“Kobra” desenha auto-retrato do adolescente periférico que conquistou os muros do mundo

Por Maria do Rosário Caetano

“Kobra Auto Retrato”, oitavo longa-metragem da realizadora paulistana Lina Chamie, chega aos cinemas nessa quinta-feira, 17 de novembro, para revelar muito da vida pessoal e artística de Carlos Eduardo Fernandes, nascido há 47 anos no periférico Jardim Martinica, zona sul da capital paulista. E que somou ao seu nome civil apelido dos tempos de escola (o cara é “cobra”, ou seja, um craque no desenho).

No tempo presente, o muralista Eduardo Kobra (com K) é nome conhecido nacional e internacionalmente, com obras espalhadas por diversas cidades brasileiras e por paredes e muros de países como EUA, Rússia, França, Inglaterra, Itália, Grécia, Suécia, Holanda e Malawi, na África. São mais de 30 nações.

Quem acompanhou o Festival do Rio em setembro e, no mês seguinte, a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo pôde fruir sessões especiais de “Kobra Auto Retrato”. O mesmo aconteceu em Nova York, onde o filme teve sua pré-estreia internacional.

Em São Paulo, cidade natal de Kobra, seus painéis fazem parte da paisagem urbana. Primeiro, ele cativou a todos ao criar a série “Muro das Memórias”, com a qual ressignificou fotos antigas da velha metrópole. Depois retratou personalidades como Paulo Freire, Oscar Niemeyer, Chico Buarque e Tom Zé (no Brasil), Nelson Mandela (num hospital mantido no Malawi, pela cantora Madonna), Anne Frank, na Holanda, Madre Tereza de Calcutá, Gandhi, Michael Jackson e David Bowie, nos EUA. Sem falar numa bailarina, nas redondezas do Teatro Bolshoi moscovita. No Rio de Janeiro, pintou o épico “Mural das Etnias” (no qual desenhou os povos formadores da gente brasileira).

Para a Mostra Internacional de Cinema, Kobra criou um delicado e sedutor  “poema visual”: uma menina de vestes coloridas que tenta alcançar a lua mais famosa do cinema, a do diretor-e-mágico francês George Méliès (“Viagem à Lua”, 1902). Autor do cartaz, capa de catálogo e vinheta do maior festival do país, Kobra tornou-se familiar ao meio cinéfilo paulistano. E provocou suspiros emocionados. Afinal, o público cativo da Mostra também gostaria de alcançar a lua de celuloide ‘meliesiana’. O auto-retrato de Kobra teve sessões no Vão Livre do Masp (Museu de Arte de São Paulo) e em cinema de um CEU (Centro de Ensino Unificado), na periferia.

Lina Chamie, realizadora de três ficções (“Tônica Dominante”, “Via Láctea” e “Os Amigos”), entregou-se com tamanha devoção ao auto-retrato do artista quando jovem, que, além da direção, desempenhou as funções de roteirista, montadora, editora de som e produtora (nessa função, em parceria com Vinícius Pardinho). Para fotografar o documentário convocou o craque Lauro Escorel, diretor de fotografia de “São Bernardo”, de Leon Hirszman, e autor do obrigatório “Fotografação”.

As primeiras imagens do Kobra documental  nos induzem ao engano. Com imagem desanimadora, ele nos conta que é portador de gravíssima insônia. Desenha retrato cruel de sua infância e adolescência no periférico Jardim Martinica. Viu amigos serem presos pela Polícia quando pichavam espaços públicos. Outros, viu morrerem a seu lado. Furtou latas de spray com colegas pichadores. Pintou paredes de sua modesta casa para exercitar sua febre pelo desenho.

Os pais não gostavam das companhias do adolescente, nem de seu pouco interesse pela escola. Menos ainda de sua trajetória como pichador. Quando contava 17 anos, pai e mãe anunciaram a “boa nova”. Haviam arrumado uma casa que servisse de lar ao filho rebelde. Que se virasse para pagar o aluguel e se manter. Com eles, o rapazinho não deveria continuar morando. Relato, convenhamos, dos mais dolorosos.

A insônia do muralista serviu de inspiração para Lina Chamie. Ela fez de uma noite de seu personagem insone o tempo ideal para colher lembranças e confissões dele. Kobra fala sem arroubos retóricos. É econômico em sua narrativa, que desenha sem as cores vivas e arrebatadoras de suas obras. Ao final de 84 minutos de conversas, imagens e música, saberemos que a vida adulta de Eduardo Kobra foi (e continua sendo) de êxito e muitas alegrias. Que a expectativa, portanto, de um filme sofrido não se consumaria.

Até chegar ao final feliz do auto-retrato, a polivalente Lina Chamie — também musicista — constrói narrativa de forte visualidade e elaboradas sonoridades. O trabalho de som do documentário é primoroso. Música clássica, ruídos e um rap dos Racionais MC’s (cantado por Mano Brown) somam-se em tecido único. Chamam atenção, também, os efeitos visuais aplicados às imagens do próprio Kobra.

O “menino enjeitado” pelos pais acaba revelando-se um pai amoroso, um companheiro dedicado à jovem esposa e um artista que ama seu ofício acima de tudo. E que cita o mais famoso dos muralistas do mundo – o mexicano Diego Rivera (que ele amalgamou a Frida Kahlo em bela composição) – para destacar a importância dessa arte que não se fecha em residências privadas, galerias, nem museus. Sendo arte dos muros, das paredes (baixas ou de prédios altos) – arte de rua enfim – ela é, por natureza, popular e democrática. Está ao alcance de todos os olhares sensíveis e interessados.

 

Kobra Auto Retrato | Kobra Self Portrait
Documentário, Brasil, 84 minutos, 2022
Direção, roteiro, montagem e edição de som: Lina Chamie
Fotografia: Lauro Escorel
Distribuição: Imovision

 

FILMOGRAFIA
Lina Chamie (São Paulo/SP – 13 de outubro de 1961)

2022 – “ Kobra Auto Retrato” (doc)
2019 – “Santos de Todos os Gols” (doc)
2016 – “Dorina: Olhar para o Mundo” (doc)
2014 – “Os Amigos” (ficção)
2013 – “São Silvestre” (doc)
2012 – “Santos 100 Anos de Futebol Arte” (doc)
2007 – “Via Láctea” (ficção)
2001 – “Tônica Dominante” (ficção)

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