Sérgio Cabrera, ex-guarda maoísta e ex-guerrilheiro na selva colombiana, venceu a primeira edição internacional do Festival de Gramado

Foto: Sérgio Cabrera em Gramado © Paulo Cabral

Por Maria do Rosário Caetano

A Revista de CINEMA prossegue em sua série de relatos, que somam lembranças cinematográficas ambientadas em festivais brasileiros (ou internacionais).

A vigésima-terceira dessas lembranças tem a edição do Festival de Gramado de 1992 como cenário. E um inusitado vencedor – Sérgio Cabrera, ex-guarda vermelho de Mao Tsé-Tung e ex-guerrilheiro, integrante do Partido Comunista Marxista-Leninista Pensamento Mao, com atuação na selva colombiana. Em 1969, aos 19 anos, ele tornou-se um dos integrantes do EPL (Exército Popular de Libertação), uma dissidência das FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia).

Sérgio chegaria a Gramado duas décadas depois, com seu primeiro longa-metragem – “Técnicas de Duelo: Una Questión de Honor”. E ganharia o Troféu Kikito de melhor filme. E o prêmio da Crítica.

1992, o ano da vigésima edição do festival gaúcho, datou a internacionalização de competição que fôra formatada, até então, para filmes brasileiros. Porém, com a política de terra arrasada do Governo Collor, não havia produção anual que ultrapassasse a modesta quantia de seis filmes. Faltava, portanto, matéria-prima para suprir as necessidades dos festivais de Brasília, o mais antigo, e o de Gramado, o mais badalado.

A competição candanga continuou caçando filmes a laço. O que aparecesse pela frente era “selecionado”. Houve ano em que filme não-finalizado (e captado em vídeo, caso de “Fronteira sem Destino”, do cineasta paranaense Talício Cirino) entrou na lista dos escolhidos do festival brasiliense. Como não houve tempo hábil para a necessária transferência ao 35 milímetros, único formato exibido pelo Cine Brasília, o número de concorrentes foi reduzido de seis para cinco.

Para não ser obrigado a passar por tal “saia justa”, Gramado ampliou seu alcance geográfico à produção cinematográfica de países latinos. E foi aí que, no novo formato, escolheu o primeiro longa-metragem de Sergio Cabrera para sua competição. Escolheu, também, entre outros, “Tacones Lejanos” (“De Saltos Altos”), de Pedro Almodóvar, que se faria representar pela atriz Marisa Paredes. Ela levou para ele, em Madri, o troféu Kikito de melhor diretor.

Em seu primeiro longa-metragem, Cabrera mostrava inusitado duelo, enfrentamento tão recorrente nos western (de Hollywood, ou spaghetti). Na sua trama, o duelo antagonizava o professor Albarracín (Frank Ramírez) e o açougueiro Oquendo (Humberto Dorado) na Colômbia dos anos 1950. Os dois viviam num calmo povoado próximo à Cordilheira dos Andes. Mas a calmaria seria interrompida por desentendimento entre estes dois amigos tão próximos e, além do mais, companheiros de causas políticas.

E o que os separou, Albarracín e Oquendo, a ponto de se enfrentarem em um duelo? O amor pela mesma mulher, a bela Miriam (Florinda Lemaitre).

No dia seguinte à projeção de “Técnicas de Duelo”, no telão do Palácio dos Festivais de Gramado, o cineasta dividiu-se em dezenas de entrevistas. Quando fui conversar com ele, no amplo e aprazível Hotel Serrano, nada sabia de sua trajetória, só que tinha 42 anos e curioso visual: um comportado rabo de cavalo, pele clara e olhos verdes. Para a imprensa especializada, que cobria o festival, ele e seu agitado passado compunham imensa incógnita.

No começo da conversa, Sergio Cabrera resumiu sua vida pregressa. Lembrou os tempos de sua adolescência vivida na China de Mao Tsé-Tung, junto com os pais (os atores Fausto Cabrera e Luz Elena Cárdenas) e a irmã Sol Marianella Cabrera Cárdenas. E mais: contou que fora, por quase quatro anos, guerrilheiro do Exército Nacional de Libertação (ENL), grupo de orientação maoísta, criado em 1967. Embrenhara-se na selva (e regiões montanhosas) de seu país, para a guerra de guerrilhas. Afinal, ele a irmã, dois anos mais nova, haviam se preparado na China. Os pais atuavam na “base urbana” do ELN, ajudando as ações da guerrilha rural.

Confesso que fiquei surpresa. Nunca vira um ex-guarda vermelho e ex-guerrilheiro dirigindo um longa-metragem. Mas, feita a rememoração resumida de seu passado, Cabrera deixou claro o quão distante estava dos anos da luta armada. E o fez, claro, ao responder à primeira pergunta que formulei, depois do espanto:

— O que levou um ex-guerrilheiro ao cinema?

Sergio Cabrera respondeu, sereno: “A descrença na solução armada. Hoje sou um pacifista. Meu filme, ‘Técnicas de Duelo’, não acredita na violência. Ao contrário, prega o diálogo. Minha experiência como guerrilheiro e integrante do Exército Nacional de Libertação, durante quatro anos, serviu para que hoje eu acredite que a violência gera violência. Fui guerrilheiro no campo e minha mãe na cidade. Ela foi presa e torturada. Hoje, a Colômbia vive, como poucos países, o processo da violência, do narcotráfico. Eu, que conheço a violência por dentro, senti necessidade de rever minha posição.

Por que relembrar, nesse momento, passados mais de 30 anos, a história do cineasta que fôra guarda vermelho e guerrilheiro?

A razão é das mais justas: a Companhia das Letras acaba de lançar “Olhar para Trás” (“Volver la Vista Atrás”), romance de Juan Gabriel Vásquez, escritor colombiano que fez jus a elogios do peruano Mario Vargas Llosa e do francês Emmanuel Carrère.

Trata-se de livro de substantivas 432 páginas, ilustrado com fotografias históricas e sólida tradução de Joca Reiners Terron (também escritor). O que veremos na longa narrativa é a versão “ficcional” da vida de Sergio Cabrera, de seus pais Fausto e Elena e de sua irmã Marianella. “Obra de ficção” – esclarecerá Juan Gabriel Vázquez –, na qual “não há episódios imaginários”. Como diria o francês Patrick Deville, ao definir outra narrativa de alma latino-americana, “Viva!”, um “romance sem ficção”.

Como coadjuvantes de “Olhar para Trás” estarão os avós maternos do guerrilheiro-cineasta (Dom Emilio e esposa), burgueses nascidos em Medelín; a família britânica Crook, com a qual os Cabrera conviveram em Pequim (o velho David Crook lutou nas Brigadas Internacionais durante a Guerra Civil Espanhola; seu filho Carl namorou Marianella), além de comandantes da guerrilha, caso de Armando e Fernando, e de guerrilheiros, como Guillermo, que viria a se tornar cunhado de Sérgio.

Como “figurante de luxo” encontraremos o “holandês voador”, Joris Ivens (1898-1989) – Sérgio colaborou com o grande documentarista europeu durante as filmagens de “Como Yukong Moveu as Montanhas”, realizadas em Pequim, exercendo a modesta função de tradutor do chinês para o francês. Em solidariedade, Ivens e sua companheira Marceline Loridan tudo fariam para conseguir vaga para o jovem colombiano no IDHEC (Instituto de Altos Estudos Cinematográficos, de Paris). Como Cabrera não preenchia os pré-requisitos acadêmicos exigidos pela escola francesa, o diretor de “Terra de Espanha”, “História do Vento” e de um dos episódios de “Longe do Vietnã”, conseguiria recomendá-lo para estudos em escola londrina, na Grã-Bretanha.

Outro grande e influente artista ganhará inúmeras citações neste romance tão singular: o alemão Bertold Brecht (1898-1956), por quem Fausto Cabrera, o pai-ator de Sérgio, era apaixonado. Aliás, fôra numa versão televisiva de “O Espião”, texto brechtiano, que o menino de Medelín faria sua estreia como “ator”. O pai, que dirigia o núcleo de teledramaturgia da emissora colombiana, não se opôs que o diretor Santiago García escalasse Sérgio, aos dez anos, para interpretar um menino, uniformizado e com a suástica nazista no braço, suspeito de ter delatado os pais.

Só a zelosa Luz Elena arrepiou-se ao saber que o filho ostentaria tão terrível figurino. Fez questão de conversar com o primogênito sobre o que tudo aquilo significava. E deu sua permissão. Na página 83 do “romance” de Juan Gabriel Vásquez veremos o garoto Sérgio com o uniforme da Juventude Nazista.

E não podemos esquecer da presença de Fernando Botero, o artista plástico de Medelín, amigo de Fausto Cabrera. Os dois protagonizaram, na TV colombiana, programa em que o pai de Sérgio declamava versos, enquanto Botero desenhava. Ao vivo.

A Espanha, a República Dominicana, a Colômbia e a China serão os principais cenários do romance. A Espanha, por ser a terra natal de Fausto Cabrera, filho e sobrinho de militantes da causa Republicana (Dom Domingo e o Tio Felipe), que tiveram que exilar-se quando os falangistas de Francisco Franco triunfaram na Guerra Civil (1936-1939). Foi parar na América Central, em terra dominicana, onde dedicou-se à pesca rudimentar e ao cultivo do amendoim. Depois, sonhando ser ator, Fausto migraria para a Colômbia. Primeiro para a “cinzenta” Bogotá. Depois para a “aprazível” Medelín, onde se casaria com a bela e burguesa Luz Elena. Onde nasceriam os dois filhos do casal, Sérgio e Marianella.

A Cinemateca de Barcelona será, também, um dos principais cenários de “Olhar para Trás”. Em 2019, a instituição promoveu ampla mostra retrospectiva dos filmes de Sérgio Cabrera – além de “Técnicas de Duelo”, foram exibidos “A Estratégia do Caracol”, o mais festejado de seus sete longas ficcionais, a comédia “Golpe de Estádio” (trégua entre guerrilheiros para assistir, na Copa de 1994 e em precário aparelho de TV, a jogo entre as seleções da Colômbia e Argentina), “Llona Llega Con La Lluvia”, “Aguillas no Cazan Moscas”, “Perder es Questión de Método” e “Todos se Van”.

O cineasta estava na Península Ibérica, prontinho para os compromissos com a Retrospectiva catalã, quando chegou a notícia da morte do pai, protagonista de “A Estratégia do Caracol”, já nonagenário. Disposto a reencontrar o filho espanhol, Raúl (nome de Sérgio na guerrilha), a reconquistar a terceira (e amada) esposa portuguesa (Sílvia Jardim Soares, mãe de sua filha caçula) e a debater seus filmes com o público barcelonês, Sérgio não regressou a Bogotá, onde o pai seria cremado. Entendeu que já brigara muito com Fausto Cabrera, que haviam feito vários filmes juntos, vivido dias febris em duas temporadas na China, compartilhado a militância no Partido Comunista Marxista-Leninista Pensamento Mao. Enfim, haviam experimentado vida turbulenta e intensa. Agora, se faria representar, no ritual da cremação, pela irmã Marianella. Que também vivera às turras com o pai. Um homem temperamental, dedicado, com igual intensidade, à arte e à política. Vivera longos 92 anos.

Cabrera (esq.) apresentando suas credenciais a Xi Jinping, presidente da China

Além de recomendar a leitura do livro, tão bem traduzido por Terron (micro-reparo – o filme que Gramado premiou intitula-se “Técnicas de Duelo”, não “Técnicas de Luto”, página 425), vale lembrar que Sérgio Cabrera vive, há dois anos, sua terceira temporada  chinesa. Agora, na condição de Embaixador da Colômbia, acreditado no país de Xi Jinping, por escolha do presidente Gustavo Petro.

A China que o ex-guerrilheiro encontrou, dois anos atrás, quando assumiu o posto, estava muito distante do país que buscava, nos anos 1960 e 70, sob o comando de Mao Tsé-Tung, superar as mazelas do subdesenvolvimento. E que fermentava o imaginário da insurgência, pela guerrilha rural, em cabeças de jovens ocidentais.

O país asiático onde Sérgio Cabrera representa a Colômbia transformou-se na segunda potência econômica do mundo. E vem se desenvolvendo cada vez mais, dentro do se convencionou chamar de “Capitalismo de Estado”. No lugar de casas baixas, o ex-guarda vermelho de “Maô, Maô, Maô” (“A Chinesa”, de Godard) encontrou imensos edifícios envidraçados, tecnologia de ponta e um povo (1,3 bilhão de chineses) que trabalha com fervor e sem descanso.

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