Sorrentino revive sua adolescência marcada pela Mão do Deus Maradona

Por Maria do Rosário Caetano

“A Mão de Deus”, ou seja, a mão de Maradona, dá título ao nono longa-metragem do festejadíssimo Paolo Sorrentino, napolitano de 51 anos, disponibilizado, desde o último dia 15, pela Netflix.

O cineasta, ganhador de um Oscar de melhor produção internacional (por “A Grande Beleza”, 2013) conta com fãs incondicionais. E detratores incansáveis. Entre aqueles, estão os que o têm na conta de um verdadeiro discípulo de Federico Fellini um empolgante contador de histórias. Entre os que não se entusiasmam tanto com seu cinema, estão os que o vêm como um epígono do mestre, só que marcado pelo exagero, pela extravagância e, até, pela histeria. A obra oscarizada de Sorrentino não chega, na opinião destes, ao pés de “La Dolce Vita” (1960), obra-prima felliniana.

Quando “A Mão de Deus” estreou no Festival de Veneza, em setembro último, até os mais ferrenhos críticos do napolitano deram o braço a torcer. Acharam Sorrentino mais contido, pessoal, rememorativo. Em suma, menos imitativo. Mesmo que continuasse citando Fellini a torto e a direito. E até colocando o genial realizador de Rimini num cantinho de sua narrativa. O diretor de “8 1/2” e, também, Zeffirelli (numa das piadas do filme) e outro cineasta, o conterrâneo Antonio Capuano, hoje octogenário, responsável pela iniciação real de Sorrentino no audiovisual (este colaborou no roteiro de “Polveri di Napoli”, 1998). Para os que se entusiasmaram com a “A Mão de Deus” – depois de dialogar com “La Dolce Vita”, matriz de “A Grande Beleza ” – chegara a vez de “Amarcord” (1973). Ou seja, de recordar os anos de juventude na cidade natal. Fellini em Rimini, Sorrentino, em Nápoles.

Como Paolo Sorrentino parece não ter grandes veleidades autorais – postura férrea da geração de Fellini, Antonioni, Visconti e Pasolini –, ele não esconde suas influências. Declarou, numa boa, ao jornal El País, de Madri, que inspirou-se abertamente em “Roma”, de Alfonso Cuarón (Oscar internacional 2018). Diz que gostou tanto do filme, que chegou a escrever ao diretor mexicano, dizendo que encontrara nele várias soluções para o roteiro que engendrava.

“A Mão de Deus” resultou, apesar de todas as suas citações e referências, no mais pessoal dos filmes de Sorrentino. Claro que não se trata de uma recriação fiel de sua juventude. Ele inventou muita coisa. Mas captou o espírito da época. Como nasceu em maio de 1970, contava 16 anos quando Diego Maradona tornou-se o Rei do Napoli, levando o time à glória, e de Nápoles, a barulhenta cidade banhada pelo mar, embalada por canções de amor e pela contravenção da máfia.

Se a mão de Maradona ajudou a Argentina a derrotar a seleção inglesa e triunfar na Copa do Mundo – levando o país sul-americano a vingar-se, simbolicamente, da humilhação na Guerra das Malvinas –, outro “milagre divino” aconteceria na vida do jovem e futuro cineasta napolitano. Os pais de Fabietto (o alterego de Sorrentino) foram descansar em casa de férias e o filho adolescente iria com eles. Mas desistiu para assistir a uma partida do Napoli (com Maradona no elenco, claro). No dia seguinte receberia a notícia de que os pais estavam hospitalizados (na verdade mortos, intoxicados acidentalmente com gás).

O magricela e feioso Fabietto, sem rumo, não sabia o que fazer da vida. Perdera, de uma só vez e tragicamente, os pais, alegres, brincalhões, que participavam de passeios divertidíssimos e barulhentos em família. Passeios extravagantes, com avó desbocada, tios falastrões, tias boazudas (ou não) e uma louca e disposta a acender o imaginário dos rapazes com seu corpo escultural e hábito de tomar sol nua.

Quando decide desenhar o retrato pitoresco da grande família italiana, Sorrentino mergulha na caricatura. Como nunca teve a genialidade de Fellini, seus excêntricos personagens jamais encontram, para ficar em um único exemplo, a poesia inesperada do tio de “Amarcord” (Ciccio Ingrassia), que, do alto de uma árvore, grita “io voglio una donna”.

O cinema será a salvação do jovem órfão (a de Fabietto e a de Paolo Sorrentino). Com nove longas-metragens no currículo (e a badalada série “O Jovem Papa”), o diretor italiano tornou-se um astro europeu. Aliás, também muito festejado nos EUA. Dia destes ele contou que já não corre atrás de financiamento para seus projetos. São os produtores que o procuram. Quando estourou, junto com Matteo Garrone (“Gomorra”), em Cannes, com seu melhor filme (“Il Divo”, 2008), cartão de visita internacional do astro peninsular Toni Servillo (na pele do sorrateiro Giulio Andreotti), o destino de Sorrentino estava traçado.

Depois do Oscar de Hollywood, mais portas se abriram. Realizou uma superprodução para contar a história de Silvio Berlusconi, que fez muito sucesso na Itália. Sucesso que não se repetiu no exterior. Com “A Mão de Deus”, ganhou o Grande Prêmio do Júri, em Veneza. Os exibidores italianos ficaram em estado de fúria quando a Netflix tirou o filme de cartaz, ainda com salas cheias. Afinal, ela, a poderosa plataforma digital, pagara seus custos. E o fizera para atender a seus assinantes.

No Brasil, o filme teve carreira quase secreta nos cinemas. Só para constar. Mesmo caso de “Ataque dos Cães”, de Jane Campion, também da Netflix. Como “A Mão de Deus” é falado em italiano e dialeto napolitano, ele é finalista ao Globo de Ouro de melhor filme em língua estrangeira. E tudo indica que será um dos cinco finalistas ao Oscar internacional (lista com 15 semifinalistas sai nessa terça-feira, 21 de dezembro, e os finalistas, dia 8 de fevereiro).

Confiram, pois, amantes ou detratores de Sorrentino, sua (quase) autobiografia juvenil na tumultuada Nápoles da década de 1980. Com muitas histórias de família, cinema, amor e perda. E pouquíssimo futebol. Maradona e o Napoli compõem apenas um simpático e ligeiro pano de fundo.

 

A Mão de Deus | È Stata la Mano di Dio
Itália, 130 minutos, 2021
Direção: Paolo Sorrentino
Elenco: Toni Servillo, Filippo Scotti, Luisa Ranieri, Teresa Saponangelo, Marlon Joubert, Betty Pedrazzi, Lino Musella, Mariana Falace, Cristiana Dell’Anna, Renato Carpentieri

 

FILMOGRAFIA

2021 – “A Mão de Deus”
2020 – “Feito em Casa” (curtas de vários diretores)
2018 – “Silvio e os Outros” (sobre Berlusconi)
2013 – “A Grande Beleza”
2013 – “Rio, Eu te Amo” (episódios, vários diretores)
2011 – “Aqui é o meu Lugar”
2008 – “Il Divo”
2006 – “O Amigo da Família”
2004 – “As Consequências do Amor”
2004 – “Sabato, Domenica e Lunedi”
2001 – “Um Homem a Mais”

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.