Memórias de Festivais

Carmine Coppola regeu Sinfônica de Havana em sessão bleu-blanc-rouge de “Napoleón”

Por Maria do Rosário Caetano

A Revista de CINEMA prossegue, nessa semana, série de relatos, contendo lembranças cinematográficas ambientadas em festivais brasileiros (ou internacionais).

A sexta dessas lembranças tem o Festival do Novo Cinema Latino-Americano de Havana, em Cuba, como cenário. O ano era o de 1988. O maior e mais famoso dos festivais das Américas em tempos de bonança socialista (a crise só chegaria na década seguinte, com o desmonte da URSS) promovia atividades inesquecíveis. Os quase cinco mil espectadores que lotaram o Teatro Karl Marx não se esquecerão, jamais, daquela noite de dezembro, na décima edição do festival habanero.

Na tela: “Napoleón”, o mítico filme de Abel Gance, lançado em 1927. No palco, a Orquestra Sinfônica de Cuba. Na regência, o maestro Carmine Coppola, pai de Francis Ford “Apocalipse Now” Coppola, um dos patrocinadores do derradeiro restauro do clássico ganceano, comandado pela Cinemateca Francesa e BFI (British Film Institute), sob o comando de Kevin Brownlow.

A trilha sonora trazia a assinatura de Carl Davis. Equipamentos de última geração, trazidos pelo cineasta e filho do maestro ítalo-americano, permitiriam projeção em três telas simultâneas, como fizera Abel Gance, no Teatro da Ópera, em Paris, para plateia embevecida com tanta genialidade e invenção. Tudo em bleu-blanc-rouge. As cores da bandeira francesa.

Gance e seus artistas-artífices haviam colorido o filme à mão (por um processo de “tintura tonalizada”). Qual uma pintura. Se o público do Teatro Karl Marx ficou em estado de comoção, imaginemos como ficaram os parisienses que estavam no Teatro da Ópera, em 1927.

Como eu era um dos 5 mil espectadores presentes, posso testemunhar que a emoção foi imensa. Epifânica. Europeus e norte-americanos já haviam visto o “Napoleón” de Gance em muitas versões, com ou sem as três telas (com ou sem o bleu-blanc-rouge). Eu, confesso, só conhecia versão simplificada, sem cores e sem o “aparelho de projeção mágico” trazido por Coppola. E nunca mais reveria o filme em condições tão especiais – com Carmine Coppola (1910-1991) regendo a Sinfônica de Havana, com plateia latino-americana tão significativa (o Teatro Karl Marx é a maior “sala de cinema” que já frequentei) e, principalmente, com a “bandeira” da França colorida à mão para simular pano-de-fundo ao épico napoleônico.

Hoje, com as revisões históricas tão necessárias, pode-se reduzir “Napoleón”, que nasceu como um filme mudo de seis horas, a um canto ao imperialismo francês, representado pelo corso Napoleão Bonaparte (1769-1821). Em meados do século XX – registra Georges Sadoul, em seu “Dicionário de Filmes” –, León Moussinac, que escrevera resumo da trama do filme (um dia após sua primeira exibição em 1927), via em determinado momento do épico, a aparição de “um Bonaparte para aprendizes de fascistas”.

Sejamos, porém – como prega Luis Fernando Verissimo – devotos de Nossa Senhora do Contexto, e fruamos o filme de Gance inserido em seu tempo histórico: as três primeiras décadas do século XX, quando a invenção dava régua e compasso aos criadores. O mesmo e severo Moussinac ponderava em seu texto: “não há em ‘Napoleón’ uma única passagem sem originalidade técnica”. E Sadoul prossegue: “Além do tríptico, as pesquisas sobre câmeras em movimento (no filme) são particularmente originais e impetuosas. No episódio corso, colocou-se atrás de Bonaparte (o ator Albert Dieudonné) uma câmera montada num cavalo a galope e, depois, quando o herói mergulhava no mar, jogou-se uma câmera submarina do alto dos penhascos. Quando esse episódio se confunde com a tempestade que agita a Convenção, prendeu-se uma câmera ao peito do tenor Koubitsky (que interpreta Danton), para transmitir o ritmo de sua respiração enquanto ele cantava a Marselhesa. Outras câmeras transportadas insinuavam-se na multidão dos Convencionais e dos espectadores. Finalmente, fez-se uma tomada de imagens do alto de um balanço, para que a Assembléia reproduzisse o mesmo ritmo do mar revolto e se visse, seguindo as indicações do roteiro, ‘os Girondinos balançarem para bombordo e estibordo’”.

Sadoul ainda contou mais das ousadias dos sete fotógrafos (Kruger, Mundwiller, Burel, Lucas, Roger Hubert, Briquet, Emile Pierre) que, durante dois anos, trabalharam na complexa e conflituosa produção ganceana, bancada pela Gaumont: “novos métodos foram adotados para o baile das vítimas, em que as câmeras volteavam com os bailarinos” e para “o Cerco a Toulon, no qual as câmeras, dentro de balões, foram lançadas ao ar”.

O longevo Abel Gance (1889-1981), que viveu por 92 anos, comandou, em pessoa, muitas remontagens do mais famoso de seus filmes. Georges Sadoul as detalha em precioso verbete em seu “Dicionário de Filmes” (L&PM, 1993). E é dele que transcrevemos o resumo de Moussinac, para relembrarmos a trama do majestoso “Napoleón”, obra que encantou Paris em 1927 (e Havana, em 1988):

“Após um prólogo mostrando Bonaparte criança, em Brienne, o filme começa com a ‘Marselhesa’, cantada nos Cordeliers por Rouget de Lisle e Danton. Depois, vê-se Bonaparte condenado à morte na Córsega por seus compatriotas (perseguição à americana). Num frágil bote, tendo como vela uma bandeira tricolor, ele luta contra o mar revolto, enquanto uma terrível tempestade se abate na mesma hora (simbolismo literário) sobre a Convenção (queda dos Girondinos). O terror. Ditadores populares transformados em fornecedores de pescoços para a guilhotina, com ênfase nas pequenas manias de Robespierre, nas hemoptises de Marat (o dramaturgo Antonin Artaud), na rosa que Saint-Just (o próprio Abel Gance) cheira toda vez que cai o cutelo. Thermidor. Confusão e obscuridade entrelaçadas com os amores de Bonaparte. Ofertas in extremis de Barras em busca de um chefe e os amores de Josefina em busca de um homem…”

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