Cinema Brasileiro: os mais lembrados

Por Maria do Rosário Caetano

O Instituto Itaú Cultural e o Data Folha uniram forças para pesquisar o gosto do público em relação com a produção audiovisual brasileira.

Uma das perguntas – “Qual o último filme nacional que você viu?” – serviu para reafirmar, mais uma vez, a força hegemônica de um gênero: a comédia.

37% dos que, realmente, assistem a filmes brasileiros, responderam (de forma espontânea) com ênfase num desses cinco títulos: “Minha Mãe É uma Peça” (21%), “O Auto da Compadecida” (7%), “Tropa de Elite” (4%), “Os Salafrários” (3%) e “Cabras da Peste” (2%).

28% dos entrevistados não conseguiram recordar do nome do último filme brasileiro assistido. 17% mostraram sua rejeição à produção nacional, pois garantiram “não assistir a filme brasileiro”.

Das produções lembradas pelos 37% que mantêm o hábito de ver filmes nacionais – seja em salas físicas de cinema, seja na TV ou no streaming – quatro são comédias e um drama policial de ação.

No terreno do humor, brilha, como não poderia deixar de ser, a Trilogia Materna de Paulo Gustavo, “Minha Mãe é uma Peça”. Além do ator ter levado milhões de espectadores ao cinema, sua morte em maio último, vítima de Covid-19, comoveu o país. Daí sua poderosa presença. Sozinho ele figurou na lembrança de 21% dos entrevistados, mais que a soma dos outros quatro (16%).

Em seu favor, a trilogia blockbuster de Paulo Gustavo teve, ainda, suportes de exibição os mais diversos eficientes: salas físicas, DVD, TV aberta, TV por assinatura e streaming.

O poder da comédia se faz sentir, também, no segundo lugar, a deliciosa adaptação que Guel Arraes realizou da peça homônima de Ariano Suassuna. Já se passaram 21 anos de seu lançamento nos cinemas e ele continua fascinando gerações. O fato de ter estreado primeiro na TV, como microssérie, não atrapalhou. Reprisado em sessões da tarde pela Rede Globo e em horários nobres pelo Canal Brasil, o filme continua encantando com as aprontações de João Grilo (Matheus Nachtergaele) e Chicó (Selton Mello).

O terceiro mais lembrado foi o polêmico drama policial (de ação) “Tropa de Elite”, de José Padilha, que rendeu dois filmes. O primeiro foi vítima de pirataria, transformou-se em assunto nacional e deu origem a uma sequência, vista por mais de 11 milhões de brasileiros. Padilha mudou-se para os EUA, depois de realizar série lavajatista (“O Mecanismo”), e brilhou internacionalmente com a série “Narcos” (com Wagner Moura no papel de Pablo Escobar). Antes fizera um “Robocop” olvidável.

As duas comédias que completam a seleta lista dos cinco mais lembrados são novíssimas: “Cabras da Peste”, de Vitor Brandt, e “Os Salafrários”, de Pedro Antônio, filho cineasta Paulo Thiago. Os dois, apesar da devastação causada pela epidemia de Covid-19, devem sua ótima difusão à Netflix, poderosa plataforma de streaming. Atraíram tantos espectadores, que suplantaram, na memória do público, filmes como “Cidade de Deus” (Fernando Meirelles), “Se Eu Fosse Você” (Daniel Filho) e “De Pernas pro Ar”. Todos sucessos populares, com milhões de ingressos vendidos. No caso de “Cidade de Deus”, há outro dado importante – o filme passou pelo Festival de Cannes e grandes eventos internacionais e concorreu a quatro estatuetas (Oscar) da Academia de Cinema de Hollywood.

Quem aprecia as comédias brasileiras, destas que conseguem ser engraçadas e, ao mesmo tempo, respeitar a inteligência alheia, poderão gostar – além de “Salafrários” e “Cabras da Peste” – de outro título disponibilizado no streaming: “Não Vamos Pagar Nada”, de João Fonseca. Vítima do desarranjo do circuito exibidor provocado pela epidemia da Covid-19, muitos filmes (incluindo comédias bem produzidas) deram quase traço nos cinemas. “Não Vamos Pagar Nada”, por sorte, encontrou importante vitrine no Telecine Play.

Por falar em “dar quase traço” nas bilheterias, registremos o número de ingressos vendidos por alguns títulos brasileiros nos últimos e trágicos 17 meses: “Um Tio Quase Perfeito 2” (80 mil, o primeiro chegou a 600 mil), “Dois + Dois” (20 mil), “Lucicreide Vai pra Marte” (17 mil), “Depois a Louca Sou Eu” (15 mil), “O Auto da Boa Mentira” (12 mil), “Piedade” (5 mil), “Doutor Gama (5 mil), “Acqua Movie” (2 mil), “Cemitério das Almas Perdidas” (500).

O que “Os Salafrários”, “Não Vamos Pagar Nada” e “Cabras da Peste” têm em comum? Em especial: bons atores formando duplas de protagonistas que furtam (primeiro caso), protestam (segundo) ou impõem a lei, apesar de serem (meio) trapalhões.

Essa trinca de filmes conta com duplas da pesada. Samantha Schütz faz par com Marcus Majela (como salfrária) e com Edmilson Silva (em “Não Vamos Pagar Nada”, baseado em texto de um Prêmio Nobel de Literatura). Edmilson, por sua vez, forma dupla policial com Matheus Nachtergaele em “Cabras da Peste”.

Samantha, Majela e Edmilson são crias do humor popular. Os dois primeiros vindos do teatro de esquetes, do stand up (e consagrados na TV por assinatura com “Vai que Cola”). O terceiro, cearense com longa vivência nos EUA, vem do humor e das lutas marciais, que o consagraram com “Cine Holliúdy” e “O Shaolim do Sertão”, dirigidos por Halder Gomes.

Já Matheus Nachtergaele vem do teatro de invenção, da vertente mais inquieta de nossa dramaturgia, do Grupo Vertigem e do seminal “O Livro de Jó”. Mas, ao longo de sua carreira, ele conseguiu somar “filmes-cabeça” (até dirigiu um deles, “A Festa da Menina Morta”) e cinema popular de qualidade.

Quem, entre os amantes da boa comédia brasileira, há de esquecer João Grilo? Ou o atrapalhado policial Trindade, par de Bruceuilis? E do Nezinho, um caipira mazaropiano em “Tapete Vermelho” (Luiz Alberto Pereira, 2006) – nesse caso, com acesso de público mais restrito?

Há que se lembrar que Matheus integrou o elenco coral do drama social “Cidade de Deus” (3.200.000 ingressos) no papel do traficante Sandro Cenoura. Conseguiu misturar-se, em perfeita sintonia, com o elenco majoritariamente formado com crianças e jovens dos morros cariocas.

Samanta Schmütz protagonizou uma comédia de muitos valores – “Tô Ryca!” (2016), que gerou uma sequência, “Tô Ryca 2” (2021), ambas dirigidas por Pedro Antônio. Este pode ser visto na Netflix, na Globoplay e no Telecine Play.

No primeiro filme (ainda disponível no catálogo da Netflix), Selminha, frentista de posto de gasolina, ganha uma fortuna. Porém, para colocar a mão na grana, é obrigada a consumir R$30 milhões ao longo de 30 dias, sem acumular nada (e em segredo).

Quem, nas classes menos favorecidas, resiste a ver pessoa pobretona esbaldando-se em hotéis de luxo, comendo do bom e do melhor, vestindo as roupas mais caras e descoladas, penteando-se nos mais finos salões?

No segundo filme, também escrito por Fil Braz (do time de bons roteiristas reunidos em torno de Paulo Gustavo, no qual destaca-se também o culto e poliglota Leandro Soares), a situação se altera: Selminha depara-se com uma estranha de nome igual ao seu. Esta estranha garante ser a legítima herdeira da fortuna desfrutada pela ex-frentista. Forma-se o impasse e os bens de Selminha são congelados. Ela é obrigada a viver com o que estipula a Justiça: míseros R$30 reais por dia. Tal situação a leva de volta ao subúrbio (Quintino), onde ela terá que dobrar um riscado.

Samantha, de 42 anos, que além de atriz é também cantora, vive com o marido, o estadunidense Michael Cannet, entre o Brasil e os EUA. Seu nível de exigência é alto, ela é muito articulada e sabe o que quer.

Ao protagonizar a adaptação de “No Si Paga! No Si Paga!”, do dramaturgo italiano Dario Fo (Nobel de Literatura em 1987), ela pôde dialogar com fonte das mais respeitadas. Ao lado da mulher, a atriz Franca Rame, o lombardo Dario Luigi Angelo Fo (1926-2016) construiu (e montou) peças anárquicas e de grande sucesso, inclusive no Brasil (“Morte Acidental de um Anarquista”, foi produzida e estrelada, com grande repercussão, por Antônio Fagundes).

“Não Vamos Pagar Nada”, título da comédia de Samantha e trupe, é fruto de adaptação de Renato Fagundes, que abrasileirou a anárquica (e politizada) trama peninsular.

Antônia (Samantha Schümtz) vai fazer compras no único mercado do bairro onde mora. Um enorme aumento de preços (o remarcador é interpretado pelo cantor Criolo) a deixa revoltada. Por isso, ela resolve fazer um escândalo. E será acompanhada, no barulhento protesto, por todos os clientes. Forma-se tal confusão, que o saque se faz inevitável. Cada um pega o que pode e dá no pé.

O marido de Antônia, João (Edmilson Silva) é um pacato cidadão, cumpridor de seus deveres, honesto até mais não poder. Odeia cabeça de galinha, mas a pindaíba em que vivem o obriga a desgutar tal complemento alimentar. Seus princípios o obrigam a rejeitar qualquer item furtado. Prefere passar fome.

Um policial (Flávio Bauraqui) aparece na casa de Antônia, para encaminhar procedimentos investigativos. Ela terá que se virar para não ser presa e, claro, não deixar o marido descobrir que ela deflagrara o saque ao mercado. E fora uma das saqueadoras.

Outro casal entrará em cena, para novos quiprocós – Margarida (Flávia Reis) e Luís (Leandro Soares). Fernando Caruso e Paulinho Serra também estão no elenco. Uma comédia instigante.

Quatro anos atrás, Halder Gomes dirigiu “Os Parças”, outra comédia que merece o adjetivo “instigante”. À frente do elenco, Tom Cavalcanti, Whindersson Nunes, Tirullipa, Bruno de Luca, Oscar Magrini, Paloma Bernardi e Taumaturgo Ferreira (com participação especial do jogador Neymar). Mais uma farra para divertir o público, sem subestimar sua inteligência.

Os “parças” são pobretões que se viram para sobreviver. Juntos, decidem montar uma empresa (fajuta), que organizará festas para milionários. Ótimo ponto de partida para o divertido e brasileiríssimo roteiro escrito por Cláudio Torres Gonzaga.

O católico Ariano Suassuna (1927-2014), em sua peça mais famosa, fez questão de colocar na boca da Compadecida, uma máxima que era dele: “a esperteza é a arma do pobre”. Esta máxima serve como luva a “Os Parças” (disponível na Globoplay e Telecine Play) e, em certa medida, a “Os Salafrários”. Embora a dupla de protagonistas deste filme traga certa dose de cinismo.

Os dicionários definem salafrário: “pessoa desonesta, desleal, ordinária”. Em momento algum está dito que são praticantes de pecados capitais (roubos com uso de armamento, assassinatos etc.).

“Os Salafrários” começa com a tumultuada infância e adolescência do gordinho Clóvis, criado por madrastas, padrastos e outros “astros” até, adulto (no corpo roliço de Marcus Majela), viver de falcatrua em falcatrua. Em certo momento de sua vida, ele até “ganhara” uma irmã de criação, a maluquinha Lohane. Adulta e honesta, ela implanta, numa praça de Magé, um trailer para vender comidas (Lohane’s Point). Sem alvará, será extorquida por dois fiscais (eles aceitarão suborno, deixando-a na lona, mas com o trailer). Só que os caras eram trambiqueiros. Os verdadeiros fiscais chegarão para confiscar a “casa” do Lohane’s Point.

Desesperada, ela vai atrás do irmão adotivo, de quem não tinha notícias. Engatam um papo cheio de desencontros, Clóvis (homenagem a Clovis Bornay) quer se ver livre, a todo custo, da irmã enxerida e, ainda por cima metida a honesta. O que virá dali em diante é uma aventura pela Região dos Lagos, no estado do Rio, e por São Paulo.

No recheio, reflexões, por mais superficiais que sejam, sobre Ética (“tenho ética, só minha, mas tenho”) e tiradas espirituosas (“eu era certinho e dava errado; agora sou errado e dou certo”). E piadas com algum verniz cultural: “Senhora, não! ‘Senhora’ é nome de livro de José de Alencar, que nos obrigavam a ler na escola… mas eu não li”) e “os brasileiros inventaram o avião, o relógio de pulso, a urna eletrônica e a chapinha (capilar)”. E, também em nível superficial, diálogo com os tempos lavajatistas vividos pelo país quando o roteiro foi escrito: Tiradentes foi entregue por “alcagueta, traíra, X9 e delação premiada”.

Os dois atores, Samantha e Majela, estão afiadíssimos e os diálogos têm ritmo e divertem. Para completar, o filme conta com trilha sonora sacudida e vibrante. Soma sucessos de Anitta (“Vai Malandra”) a Raul Seixas (“Aluga-se”), passando por hit sertanejo (“Não Aprendi a Dizer Adeus”) e Sandy e Jr.

Detalhe curioso: galinha voa em “Não Vamos Pagar Nada” e, também, em “Os Salafrários”. Há hipótese possível para tal recorrência: a penosa dá sorte nas bilheterias (vide o sucesso de “Cidade de Deus”). E tal crença deve ter sido espalhada em sets de filmagem pelo distribuidor Bruno Wainer, da Downtown, acabando por contaminar seus colegas de ofício.

Há outra prática corrente nas comédias: o público gosta de cenários bonitos e roupas chiques. E tome praias ensolaradas, lagos e cidades sofisticadas (Paris, Nova York). E modelitos fashion. Ah, como São Paulo é dona da maior cadeira de exibição cinematográfica da América do Sul, filmar parte da trama em locação bandeirante também pega bem. Muito bem.

 

Não Vamos Pagar Nada
Brasil, 87 minutos, 2021
Direção: João Fonseca
Roteiro: Renato Fagundes
Produção: A Fábrica, com Globo Filmes
Elenco: Samantha Schmütz, Edimilson Filho, Flávia Reis, Leandro Soares, Flávio Bauraqui, Criolo, Fernando Caruso
No Telecine Play e hoje (30/08), às 23h20 na Globo.

Os Salafrários
Brasil, 94 minutos, 2021
Direção: Pedro Antônio
Roteiro: Fil Braz
Produção: Glaz, Downtown, Paris Filmes e Paramount
Elenco: Samantha Schmütz, Marcus Majela
Na Netflix

Cabras da Peste
Brasil, 97 minutos, 2021
Direção: Vitor Brandt
Roteiro: Denis Nielsen e Vitor Brandt
Elenco: Matheus Nachtergaele, Edimilson Filho, Letícia Lima, Falcão, Evelyn Castro, Juliano Cazarré, Rafael Portugal e Rossicléa
Na Netflix

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