Doutor Gama

Por Maria do Rosário Caetano

O cineasta Jeferson De, paulista de Taubaté, 50 anos, criador do manifesto Dogma Feijoada, lança nessa quinta-feira, 5 de agosto, seu quinto longa-metragem, “Doutor Gama”. Trata-se da cinebiografia de Luiz Gonzaga Pinto da Gama (1830-1882), filho de fidalgo português e mãe baiana. Nasceu livre, mas foi vendido como escravo, aos 10 anos, pelo pai, necessitado de dinheiro para pagar dívidas de jogo.

A trajetória de Luiz Gama constitui exemplo realmente impressionante. Ele deixou sua Bahia natal e radicou-se em São Paulo. Tentou estudar Leis na tradicional Faculdade de Direito do Largo São Francisco, mas não conseguiu nem efetivar sua inscrição. Na escola, que formava a elite intelectual paulista, não havia lugar para um rapaz negro, ex-escravo e pobre. Mesmo assim, ele seguiu frequentando as Arcadas, assistiu aulas como ouvinte e dedicou-se à leitura de obras jurídicas e literárias na importante biblioteca da instituição.

Tornou-se, mais tarde, um rábula, aquele que conseguia licença provisória para advogar, sem ser formado em Direito. Com seus conhecimentos jurídicos, conseguiu libertar 500 negros da escravidão. Tornou-se, também, jornalista e poeta, colaborou com jornais e revistas e deixou vasta obra, já lançada em dois livros organizados pela pesquisadora Lígia da Fonseca Ferreira, da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) – “Com a Palavra, Luiz Gama” e “Lições de Resistência”. Sua obra completa, em 10 volumes, encontra-se no prelo (Editora Hedra).

Ao escolher para seu filme o título de “Doutor Gama” ao invés de “Luiz Gama, o Rábula Libertador”, Jeferson De e seu roteirista, Luiz Antônio, encontraram respaldado em atos da Ordem dos Advogados do Brasil e Universidade de São Paulo. Em 2015, a OAB reconheceu Gama como advogado. Dois meses atrás, a USP atribuiu a ele o título de doutor honoris causa.

O protagonista de “Doutor Gama” viveu apenas 52 anos. Para revivê-lo, da infância à maturidade, Jeferson convocou três atores: o infante Pedro Guilherme, o jovem Angelo Fernandes e, para a fase adulta, Cesar Mello. Em torno deles, elenco notável: a atriz portuguesa Isabel Zuaa e os brasileiros Zezé Motta, Mariana Nunes, Daniela Ornellas , Teka Romualdo, Romeu Evaristo, Sidney Santiago, Johnny Massaro, Erom Cordeiro, Nelson Baskerville, entre outros.

Jeferson De, que finaliza, com Belisário Franca, versão cinematográfica da série “A Revolta dos Malês” (Sesc TV, 2019), respondeu a duas perguntas da Revista de CINEMA sobre sua cinebiografia do rábula-doutor.

Em pauta, dois temas controversos – biografias edificantes, cujos protagonistas são vistos sem defeitos/zonas de sombra, e a figura de Luiza Mahim, personagem histórica de existência controversa, que teria participado da Revolta do Malês, em 1835, da Sabinada (1837-1836), entre outros importantes momentos históricos.

A pesquisadora e professora da Unifesp Lígia Fonseca Ferreira, doutora em História pela Sorbonne, não trabalha com a informação de que Luiza Mahim seja mãe de Luiz Gama. E age assim por não dispor de provas documentais de tal laço familiar.

Revista de CINEMA – Jeferson, em dois “mandamentos” do Dogma Feijoada, você diz: “Personagens estereotipados negros (ou não) estão proibidos” e “O roteiro deverá privilegiar o negro comum brasileiro. Super-heróis ou bandidos deverão ser evitados”. Ao construir o personagem Luiz Gama, você se preocupou em buscar arestas na trajetória dele, ou seja, fragilidades? Encontrou-as?

Jeferson De – Fico feliz que o Dogma Feijoada tenha relevância 21 anos depois de ser publicado. O manifesto ainda é um documento que se faz necessário e pauta muitas discussões sobre nosso audiovisual. Apesar de acreditar que com o passar do tempo são necessários ajustes e ressignificações, principalmente quando se trata de uma reparação histórica, ou seja, reconhecer Luiz Gama como um dos principais personagens na luta contra a escravidão no Brasil. Ele foi um homem que apesar das inúmeras ocorrências trágicas de sua vida lutou bravamente. Ele influenciou tantos pensadores brasileiros e não teve seu reconhecimento devido. Ao longo do filme procurei apresentá-lo como um homem que se forma como pessoa e cidadão à medida que os eventos vão se desenrolando em sua vida. Inclusive com dúvidas e incertezas. Dessa forma, vamos acompanhando sua indecisão que se dá na forma como ele reage à violência praticada contra ele e, por vezes, incomoda seus pares por sua luta ser do lado da lei. Mas é sobretudo no debate com outras pessoas negras que ele encontra sua força para seguir.

Quando a lenda é mais forte que a realidade, imprima-se a lenda”, frase dita por personagem fordiano, tornou-se célebre. Luiz Gama se dizia filho de Luiza Mahim. Ana Maria Gonçalves, em “Um Defeito de Cor”, optou por imprimir a lenda. Já você optou pela realidade. O fez aconselhado por historiadora que prestou consultoria ao filme?

“Doutor Gama” nasce da pesquisa de centenas de pessoas na academia (e fora dela). Uma das primeiras pessoas que procurei foi a pesquisadora Lígia Fonseca Ferreira, que tem se dedicado ao estudo da obra de Luiz Gama. Foi um filme construído com muito rigor histórico, mas sabíamos onde poderíamos preencher lacunas com liberdade artística. Seguimos a trilha do personagem principal, no contexto pré-abolição, no qual a contribuição de Luiz Gama enquanto pensador de um Brasil justo para todos foi fundamental. É preciso ler as suas palavras, conhecer o seu legado, e este foi o foco.

Retratar esta época, a São Paulo de 1850, não foi fácil, uma cidade pequena, fria e que em nada se assemelha ao que conhecemos hoje. Ao longo da produção, toda equipe teve esse cuidado: desde o diretor de arte, passando pela figurinista, maquiagem e produtores. Fizemos uma preparação para que a fotografia nos remetesse àquela época com a maior exatidão possível. Tudo isso, obviamente, pautou o trabalho intenso de nosso elenco, eles foram brilhantes na defesa de cada personagem. Enfim, acredito que a história dele é tão forte, que por alguns momentos tinha realmente essa a impressão de estar dirigindo um filme sobre uma lenda ou super-herói, mas não, era apenas Luiz Gama.

 

Doutor Gama
Brasil, 92 minutos, 2021
Direção e montagem: Jeferson De
Roteiro: Luiz Antônio
Fotografia: Cris Conceição
Produção: Buda Filmes, Globo Filmes e Paranoid
Elenco: César Mello, Mariana Nunes, Isabel Zuaa, Romeu Evaristo, Teka Romualdo, Johnny Massaro, Erom Cordeiro, Dani Ornellas, Sidney Santiago, Zezé Motta, Nelson Baskerville
Distribuição: Elo Company

 

FILMOGRAFIA
Jeferson De

1999 – “Gênesis 22” (curta)
2001 – “Distraída para a Morte” (curta)
2003 – “Carolina” (curta)
2004 – “Narciso Negro” (curta)
2008 – “Jonas, Só Mais Um”(curta)
2010 – “Bróder” (longa)
2015 – “O Amuleto” (longa)
2018 – “Correndo Atrás” (longa)
2019 – “M8 – Quando a Morte Socorre a Vida” (longa)
2021 – “Doutor Gama” (longa)
2021 – “A Revolta dos Malês”, parceria com Belisário Franca (série e filme)

DOGMA FEIJOADA

Jeferson De – 2000

GÊNESE DO CINEMA NEGRO BRASILEIRO

1. O filme tem que ser dirigido por realizador negro brasileiro
2. O protagonista deve ser negro
3. A temática do filme tem que estar relacionada com a cultura negra brasileira
4. O filme tem de ter um cronograma exequível. Filmes-urgentes
5. Personagens estereotipados negros (ou não) estão proibidos
6. O roteiro deverá privilegiar o negro comum brasileiro. Super-heróis ou bandidos deverão se evitados.

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