É Tudo Verdade mostra Guerra Civil russa pelo olhar de Dziga Vertov

Por Maria do Rosário Caetano

Cento e um anos depois de seu lançamento (e esquecimento), o longa-metragem “A História da Guerra Civil”, de Denis Kaufman, o Dziga Vertov (pião que roda, movimento incessante), verdadeira lenda do cinema planetário, chega ao Brasil. E o faz no Festival É Tudo verdade, em exibições presenciais, on-line e com debate. E, curiosidade que impressiona, o personagem apagado pela história, dessa vez, não foi Leon Trotsky, mas sim Joseph Stálin.

O filme, dirigido pelo cineasta que a história consagrou como responsável pelo maior documentário de todos os tempos (“O Homem com sua Câmera”, 1929), será disponibilizado, nesse domingo, 3 de abril, on-line, por 24 horas (até atingir 1.500 visionamentos autorizados pelos detentores de seus direitos).

Ainda nesse domingo, às 17h30, haverá exibição presencial (retirar ingressos uma hora antes na bilheteria) no IMS da Avenida Paulista. Amanhã, segunda-feira, nova sessão presencial, no IMS do Rio de Janeiro, às 14h. Na quarta-feira, o jovem Luis Felipe Labaki, que acaba de organizar monumental livro sobre Dziga Vertov (Editora 34, 702 páginas) vai entrevistar, on-line, o russo Nikolai Izvolov, responsável pela redescoberta e restauro do filme que passou um século esquecido em algum desvão da memória soviético-russa.

O evento digital, aberto a todos os ouvintes, faz parte da Conferência Internacional do Documentário, que volta à programação do É Tudo Verdade, depois de complicações trazidas por crises financeiras e pela pandemia. Atenção para o horário da atividade: 15h, com legendas em português (o encontro continuará disponível no acervo do maior festival de documentários da América do Sul).

Registre-se: “A História da Guerra Civil”, o filme resgatado e restaurado de Dziga Vertov, tem, no Brasil, sua primeira exibição latino-americana. A primeira foi feita na Rússia (ex-URSS), claro. A segunda, em novembro do ano passado, teve a meca do cinema documentário mundial, o IDFA (Festival de Amsterdã) como cenário. De lá, Amir Labaki e o Festival É Tudo Verdade o trouxeram para sua primeira exibição pública fora de solo europeu e norte-americano.

Para acompanhar as exibições brasileiras do primeiro longa vertoviano, está no Brasil Jenny Delcambre, da Grinberg Bros. Ela, que deseja ver o filme programado no circuito de arte brasileiro, contará aos espectadores que “o monumental documentário foi dado como perdido, até ser encontrado e restaurado, um século depois, em processo comandado pelo russo Nikolai Izvolov, seguindo textos deixados pelo diretor de fotografia Grigory Boltyansky”.

O longa documental, lançado originalmente em 1921, cobre a Guerra Civil Russa (de 1918-1921). É necessário lembrar que, após a Revolução Bolchevique de 1917, o país dividiu-se em duas facções. Os brancos, apoiados por potências internacionais, e os vermelhos (os bolcheviques), comandados por Lênin, que tinham Leon Trotsky como criador e líder do Exército Vermelho.

Durante quatro anos, a guerra fratricida destruiu pontes, ferrovias, estradas, fábricas e, o pior, milhares de vidas. Filmar era muito difícil. A falta de negativo era brutal. Jay Leyda conta, em seu “Kino – Uma História do Cinema Russo e Soviético” (1960), o que foram aqueles anos de sangue e penúria. Mesmo assim, Vertov e seus companheiros conseguiram registrar o estrago da guerra (são impressionantes as paisagens arrasadas, as pontes, ferrovias e fábricas dilaceradas, os corpos mortos empilhados ou em imensos caixões para enterros coletivos).

Realizado no calor da hora, em pleno conflito, por ardoroso bolchevique (que escolheu como nome artístico o símbolo do movimento incessante – pião que roda sem parar), o filme abre espaço pleno para os revolucionários, os líderes do governo dos Soviets e do Exército Vermelho. E, claro, espaço especial para Trotsky, o destemido comandante militar dos bolcheviques. Aquele que profere a frase: “Ao terror branco, responderemos com o terror vermelho”.

Lênin e Stálin não têm vez nessa versão que nos chega 101 anos depois de seu lançamento em 1921. Além do criador do Exército Vermelho, vemos Kliment Voroshilov, Semyon Budyonny, Fedor Raskolnikov, Ivar Smilga, Sergo Ordzhonikidze e poucos outros. Diz-se que “a sequência em que Stálin aparecia sumiu”. Nada espantoso num país de história tão passional e marcada por reviravoltas quanto a russo-soviética.

Estudiosos garantem que “a versão original de ‘A História da Guerra Civil’ foi exibida apenas uma vez, em junho de 1921, no Terceiro Congresso Mundial da Internacional Comunista (Comintern)”. Portanto, Vladimir Lênin (1870-1924) estava vivo. A guerra sucessória entre Stálin e Trotsky, que viria em seguida, ainda estava “adormecida”. A exibição aconteceu em Moscou, e contou com a presença de cerca de 600 delegados. Não há notícias de qualquer outra exibição, até este restauro.

E por que o filme teria sido “esquecido” na gaveta? Primeiro – devemos conjecturar – pela ascensão de Stálin, claro. Por que ficar relembrando o papel de Trostsky no comando do Exército Vermelho? Segundo – por que reviver guerra fratricida, que dividiu povo obrigado a se unir para reconstruir país arrasado pelo Guerra Sino-Russa, pela Primeira Guerra Mundial, pela Revolução Bolchevique e, pior de tudo, pela Guerra Civil? A ordem era apostar (investir) tudo na reconstrução, na fraternidade, na união. A ordem era fazer filmes revolucionários. Eisenstein faria “O Encouraçado Potemkin” e “Outubro”. Pudovkin, “A Mãe”. Vertov, “O Homem com sua Câmera”. Kozintsev e Trauberg, “A Nova Babilônia”. Dovjenko, “A Terra”. A Vanguarda Soviética” (ou o Construtivismo Russo) ia encantar o mundo.

Nem Vertov se aferrou na defesa de novas exibições para “A História da Guerra Civil”, hoje um grande (imenso) acontecimento para cinéfilos, historiadores e pesquisadores. Um tesouro. Ele estava ocupado com a militância pelo poder das imagens, com os “Kino-Pravda” e com a construção de sua obra-prima, “O Homem com sua Câmera”. E outras que se seguiriam.

O inquieto Vertov, irmão dos diretores de fotografia Boris e Mikhail Kaufman, não deixou nenhuma informação sobre a trilha sonora de seu longa documental, originalmente, mudo. Roger Miller e Terry Donahue, da Alloy Orchestra, criaram um acompanhamento sonoro para o filme. A orquestra de Massachusetts, responsável por trilha musical para diversos clássicos do cinema mudo (como “Um Homem com sua Câmera”, além de “Metrópolis”, de Fritz Lang, e “Greve”, de Eisenstein), carrega um pouco nas tintas. Não dá descanso. Parece ter ojeriza ao silêncio. Música full time. Mas há momentos de beleza sonora hipnotizante. Um filme imperdível, apesar de centenário.

A História da Guerra Civil
Direção: Dziga Vertov
Trilha sonora: The Anvil Orchestra
Duração: 94 minutos
Nesse domingo, 3 de abril, on-line (por 24 horas, até 1.500 visionamentos) e, presencialmente, no IMS-SP, 17h30. Nessa segunda-feira, no IMS Rio, às 14h.
Na quarta-feira, dia 6, às 15h, entrevista de Nikolai Izvolov (sobre “A Guerra Civil por Vértov”) a Luis Felipe Labaki. Transmissão gratuita pelas plataformas www.itaucultural.org.br e www.etudoverdade.com.br. Mesa com duração de 1 hora, pré-gravadas e legendadas em português. Dentro da 19ª Conferência Internacional do Documentário.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.