Ao ver “Pornografia” em Gramado, Barretão comentou: “Era som o que faltava”
Por Maria do Rosário Caetano
A Revista de CINEMA prossegue série de relatos, contendo lembranças ambientadas em festivais ou mostras cinematográficas (brasileiros ou internacionais).
A nona dessas lembranças tem o Festival de Gramado, que em agosto próximo comemora 50 anos, como seu palco. O fato aqui rememorado aconteceu há 30 anos, durante o Governo Collor.
O país vivia uma de suas mais graves crises audiovisuais. Empresas e instituições de fomento e fiscalização do cinema brasileiro (como a Embrafilme e o Concine) haviam sido desmanteladas e a produção caíra a números decepcionantes. A média de 80 longas anuais dera lugar a cinco ou seis filmes, dos quais metade chegava ao circuito exibidor. Uma cinematografia, que nos anos 1970, época de “Dona Flor e seus Dois Maridos”, “Dama do Lotação” e dos filmes dos “Trapalhões”, ocupara um terço de seu mercado interno (33%), vira-se reduzida a menos de 0,5%. Número humilhante, de republiqueta de banana.
Os festivais de Brasília e de Gramado “caçavam produtores e produções a laço”. Não havia comissão de seleção, pois não havia filmes para selecionar. O jeito era torcer para que houvesse no mínimo cinco títulos em condição de serem exibidos. E dar-se por muito satisfeito se houvesse seis. Gramado resolveu assumir perfil internacional, mobilizando um único representante brasileiro. Festejava quando apareciam dois.
Para marcar posição frente a tamanhas dificuldades, agravadas pelo desemprego de muitos artistas e técnicos, Murilo Salles e Sandra Werneck uniram-se, no Rio de Janeiro, e idealizaram “Pornografia”. Escreveram o roteiro juntos, comandaram a encenação (dois atores, Luciana e Gaúcho, fazendo sexo na tela, ao som do Hino Nacional, durante seis minutos), montaram e assinaram a direção. Murilo Salles, fotógrafo de “Dona Flor”, “Eu Te Amo” e “Tabu”, assinou a direção de fotografia. Tudo em bitola profissional, 35 milímetros. Com o filme debaixo do braço, tomaram o rumo da Serra Gaúcha.
No dia em que o sintético curta-metragem seria exibido, forças contrárias se manifestaram. Vozes altissonantes garantiam que a Polícia Federal impediria a sessão por razão técnico-política: “o Hino Nacional não podia ser tocado como trilha sonora de imagens que mostravam ato sexual”. A confusão se formou.
Naquele tempo, nunca é demais lembrar, o povo estava nas ruas. Multidões pediam o impeachment de Fernando Collor de Mello, empossado em março de 1990. O processo de impeachment seria iniciado em 29 de setembro de 1992, algum tempo depois da tumultuada noite gramadiana. E concluído com a renúncia do “caçador de marajás”, em 29 de dezembro. Itamar Franco, o vice-presidente, assumiria o Executivo. E, tão logo possível, lançaria o Edital Resgate do Cinema Brasileiro, com recursos embargados pela gestão anterior.
E, afinal, o que aconteceu no Palácio dos Festivais, na Serra Gaúcha, naquela noite tão confusa? O filme foi ou não foi exibido?
Foi, mas sem som. Ou seja, sem o Hino Nacional. Frente àquele quadro inesperado, o produtor Luiz Carlos Barreto reclamou, ou melhor, constatou, em voz alta, para todo mundo ouvir: “Era som o que faltava!”
A sessão, afinal, fôra muda. Só pudemos assistir às imagens daquele desafiador filme-manifesto, que em outubro seria exibido, na íntegra, na 16ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Depois, no Araribóia Cine, em Niterói. Chegaria ao Portal Curta e muitos jovens o conheceriam. Hoje, é difícil encontrá-lo na internet.
Sandra Werneck e Murilo Salles se, agora, em tempos bolsonáricos, resolverem realizar “Pornografia 2” (ou tentassem exibir o “Pornografia” original), decerto enfrentariam novos e sérios problemas. Afinal, como disseram na época, 30 anos atrás, “realizamos um filme-manifesto, um desabafo contra a execução sumária do cinema brasileiro por vontade de um determinado governo, o de Collor”. E mais: “realizamos uma performance, registramos um relacionamento que não se consuma, externamos nossa indignação”. Hoje, o cinema brasileiro não desfruta de nenhum apreço junto ao atual governo. O moralismo e a censura estão na pauta do dia.
Na Revista de CINEMA, momentos já relembrados nesta série “Memórias de Festivais”, em matérias que podem lidas no banco de textos:
1. A consagração de “llha das Flores”, de Jorge Furtado, no Festival de Gramado de 1989.