelos cidadãos.

Como o golpe militar de 1964 foi apelidado, por seus artífices, de “Revolução”, o primeiro item do estatuto do doador destaca a “luta pela consolidação da Revolução Democrática”, vindo em sequência: “Combater intransigentemente o comunismo ou qualquer regime totalitário, Respeitar as leis e as autoridades constituídas, Pugnar pela democratização do capital e defesa da livre iniciativa, Preservar a moral e a honra da Família, da Pátria e as tradições religiosas do Brasil” etc., etc.

Entre os entrevistados por Litewski – a lista é imensa – estão doadores (em especial doadoras), jornalistas atuantes na cobertura da campanha de Chatô (e seu braço-direito Edmundo Monteiro), artistas (como Lima Duarte), historiadores, militares (o Almirante Alfredo Karam) e políticos (Delfim Netto).

O filme teria resultado em mero e tradicional “cabeças falantes”, se Litewsky e equipe não tivessem adotado o humor como régua. Ao buscar o destino final do tesouro aurífero recolhido junto aos “Legionários”, o documentarista deparou-se com situações hilárias.

Vale destacar as duas mais chamativas:

– Quem não quisesse fazer sua doação em ouro, poderia fazê-lo em dinheiro vivo ou cheque. Empresários, em especial, fizeram seus depósitos em papel-moeda. Na hora de abrir um dos cofres, a solda que deveria romper o lacre, acabou colocando fogo no conteúdo monetário que ele continha. Foi um frege.

– Um fazendeiro sulista resolveu custear a fabricação de uma enxada de ouro. Ela foi doada para a campanha. Seria, na hora certa, derretida e anexada às barras de ouro que ajudariam a pagar a Dívida Externa. Só que a peça sumiu. No filme, há quem assegure que foi guardada pela filha do Marechal Castelo Branco, primeiro presidente do ciclo militar. A herdeira do fazendeiro-doador constata que o pai “teve a alegria da entrega” (da enxada de ouro) e “decepções” com o que aconteceria depois.

Para contar o que se passou, Litewsky, ele mesmo, auxiliado pela poderosa voz de Paulo Betti (e também por Eliane Giardini, Cleisson Vidal, Ringo Garcia, entre outros) narra em tom radiofônico (de cores intencionalmente sensacionalistas) imbroglio que duraria mais de seis décadas. E, para fazer do filme uma espécie de documentário-comédia, ele recorre a trilha sonora das mais abusadas.

O cineasta desconstrói sua aparência de homem sério ao selecionar (ele mesmo) uma rancheira de Teixeirinha (“Aliança de Ouro”), a pegajosa “Criança Feliz” (de Florisval Guimarães) e “Renunciei”, de Roberto Audi, somando-as ao Hino da Independência e à Canção do Expedicionário. Quem, infante nascido nos tempos da ditadura militar, não cantou a plenos pulmões, os versos “Criança Feliz, que vive a cantar, alegre embalar seu sonho infantil, Ó meu bom Jesus, que a todos conduz, olhai as crianças do nosso Brasil”?

Os propósitos do filme já haviam sido esboçados em sua vibrante (e divertida) abertura, construída com desenho animado. Vemos o povo judeu adorando o Bezerro de Ouro, ídolo profano, depois da Travessia do Mar Vermelho. Moisés, ao regressar do Monte Sinai com as tábuas da lei (Os Dez Mandamentos), é tomado de ira santa frente ao que vê e destrói o objeto de cobiça pecaminosa de seus seguidores.

“Golpe de Ouro” – Litewsky é um craque na escolha de títulos sintéticos e potentes – não tem a força temática e narrativa de “Cidadão Boilesen”, mas constitui-se como filme obrigatório e revelador da manipulação da boa fé do povo brasileiro. E mais: mantém sintonia fina com nosso tempo presente (daí imagens cômicas de manifestações verde-amarelas na Avenida Paulista, aquelas que exigiram, com patos, coreografias e discursos paranoicos, o golpe parlamentar que destituiu Dilma Rousseff).

Ah, segue spoiler intencional: o ouro-dinheiro recolhido (quase 4 bilhões de cruzeiros, algo em torno de 300 mil dólares) não ajudou a pagar nem uma fração da Dívida Externa brasileira. O Governo, num primeiro momento – apesar do envolvimento explícito do General Kruel – lembrou que nada tinha a ver com a campanha, pois ela era de natureza privada. Mas, com as joias e cédulas depositadas em seus domínios, achou por bem distribuir o tesouro entre quatro instituições: a Casa da Moeda, a CEF (Caixa Econômica), o Banco do Brasil e o Banco Central.

Como não dava para pagar a Dívida Externa, pensou-se em mandar o dinheiro para as Santas Casas de Misericórdia ou para o Movimento de Alfabetização de Adultos. Houve quem sugerisse que fosse encaminhado aos Pracinhas da FEB.

A equipe de “Golpe de Ouro” procurou os comandos das quatro instituições. Algumas responderam nada saber sobre o assunto, passados tantos anos. Uma museóloga atestou que joias quebradas (e até enferrujadas, pois não eram de ouro 18 quilates) e outros frutos da fúria doadora dos legionários estavam, sim, em espaço oficial destinado à preservação da memória monetária brasileira.

Litewski, que dessa vez não concorre ao principal prêmio do Festival É Tudo Verdade (está na mostra paralela O Estado das Coisas), tinha ou não motivos para temperar seu documentário com ingredientes farsescos?

 

Golpe de Ouro
Brasil, 82 minutos, 2021
Direção: Chaim Litewski (com Cleisson Vidal como diretor-assistente)
Produção: Terra Firme
Narração: Litewsky, Paulo Betti e Eliane Giardini
Fotografia: Cleisson Vidal e parceiros

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