Cannes assistiu e festejou “Yol”, filme dirigido do cárcere

Por Maria do Rosário Caetano

A Revista de CINEMA prossegue série de relatos, contendo lembranças ambientadas em festivais ou mostras cinematográficas (brasileiros ou internacionais).

A décima-primeira destas lembranças tem o Festival de Cannes de 1982 como cenário e um cineasta turco, de origem curda – Yilmaz Guney – como personagem central. Há exatos 40 anos, o badalado balneário francês se engalanava para mais uma edição do mais famoso festival de cinema do mundo.

Entre os concorrentes, grandes nomes do cinema europeu e norte-americano. Constantin Costa-Gavras, de nacionalidade greco-francesa, seguia seu caminho pelo cinema de cunho social e denúncia política e com astros internacionais. Desta vez, Jack Lemmon e Sissy Spacek. Depois do sucesso de “Z’ (sobre a ditadura grega) e “Estado de Sítio” (sobre uma ditadura latino-americana), ele voltava os olhos para o Chile de Augusto Pinochet. Chegava com um tema forte — o de um jornalista, cidadão estadunidense, que desaparecia num país latino-americano, governado por ditador-militar. Após o desaparecimento, o pai desembarcava nos EUA, para ajudar a nora a buscar o companheiro. Até descobrirem, para espanto do personagem de Jack Lemmon, que o sumiço do filho fazia parte de conspiração acobertada pelos EUA.

Na disputa pela Palma de Ouro, havia outros pesos-pesados: os italianos Michelangelo Antonioni (“Identificação de uma Mulher”), Paolo e Vittorio Taviani (“A Noite de São Lourenço”), e Ettore Scola (“Casanova e a Revolução”), o francês Godard (“Paixão”), os alemães Werner Herzog, com “FitzCarraldo”, Werner Sroether (“Dia dos Idiotas”) e Wim Wenders (“Hammet”), o polonês Jerzy Skolimowski (“Vivendo Cada Momento”), etc. Eram 15 filmes na disputa.

Da Turquia chegava “Yol” (Caminho), um drama social que se fazia representar por parte de sua equipe, mas não por seu diretor, que perdera a cidadania turca. Yilmaz Guney, socialista assumido, aliás, dirigira o filme da cela de uma prisão. Mandava ordens precisas ao assistente, Serif Goren, aos técnicos e atores. E, o pior, o cineasta andava doente. Nascido em abril de 1937, o diretor turco tinha 45 anos e representava um poderoso símbolo de resistência para os exilados de seu país eurasiano, aqueles que viviam na França. Dezenas deles tomaram o rumo de Cannes, para acompanhar a sessão do filme. E, enquanto não chegava a hora das belas histórias de “Yol” baterem na tela, eles somavam energia para um grande protesto. O mundo ainda vivia a Guerra Fria, polarizado entre EUA e URSS.

No dia combinado, turcas e turcos, vestidos a caráter, ou seja, com os trajes típicos da grande Nação islâmica, promoveram ruidosa passeata no calçadão da Côte d’Azur, apinhado de fotógrafos e starlets em busca de alguns minutos de fama. Exilados protestavam em solo estrangeiro contra o governo que encarcerara o diretor de “Yol”. Quando o filme foi exibido, a emoção tomou conta de todos. O que se vira na tela era de grande beleza e não dependia da trágica sina de seu realizador para ganhar algum troféu. Se o júri o escolhesse, seria por merecimento.

A imprensa francesa dedicou espaços generosos para analisar o filme dirigido do cárcere. As cinco histórias narradas por Yilmaz Guney (e seu braço em liberdade Serif Goren) têm presidiários como protagonistas. Eles são autorizados a visitar suas famílias durante um final de semana. As distâncias, porém, são longas e o tempo curto. O país vive sob governo ditatorial-militar. A lei permite que o marido mate a esposa adúltera.

Um dos episódios se passa entre os curdos. No mais pungente deles – aquele que causa funda emoção no público feminino –, um casal pode morrer congelado na neve. Para aquecer a companheira, o homem bate nela com todas as suas forças. Não se trata de um espancamento, mas de desespero para impedir que ela congele. A imprensa europeia abordou, também, mas sem grande detalhamento, as condições de saúde de Yilmaz Guney.

Antes de seguir na saga turca de “Yol”, vale lembrar que o Brasil participava de Cannes em três mostras paralelas. “Índia, a Filha do Sol”, de Fábio Barreto, estava na Quinzena de Realizadores. Ana Carolina mostrava “Das Tripas Coração” no segmento Un Certain Régard. E “Prá Frente, Brasil”, de Roberto Farias, integrava a Jornada pela Liberdade de Expressão e Manifestação, segmento criado para dar visibilidade a filmes que sofriam sob o rigor censório de ditaduras latino-americanas e asiáticas.

No dia da entrega da Palma de Ouro, o longa-metragem turco-curdo, comandado do cárcere, dividiu o prêmio principal com “Missing” (“Desaparecido, o Grande Mistério”), de Costa-Gavras. Ganhou, ainda, o Prêmio Fipresci da Crítica Internacional. Ao italiano “A Noite de São Lourenço” coube o Grande Prêmio do Júri. Antonioni ficou com o Prêmio do Júri “pela 35ª edição da festa cannoise”. Herzog foi eleito o melhor diretor. Jack Lemmon, o melhor ator.

Turcas e turcos, claro, festejaram a glória de ver “Yol” laureado com uma Palma de Ouro. O filme, um drama social de densa poesia, foi comprado por diversos países, inclusive pelo Brasil. Aqui foi lançado nos cinemas e em vídeo (mais tarde em DVD), despertando interesse entre cinéfilos. Mas as glórias (e plateias) ficaram todas com o badalado “Missing”.

A Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, então em suas primeiras edições (a sexta), deu destaque ao “Caminho” de Yilmaz Guney. Apátrida, o cineasta viu “Yol” candidatar-se ao Oscar de melhor filme estrangeiro (em 1983) pela Suíça! Com o sucesso em Cannes, ele conseguiu realizar, fora do cárcere, mais um filme (“O Muro”, 1983), uma sombra se comparado ao impactante “Yol”.

O que a imprensa europeia não contara em detalhes, era que um câncer encurtava, inexoravelmente, os dias do ator, escritor, ativista e cineasta turco-curdo. Ele morreria dois anos e quatro meses (em setembro de 1984) depois do triunfo de “Yol” em Cannes. Tinha apenas 47 anos.

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