“A Amiga Genial”, de Elena Ferrante, constitui momento luminoso da ficção seriada

Por Maria do Rosário Caetano

Quem quiser assistir à melhor série (ou ao melhor capítulo) disponível no streaming, deve sintonizar a HBO Plus e fruir o derradeiro episódio da terceira temporada de “A Amiga Genial”, produção inspirada na Tetralogia Napolitana, da (misteriosa) escritora italiana Elena Ferrante.

A série, que havia encantado com sua primeira temporada e suas protagonistas – duas crianças numa Nápoles banhada pelo mar e dilacerada pela pobreza e violência do pós-Guerra –, seguiu os passos de Elena Grecco, a Lenu, e Raffaella Cerullo, a Lila, já adolescentes e com os hormônios em ebulição. Um série muito especial, cativante, complexa, feminina, com diálogos de altíssima qualidade, elenco desconhecido, mas aliciante.

A terceira temporada (cada uma com oito capítulos), chegou ao final em meados deste mês de abril, e nos mostrou Lenu e Lila já mulheres feitas, casadas ou descasadas, com vida laboral (Lila explorada como operária em fábrica de embutidos) ou doméstica (Lenu cuidando de duas filhinhas pequenas, Dede e Elsa).

Lila, a bela e sedutora, transformou-se em assalariada sofrida, vítima de assédio no trabalho, com problemas nervosos e dificuldades para criar o filho. Lenu, formada em Letras pela Universidade de Pisa, inicia carreira de escritora e casa-se com professor de família de intelectuais dos mais respeitados, indo residir em Florença. Sua família, meio abrutalhada, segue em Nápoles. A irmã mais nova vai morar com um integrante da Camorra. Circunstância incômoda que resulta em um dos capítulos mais impactantes da terceira temporada. O sofisticado professor Pietro, filho de intelectuais sofisticados, vê-se obrigado a dormir com esposa e filhas na mansão cafona do “cunhado” mafioso e sua espalhafatosa famiglia. Mas nada é caricato. Nunca.

Nomes de ponta do cinema italiano (caso de Paolo “A Grande Beleza” Sorrentino) envolveram-se com a série, falada em italiano e no dialeto napolitano. A terceira temporada – e o magnífico vigésimo-quarto capítulo – têm tudo a ver com o cineasta Daniele Luchetti. O diretor romano, de 61 anos, conta com pelo menos três de seus 15 filmes bem conhecidos entre os cinéfilos brasileiros – “Meu Irmão é Filho Único”, de 2006, que projetou Riccardo Scamarcio, “Dias Felizes”, de 2013, e “Laços”, convidado inaugural do Festival de Veneza, dois anos atrás, com Alba Rohrwacher brilhando no elenco.

O diálogo da série “A Amiga Genial” com o cinema (o europeu, em especial) é pleno. Com o Neorrealismo, com a Nouvelle Vague, com o cinema de sentimentos complexos de Ingmar Bergman ou de italianos da grandeza de Antonioni e Bertolucci.

E o que fez do capítulo final da terceira temporada dessa série ferrantiana peça de antologia?

Muitas de suas qualidades. A começar por um elenco jovem afiadíssimo, uma criança encantadora (a esperta Dede), uma iluminação de rara beleza e diálogos precisos. Mas o melhor de tudo é a arrebatadora abordagem de uma separação conjugal, tema já por demais explorado pelo cinema, pelo teatro e até pelas telenovelas. Mas revigorado pelo olhar de Elena Ferrante.

Lenu, uma das protagonistas, decide separar-se do marido Pietro Airota (Matteo Cecchi), o professor universitário com quem vive relação confortável, mas previsível, em Florença. Ela decide, enfim, concretizar amor de adolescência por Nino Sarratore (Francesco Serpico), também professor (culto e sensível), que sempre a trocara pela sedutora Lila. Para realizar tal paixão, ela tem que separar-se do marido, apaixonado por ela, e das filhas pequenas.

Pietro, tão fino, culto, de boa família, transforma-se em um macho tóxico e resolve usar as crianças como álibi. O que se vê, então, é um dos momentos mais brilhantes e reveladores da dramaturgia mundial, seja no cinema, no teatro ou na TV. A sequência da chantagem do marido na frente das duas menininhas atônitas é de arrepiar. Alta dramaturgia.

A quarta temporada de “A Amiga Genial” está em preparação e trará Elena encarnada na atriz Alba Rohrwacher, que emprestou sua voz às suaves narrações em off da terceira temporada. No plano final do vigésimo-quarto episódio, Lenu (com um visual a la Monica Vitti) dirige-se ao lavabo do avião que a levará ao sonhado paraíso e mira o espelho. Nele, vê a imagem refletida de seu rosto, em fusão com o de Alba Rohrwacher, a Lenu mais vivida que virá.

Quem leu a Tetralogia Napolitana de Elena Ferrante – e milhões de pessoas, pelos cinco continentes, o fizeram –, sabe tratar-se da história da amizade entre Elena Greco, a Lenu, e Rafaella Cerullo, a Lila, da infância à velhice. A primeira temporada televisiva foi dirigida por Saverio Costanzo, e resultou de adaptação do primeiro volume, “A Amiga Genial”.

Os oito episódios iniciais continuam disponíveis na HBO Max e mostram a amizade das meninas, nascidas em 1944, num subúrbio pobre de Nápoles, numa Itália arrasada pela derrota na Segunda Guerra. Elas vivem amizade feita de cumplicidade, mas também de rivalidade.

Na segunda temporada, as adolescentes Lenu e Lila despertam para o sexo. Lila é bela, sedutora e atrai todos os olhares. Conquista os rapazes e Lenu, com seus óculos e cara de menina estudiosa, vive mergulhada nos livros e acaba escanteada pelos rapazes (em especial por Nino, o Don Juan do grupo, por quem sente imensa atração).

Lila acabará se casando com rapaz de família (os Solara) metida em negócios escusos com a Camorra. Desfrutará de ambiente endinheirado, mas machista e medíocre intelectualmente. Lenu, infeliz no amor, seguirá brilhando em sua carreira escolar e ganhará bolsa para estudar em Pisa, no norte da Itália. Oportunidade para Elena Ferrante mostrar a dualidade entre o Norte rico e o Sul atrasado (e desprezado).

O norte desenvolvido sente-se superior ao sul subdesenvolvido. Há toda uma questão histórica e econômica nessa dualidade, implicando preconceitos e ressentimentos regionais. Sendo napolitana, a escritora dará ênfase ao ponto de vista “meridional”, ou seja, ao Sul vítima de preconceitos e, por isso, marcado por ressentimentos.

Em Pisa, Lenu terá que neutralizar o estigma do sotaque (afinal, ela fala o dialeto napolitano). Conseguirá fazê-lo com sucesso. Já Lila resolverá permanecer na sua Nápoles natal. Mas a relação com os que a cercam será das mais conflituosas. Com o marido, com os parentes, com os membros da Camorra local, força dominante no bairro. Ela, porém, não baixará o facho. Seguirá rebelde, brigona. E enfrentará, inclusive, a amiga Lenu, apontando suas contradições. Mostrando que toda amizade é feita de complexa mistura de amor e ódio.

Lenu e Lila ficam longos períodos sem se verem mas, quando se reencontram, abraçam-se felizes. Inevitavelmente, porém, acabam por se desentenderem. Até disputam um namorado (o belo e cobiçado Nino) em ensolaradas férias de verão na ilha de Ischia (um dos melhores episódios da segunda temporada).

A Tetralogia Napolitana de Elena Ferrante compõe-se, além de “A Amiga Genial” (volume 1), com “História do Novo Sobrenome” (2), “História de Quem Vai e de Quem Fica” (3) e “História da Menina Perdida” (4).

 

My Brilliant Friend | A Amiga Genial
Três temporadas disponíveis na HBO Max
Cada temporada tem oito capítulos (em média com 50 a 70 minutos cada)
Roteiro: Elena Ferrante, Francesco Piccolo, Laura Paolucci e Saverio Costazzo
Elenco: Margherita Mazzuco (Elena Grecco, a Lenu), Gaia Girace (Raffaella Cerullo, a Lila), Francesco Serpico (Nino Sarratore), Matteo Cecchi (Pietro Airota), Alessio Gallo (Michele Solara), Anna Rita Vitolo (Immacolata Grecco), Luca Gallone (Vittorio Grecco)
Fotografia: Ivan Casalgrande
Produção: Guido De Laurentis e Paolo Sorrentino, para RAI e HBO

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