Nanni Moretti retrata culpa e frustrações burguesas em “Tre Piani”

Por Maria do Rosário Caetano

O cineasta e ator italiano Nanni Moretti, de 68 anos, chega aos cinemas brasileiros, passada a fase pandêmica, nessa quinta-feira, 7 de abril, com seu décimo-quinto longa-metragem, a ficção “Tre Piani” (Três Andares), baseada em romance israelense, de Eskhol Nevo.

O filme, um drama que representou a Itália na competição do Festival de Cannes, ano passado, não parte de experiência pessoal do diretor peninsular. Tem mais a ver com “O Quarto do Filho”, Palma de Ouro em Cannes 2001, que com os divertidíssimos e autobiográficos “Caro Diário” e “Abril”. Não traz, também, o humor cáustico de “O Crocodilo”, sátira ao político e poderoso empresário Silvio Berlusconi, nem o humor aliciante de “Habemus Papam”.

Como o nome diz, “Tre Piani” tem como cenário os três andares de um prédio de classe média alta, em Roma, cidade adotiva do ator-cineasta, nascido em Brunico. Radicado no bucólico bairro do Trastevere, lá ele mantém um charmoso cinema de arte, chamado Nuovo Sacher. Um ponto turístico para quem visita o Largo Asciananghi, próximo ao Rio Tibre.

Em parceria com Valia Santella, Moretti trouxe a história do romancista Eskhol Nevo de Tel Aviv, capital israelense, para a milenar capital italiana. Tudo começa com um acidente de carro. O jovem Andrea (Alessandro Sperduti), embriagado, tenta desviar o carro da grávida Monica (Alba Rohrwacher), mas acaba matando uma mulher desconhecida. O veículo vai parar na sala do apartamento térreo do casal Lucio (Riccardo Scarmarcio) e Sara (Elena Lietti).

Os pais de Andrea, que moram no mesmo prédio (os juízes Dora e Vittorio, interpretados por Margherita Buy e Nanni Moretti) não aguentam mais as aprontações do filho. A mãe até tenta colocar panos quentes. Mas o pai prefere o rigor da lei e nada fará para impedir que o filho seja encarcerado.

Lucio e Sara costumam deixar a filha pequena (de seis anos) com vizinhos, já idosos. O “vovô” anda muito esquecido. Um dia, ao ficar sozinho com a menina, ele a convida a tomar um sorvete, perdem-se e vão parar num parque. Alucinado, o jovem pai é tomado pelo pavor ao encontrar o homem deitado no colo da criança. A filha teria sido abusada pelo velho?

Entra em cena a neta verdadeira do idoso, uma sensual ninfeta de beleza singular, Charlotte (Denise Tantucci). Enquanto isso, Monica sofre de profunda solidão, já que o marido Giorgio (Adriano Giannini) trabalha em outra cidade. Insegura, cuida da filhinha recém-nascida. Engravida de novo e nasce um menino. Segue em sua solidão de “viúva” de marido vivo.

Frustrações, culpas, segredos do passado, posturas de rigor inabalável, sede de vingança, impulsos incontroláveis, tudo se soma dentro das paredes daquela edificação burguesa, formada com apartamentos bem-decorados, gente bem-vestida, sem problemas materiais. Mas tomada por sentimentos conturbados.

Temas políticos, mesmo que como pano de fundo, se apresentarão. Afinal, Moretti, cujo penúltimo filme (o documentário “Santiago, Itália”) refletia sobre a queda de Allende, para buscar as relações dos fatos ocorridos no Chile, em 1973, com a Itália contemporânea, sempre foi um realizador politizado.

Duas personagens de “Tre Piani” sofrerão consequências da vida social e política em suas existências cotidianas. A juíza, ao visitar um centro de acolhimento de imigrantes, irá deparar-se com as bombas de grupos de extrema direita que não querem ver africanos abrigados na Península. A problemática Monica irá misturar realidade e pesadelo ao receber a “visita” do cunhado envolvido em falcatruas e negociatas.

Moretti, porém, não fará um filme pessimista e angustiante. Muito pelo contrário. Há personagens femininas em grande destaque e, em maioria, positivas. São os homens que alimentam rancores e terríveis sentimentos de vingança.

Há, no final da narrativa, um fugaz raio de sol. Aquele “rayito” que os produtores de Fellini imploravam que ele colocasse em seus filmes, para que o público saísse do cinema com uma réstia de esperança, por menor que fosse.

No filme de Moretti essa “réstia de luz” está representada por um tango coletivo, dançado em espaço público, por bailarinos comuns. Gente que ama o ritmo argentino, tão trágico, e com ele sai pelas ruas romanas, seduzindo e encantando os moradores. Inclusive os dos três andares que, por instantes, esquecem seus problemas. Uma bela metáfora para quem foi obrigado, pela pandemia, a passar dois anos praticamente fechado dentro de casa. Ou, ao sair, devia fazê-lo portando máscara, evitando proximidade física e abraços.

 

Tre Piani
Itália, 117 minutos, 2022
Baseado no livro “Three Floors Up”, de Eshkol Nevo
Direção: Nanni Moretti
Elenco: Alba Rohrwacher, Margherita Buy, Denise Tantucci, Elena Lietti, Riccardo Scarmarcio, Alessandro Sperdutti, Adriano Giannini, Stefano Dionisi e Nanni Moreti
Distribuição: Imovision

 

FILMOGRAFIA
Nanni Moretti (Brunico, Itália, 19/08/1953)

1977 – “Io Sono un Autarchio” (S-8 ampliado em 16 mm)
1978 – “Ecce Bombo” (primeiro longa profissional)
1981 – “Sogni D’Oro” (Prêmio em Veneza)
1984 – “Bianca”
1985 – “A Missa Acabou (Prêmio em Berlim)
1989 – “Palombella Rossa”
1990 – “La Cosa” (longa documental)
1994 – “Caro Diário” (primeiro filme lançado comercialmente no Brasil)
1998 – “Abril” (sequencia carreira de Moretti no circuito brasileiro)
2001 – “O Quarto do Filho” (Palma de Ouro + David di Donatello)
2006 – “Crocodilo” (sátira a Silvio Berlusconi)
2011 – “Habemus Papam”
2015 – “Minha Mãe”
2019 – “Santiago, Itália” (documentário)
2020 – “Tre Piani” (“Três Andares”)

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