O martírio da Falconetti de Dreyer oficiado dentro da Catedral de Havana

Por Maria do Rosário Caetano

A Revista de CINEMA prossegue sua série de relatos, contendo lembranças cinematográficas ambientadas em festivais ou mostras brasileiros (ou internacionais).

A décima-quarta dessas lembranças tem o Festival do Novo Cinema Latino-Americano de Havana, que em dezembro realiza sua edição de número 42, como cenário. Já relembramos aqui a edição de 1988, quando o maestro Carmine Coppola, pai do diretor de “Apocalipse Now”, regeu a Sinfônica cubana em sessão bleu-blanc-rouge do “Napoleon”, de Abel Gance, no Teatro Karl Marx, de cinco mil lugares.

O espaço hoje evocado é bem diferente – a Catedral de Havana, localizada no centro histórico da cidade, templo católico de feitio colonial, herança da arquitetura espanhola. O ano era o de 1996. O maior e mais famoso dos festivais das Américas se recuperava de sua crise mais aguda, aliás, a única que o evento conhecera até então.

O festival cubano fora criado em 1979 para servir de vitrine ao que de melhor se fazia no audiovisual da América Latina. O primeiro longa vencedor fora o brasileiro “Coronel Delmiro Gouveia”, de Geraldo Sarno. Nos anos 1980, a festa cinematográfica cubana conheceria seu esplendor. Em 1984, o Brasil causou tamanha sensação, que venceu nas categorias melhor ficção, com “Memórias do Cárcere”, de Nelson Pereira dos Santos, melhor documentário para “Cabra Marcado para Morrer”, de Eduardo Coutinho, cabendo a “Jango”, de Silvio Tendler, o Prêmio Especial do Júri.

Com a queda do Muro de Berlim e a unificação das Alemanhas, o fim das “democracias populares” do Leste Europeu e, principalmente, e o desmonte da União Soviética, a situação de Cuba tornou-se trágica. Sem seus tradicionais parceiros comerciais, a Ilha viu-se, de um dia para o outro, sem fornecedores de petróleo, sem negativo de película que chegava da Alemanha Oriental, sem insumos básicos. “Balseros” fugiam para Miami, nos EUA. A situação era caótica, os “apagões” se multiplicavam. Mesmo assim, o festival não sofreu solução de continuidade.

A produção cubana (um país de apenas dez milhões de habitantes) somava média de oito longas de ficção por ano, dezenas de documentários de curta, média e longa duração. A produção para TV era também das mais significativas. Mas com a crise econômica, o chamado “Período Especial”, a produção ficcional caiu para um (no máximo dois) longa-metragem. Os anos de maiores dificuldades foram de 1991 a 1994.

Em 1995, data do Centenário do Cinema, o festival e o país voltavam a respirar. No campo cultural, a solidariedade internacional seguia firme. E o Governo tornava-se mais tolerante em alguns aspectos. Inclusive no campo religioso. A Igreja Católica abriu, então, as portas da Catedral de Havana para uma sessão de “O Martírio de Joana D’Arc”, de Carl Dreyer (1928). Também conhecido como “A Paixão de Joana D’Arc” ou “O Processo de Joana D’Arc”.

O filme, apresentado no mais famoso templo religioso de Cuba, fora proibido pelo Arcebispo de Paris, quando tivera sua primeira exibição pública na capital francesa, em 1928. Mas acabou conquistando o mundo e transformando-se numa das mais festejadas obras-primas da história do cinema.

A atriz de teatro Marie Falconetti, em sua estreia no cinema, seria, para o todo e o sempre, o sublime rosto de Joana D’Arc. Entre os tribunal de inquisidores estariam Antonin Artaud, Michel Simon, Sylvain, Eugène Berley, Maurice Schutz, Jean d’Yd. Décadas depois, em “Viver a Vida”, Jean-Luc Godard faria seu tributo ao filme de Dreyer.

O diretor dinamarquês e seu co-roteirista Joseph Delteil basearam-se, ao escrever a narrativa do filme, em minutas autênticas do processo que condenou Joana D’Arc à fogueira. Concentraram a ação num único dia. Julgamento e morte divididos em três partes. Na primeira, instala-se o tribunal. Travellings apresentam os juízes e revelam o espaço físico. Na segunda, dá-se o julgamento, a condenação e a preparação do suplício (em grandes planos, com raros movimentos de câmera, objetos têm mais destaque que cenários). Na última parte, dá-se a caminhada rumo à fogueira, na Praça do Mercado, onde se vê grande figuração. Joana é, então, supliciada.

A Catedral de Havana estava lotada. Os bispos e padres (não eram muitos), com suas indumentárias eclesiásticas, estavam sentados em duas primeiras fileiras dos lados direito e esquerdo. Atrás, jornalistas e convidados do festival. A projeção foi perfeita. O filme brilhava na tela, as lágrimas banhavam o rosto de Falconetti. A sequência em que seus cabelos são cortados rente ao couro cabeludo emocionavam não só a ela, mas a todos, passados quase 70 anos (Dreyer filmou nos arredores de Paris, em terreno situado entre Montrouge e Petit-Clamart, de maio a outubro de 1927).

O silêncio era total. Os religiosos prestavam imensa atenção às imagens e às cartelas que narravam a história do iníquo processo que condenou Joana à fogueira (Dreyer sonhou fazer um filme falado, mas não dispôs de tecnologia satisfatória para tamanha empreitada naquele momento, em solo francês).

Quando a sessão terminou, os religiosos cubanos saíram em silêncio. Jornalistas e convidados do festival deixaram a Catedral e, ao ar livre, no barulhento pátio externo, reuniram-se em pequenos grupos para comentar a epifania vivida naquele espaço. Afinal, nunca haviam visto o filme de Dreyer, que arrancara tantas lágrimas da prostituta Naná (Anna Karina), dentro de verdadeiro (e tão belo) templo. Experiência, convenhamos, para não se esquecer jamais.

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