Piedade

Por Maria do Rosário Caetano

A pandemia atrasou o lançamento de “Piedade”, o quinto longa-metragem do pernambucano Cláudio Assis, o primeiro a incorporar Fernanda Montenegro a seus elencos. Ninguém esperava que a nonagenária dama do teatro brasileiro topasse parada tão dura. E inusitada. Afinal, Assis, de 61 anos, é conhecido por posturas transgressoras, vocabulário nada cavalheiresco e narrativas anarco-proletárias. E Fernandona, de 91 anos, é a grande dama do teatro (cinema e TV) brasileiro(s).

Pois nessa quinta-feira, 5 de agosto, “Piedade”, que carrega o nome de cidade fictícia, mas muito semelhante ao conglomerado Recife/Jaboatão dos Guararapes, chega aos cinemas.

Como é que Fernanda Montenegro foi parar num filme de Cláudio Assis?

Com a palavra, Matheus Nachtergaele, ator-fetiche do cineasta, presença garantida em seus cinco longas. Afinal foi ele quem desempenhou a missão de convencimento. Fez a embaixada. E contou a história, em detalhes, no Festival de Brasília, três anos atrás:

“Quando Cláudio Assis me apresentou a história de ‘Piedade’ e os personagens do filme, sugeri que convidasse Fernanda Montenegro para interpretar Dona Carminho. ‘Mas como é que eu vou chegar até ela?’, me perguntou. Deixa comigo, respondi. Como fiz vários trabalhos com Dona Fernanda, procurei-a para explicar o desejo de Cláudio de tê-la no elenco de seu novo filme. Para meu espanto, ela não pediu tempo para ler o roteiro, nem nada. Disse que conhecia os filmes de Cláudio Assis, que tinha enorme respeito pelo trabalho dele e que aceitava fazer o filme.”

Fernandona avisou ao colega Matheus que “queria integrar-se à equipe de forma horizontal, sem nenhum privilégio, ficar no mesmo hotel, comer a mesma comida”. Ela sabia do “caráter social do trabalho do Cláudio e o viveria com (e como) os outros atores”.

Nachtergaele, que interpreta Aurélio, um “um executivo ultracapitalista”, encerrou sua narrativa sobre a conquista de Fernandona para o elenco de “Piedade” de forma saborosa:

“Dona Fernanda adora ‘trabalho de mesa’. Sempre fez isto no teatro e no cinema. Cláudio Assis nunca usou ‘trabalho de mesa’ em seus filmes. Entusiasmei-o a aceitar esta prática, já que para ela, Dona Fernanda, era tão importante. Iniciamos o trabalho com o roteiro na mão, não numa mesa, mas sim numa varanda. Ela de lápis na mão, fazendo anotações. O Claudião ali, fazendo de conta que estava muito interessado. Como o processo era longo, ele saía, ia beber um uisquinho, voltava e o trabalho de mesa (ou de varanda) continuava. Quando o trabalho terminou, Dona Fernanda se virou para o Cláudio e perguntou: ‘então, senhor diretor, o que achou?’ Ele respondeu: ‘fulano está ótimo, sicrano também! Mas a senhora, Dona Fernanda, tem que melhorar o sotaque’ (todos caíram na gargalhada, incluindo o cineasta).”

Dois outros atores que estreiam nos elencos de Cláudio Assis – Cauã Reymond e Gabriel Leone – não exigiram processos de convencimento. Ambos queriam trabalhar com o pernambucano. E toparam papéis de pai (Sandro) e filho (Marlon Brando), uma dupla nada convencional. Sandro é dono de uma cinema pornô, que aluga uma série de cabines para práticas de sexo. O filho integra um grupo de ativistas, que realiza performances videográficas para protestar contra o desequilíbrio ecológico trazido pela Petro Green. Esta petroleira arruinou com o meio ambiente, atraindo tubarões para as praias, impedindo o sossego dos banhistas.

Cauã, hoje com 41 anos, adorou sua personagem, que vive duas sequências calientes de sexo com Aurélio. E não estranhou ser escalado como pai do personagem de Gabriel Leone, hoje com 28. O que não falta no país, afinal, são pais adolescentes. E os dois estão maravilhosos em seus desempenhos. Aliás, registre-se, Cláudio Assis tira o melhor de seus atores.

Outro personagem com grande destaque no filme é Irandhir Santos. Ele interpreta o filho de Dona Carminho (Fernanda Montenegro), dona de bar na beira da praia, cujo terreno é cobiçado pela Petro Green. O nome do personagem é tão divertido quanto o de Marlon (Brando): Omar Sharif. Sua irmã, Fátima (interpretada por Mariana Ruggero) lembra que o pai, o já falecido Humberto Bezerra, tinha mania de batizar os filhos com nomes de gente de cinema. Só ela ficara com um prenome corriqueiro.

Matheus Nachtergale, o inesquecível Dunga de “Amarelo Manga”, o agroboy de “Baixio das Bestas”, o pai bruto (e o tio doidão) de “Big Jato”, vive seu papel mais desafiador – um executivo cuja missão consiste em convencer Dona Carminho e seus filhos a aceitarem indenização e darem o fora da praia, limpando o terreno para a Petro Green.

“Piedade” é um filme moderno, pulsante, vigoroso e muito sintético. Dura apenas 85 minutos. Já nas primeiras imagens, vemos Aurélio, num quarto de hotel de luxo, olhando o mar atlântico. No mar, vemos um trio de mascarados (a máscara mais vistosa, de Marlon, lembra a do Santo, heroi dos filmes mexicanos) gravando vídeo-protesto, que esperam viralizar na internet. No centro da performance, os tubarões. Eles compõem a metáfora central do filme, pois tomaram conta do território dos banhistas e são os comandantes (figurados) da poderosa Petro Green.

O roteiro soma realismo documental, folhetim (há trama de filho roubado de sua mãe verdadeira), homenagem ao cinema e muitas tiradas de humor (diálogos deliciosos). E sexo, quase explícito e homoafetivo. Cláudio Assis conhece a importância da pulsão sexual na vida de seus personagens (o filme conseguiu censura 16 anos, poderia ser 14).

O argumento é do próprio Cláudio Assis. Ele contou, no Festival de Brasília, que o premiou com o Candango de melhor diretor, conhecer, e bem, cada um dos temas abordados em seu filme. Até o que pode parecer folhetinesco: Cláudio teve um irmão (recém-nascido) raptado na maternidade. Este acontecimento marcou profundamente sua vida familiar. E, ao lembrá-lo, o cineasta nascido em Caruaru, chorou na frente de dezenas de pessoas que assistiam ao debate de “Piedade”.

O irascível diretor pernambucano, que adora bradar “do caralho, do caralho”, é, no fundo, um sentimental. Passou seu argumento a um trio de colaboradores (Anna Francisco, Hilton Lacerda e Dillner Gomes) e deixou que eles construíssem, com total liberdade, o roteiro.

O trio montou narrativa sobre três pilares. Primeiro, o bar de Dona Carminho, que sofre as consequências de grave desequilíbrio ecológico, não consegue pesca para garantir as especialidades culinárias da casa (o jeito é comprar no mercado) e vê a clientela rarear.

O segundo núcleo é formado pelos jovens ativistas, rebeldes e afinados com as últimas tecnologias, capazes de fazer denúncias criativas contra o atual estado de coisas, focados no desequilíbrio ambiental.

O terceiro – e responsável pelas maiores ousadias do diretor de fotografia (Marcelo Durst e não mais o parceiro dos outros filmes, Walter Carvalho) – circula por um cinema abafado que soma sessões de filmes pornôs a micro-quatros (cabines) para prática de sexo. O “cheiro da porra” (com sua ambiguidade vocabular) atormenta o personagem de Nanego Lira, que gerencia o espaço e pede detergente “dragão”, o mais forte, para tirar o fedor impregnante. Sandro protesta, com sua doçura costumeira: “sexo não fede, cheiro de sexo é bom”.

São arrebatadoras as cenas em que pai e filho (Sandro e Marlon) discutem por estreito corredor do cinema pornô. Postada acima, como um olho sobrehumano, a câmara tudo vê: o sexo correndo solto – e variado – nas cabines. Com esta poderosa sequência, mergulhamos no ambiente que mobiliza os esforços afetivos e profissionais de Sandro, personagem que terá importância fundamental na trama.

Amarrando os três espaços – o mar dos ativistas, o bar decadente da praia e o cinema pornô – está o executivo paulista (de Baurú) Aurélio, que embora queira ser durão, tem uma mãe que é uma fera (Denise Weinberg, em presença tecnólogica na narrativa).

O filme, aliás, está em sintonia fina com o mundo digital. Ramsés (Francisco de Assis Moraes), o neto de Dona Carminho, não deixa o celular por nada desse mundo e fica atarantado quando ganha um simulador de mergulho (de Aurélio, claro). E os ativistas utilizam formas tradicionais de protesto: picham paredes (“o petróleo foi nosso, hoje somos dele”) ou automóveis, mas arrasam mesmo com suas rebeldes incursões no espaço digital. Mesmo sessentão, Cláudio Assis continua fiel à sua alma proletária e segue praticando um cinema de marca social e vigoroso.

 

Piedade
Brasil, 85 minutos, 2021
Direção: Cláudio Assis
Roteiro: Anna Francisco, Hilton Lacerda e Dillner Gomes
Produção: Marcelo Ludwig
Fotografia: Marcelo Durst
Elenco: Fernanda Montenegro, Matheus Nachtergaele, Irandhir Santos, Cauã Reymond, Gabriel Leone, Mariana Ruggero, Nanego Lira, Denise Weinberg, Francisco de Assis Moraes
Distribuição: ArtHouse

FILMOGRAFIA
Cláudio Assis

2002 – “Amarelo Manga”
2006 – “Baixio das Bestas”
2011 – “A Febre do Rato”
2015 – “Big Jato”
2021 – “Piedade

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