Belmonte traz “filme de gênero” a Gramado e filha de Roberto Farias desenha retrato amoroso do pai

Foto: Equipe do longa-metragem “Uma Família Feliz” © Edison Vara/Agência Pressphoto

Por Maria do Rosário Caetano, de Gramado-RS

O cineasta José Eduardo Belmonte, que trabalha como “remador de Ben-Hur”, emplacou, por dois anos consecutivos, vaga na principal mostra competitiva do Festival de Gramado. Ano passado, com o épico “O Pastor e o Guerrilheiro”. Esse ano, com o thriller “Uma Família Feliz”, roteirizado por Raphael Montes e protagonizado por Grazi Massafera e Reynaldo Gianecchini. A passagem da dupla de atores pela passarela vermelha que leva ao Palácio dos Festivais levou a galera do sereno ao delírio.

Ao subir ao palco, acompanhado de seu elenco, roteirista, produtora e equipe técnica, Belmonte preveniu o público: ele trazia “um filme de gênero, um thriller”, à competição. Não uma obra autoral, como as que costumam causar frisson em festivais.

O diálogo com o cinema de gênero foi reforçado pelo escritor Raphael Montes, aficcionado por narrativas policiais e de horror. Grazi e Gianecchini, em suas intervenções, avisaram que seus personagens não eram o que aparentavam. Neles sobrepunham-se camadas e surpresas.

Nenhum preconceito contra filmes de gênero em competições como as do Festival de Gramado, que na maior parte de suas 51 edições, pautou-se pela pluralidade. Sempre somando filmes de astros televisivos e narrativas clássicas a títulos mais autorais (como “Sargento Getúlio”, de Hermano Penna, e “O Som ao Redor”, de Kleber Mendonça”). O problema é que “Uma Família Feliz” reúne parcas qualidades.

A ideia que o alimenta é até interessante. Uma família feliz, tipo comercial de margarina, vive numa bela casa. O marido (Gianecchini) é carinhoso com a esposa (Grazi). Eles são pais de meninas gêmeas, que estudam numa boa escola. E a mãe espera um bebê. A gravidez já está bem adiantada. A criança nasce e rejeita o peito materno. Tem uns olhos estranhos e chora muito. As gêmeas remetem ao “Iluminado”, de Kubrick, e o recém-nascido parece ter parentesco com “O Bebê de Rosemary”, de Polanski. Um boneco, entre os muitos existentes na casa (e na oficina da protagonista), lembra o Chucky.

O desdobramento da trama, depois do nascimento do bebê, não convencerá aos espectadores mais espertos (ou exigentes) por conter furos dramatúrgicos. O casal habita residência de alta classe média, com cozinha sofisticada, similar às das telenovelas. Mas não conta com os serviços de nenhum empregado doméstico.

Além de trabalhar em sua oficina de bonecas para ajudar no orçamento familiar (o marido continua empregado), a mãe tem que cuidar das gêmeas (uma delas com problemas de saúde), do recém-nascido, da cozinha, da máquina de lavar etc., etc.

Se a história fosse verossímil, a parturiente teria ao menos uma babá ou cozinheira para auxiliá-la. Ou sua mãe, madrinha, prima ou cunhada viria dar “uma mãozinha” nos dias mais difíceis. Esta, afinal, é uma das tradições mais arraigadas no seio das famílias brasileiras.

O casal estaria endividado, devendo a hipoteca da casa, em fase falimentar?

Sobre tal condição financeira o filme nada diz. Só saberemos que o pai teve “gastos”, pois presenteou uma das filhas “com um celular!”. Esse é um dos furos da trama. Impossível acreditar em personagem tão bem-vestida, com cabelos tão bem-penteados e cuidando sozinha de um lar com três filhos, sendo um recém-nascido, sem babá, arrumadeira ou cozinheira. Uma diarista, que fosse. O marido até que ajuda a dar a mamadeira para o bebê, que tanto chora. E, às vezes, consegue acalmá-lo.

Apesar da “mão amiga” do marido, a personagem de Grazi não tem tempo para nada. Tanto que, por esse excesso de tarefas – concluímos –, ela se verá obrigada a deixar a filha doente (de uns seis ou sete aninhos) tomar, sozinha, medicamento prescrito pelo médico e guardado em armário alto. E, se a menina, que padece de doença grave, resolvesse tomar o vidro inteiro de comprimidos?

Ah, diria Nelson Rodrigues (ou Hitchcock), esses “idiotas da objetividade”. Ninguém aqui está cobrando realidade objetiva, documental, mas sim verossimilhança, por mínima que seja.

Belmonte, em seu décimo-quarto longa-metragem, mostra o costumeiro domínio artesanal de seu ofício. E sabe cercar-se de profissionais de grande talento (como a fotógrafa mexicana Leslie Montero e a equipe de som, liderada pela craque Miriam Biderman).

Há, por isso, boas sequências em “Uma Família Feliz”, mas as surpresas são raras. E os sustos também. A plateia de Gramado reagiu de forma protocolar e comedida. Os aplausos mais audíveis vieram das fileiras ocupadas, no Palácio dos Festivais, pela equipe.

Houve pedido do roteirista Raphael Montes à plateia (sala cheia) para que ninguém, entre os presentes, venha revelar o desfecho do filme a futuros espectadores. Solicitação pertinente. Afinal, trata-se de thriller que promete muitas revelações, salpicadas de referências (tradição do gênero). E há, realmente, divertida sacação na sequência final. Sacação – registre-se – gráfica e rápida, que dá algum sentido político à trama. Mas muito tênue. E tardio.

Nas rodas de jornalistas e críticos, o clima, ao final da sessão, era de desânimo. Mesmo que Belmonte tenha optado por filmes em busca de diálogo com o grande público (e ele conseguiu materializar tal propósito no consistente thriller “Alemão”). Já com “Uma Família Feliz”, o prolífico realizador nos faz sentir saudades de “Se Nada Mais Der Certo” (vencedor do Festival do Rio) e do pulsante “A Concepção”, que estreou no Festival de Brasília, décadas atrás.

A diretora Marise Farias do longa-metragem documental “Roberto Farias – Memórias de um Cineasta” © Matheus Zanchet/Agência Pressphoto

Se o quinto longa-metragem de ficção da mostra competitiva decepcionou, o mesmo não se pode dizer do terceiro documentário “Roberto Farias – Memórias de um Cineasta”, de Marise Farias, presente em outra mostra da competição.

Trata-se, claro, de um filme familiar. Já no começo da narrativa, Marise se insere no contexto e fala do pai, nascido na serrana Friburgo fluminense, em 1932 (ele morreu em sua adotiva cidade do Rio de Janeiro, em 2018). Aparece, ela mesma em cena, em diálogos com o pai, filmados ao longo dos últimos anos.

A construção do documentário se faz de forma híbrida: com algumas reconstituições com ator (muito breves), narrativa de Reginaldo Faria, que dá voz a algumas ideias do biografado, depoimentos (de Riva Faria, Ruth Albuquerque, Barretão, Zelito Viana) e – aí sim – farta documentação vinda do cinema, da TV e de arquivos fotográficos. O material acessado é riquíssimo.

O que “Memórias de um Cineasta” tem de melhor é a exposição de trechos de filmes de Roberto Farias. De suas duas chanchadas tardias (“Rico Ri à Toa” e “No Mundo da Lua”), passando pela Trilogia Roberto Carlos, e por seus dramas policiais-sociais (“Cidade Ameaçada”, “Assalto ao Trem Pagador”, ambos bem-sucedidos comercialmente, e o ousado, mas fracasso de bilheteria “Selva Trágica”). Todos brilham na tela, em trechos ultra-bem conservados. E muito bem escolhidos.

Como são herdeiros do cineasta, Marise (apoiada por seus irmãos Lui, Mauro e Maurício) não teve que enfrentar a difícil e custosa aquisição de direitos autorais. E – trunfo máximo – pela primeira vez num documentário brasileiro, um realizador (realizadora) pode contar com farta e vibrante trilha sonora de Roberto Carlos. A voz dele e algumas de suas melhores composições se fazem ouvir em muitos, mas muitos mesmo, momentos dos enxutos 78 minutos da trama.

Que ninguém espere renovações formais de “Memórias de um Cineasta”. Como o pai de Marise afirma e reafirma, ele sempre fez filmes clássicos, aqueles que buscavam primordialmente o diálogo com o público. Os quatro filhos seguiram seus passos e, por isso, se adaptaram bem às narrativas televisivas. O documentário de Marise mostra o pai comandando as minisséries “Maria Moura”, com Glória Pires, e “Noivas de Copacabana”, com Miguel Falabella.

Merece destaque, também, o uso recorrente (por Marise) da melhor sequência filmada por Roberto Farias em suas mais de cinco décadas no audiovisual – aquela em que, bêbado, o personagem de Grande Otelo, um dos assaltantes do trem pagador, assiste ao enterro de uma criança e vocifera contra a pobreza na favela. O ator está iluminado. O diretor também.

O respeito por Otelo, dentro de “Memórias de um Cineasta”, não é fruto apenas das lutas identitárias contemporâneas. Marise buscou, no acervo do pai, impressionante material de divulgação do “Trem Pagador”, lançado em 1962.

E o que vemos nas imagens resgatadas?

O ator Grande Otelo, bem trajado, elegante e esbanjando carisma, convidar o público a assistir ao “Assalto ao Trem Pagador”. Material apaixonante e revelador.

Outros astros negros terão destaque na trama documental. Caso de Eliezer Gomes, o Tião Medonho, líder do bando de assaltantes. O futuro ator exercia ofício modesto e que nada tinha a ver com cinema, quando foi testado junto com 30 candidatos. Agradou em cheio. E já estreou como protagonista.

Eliezer será visto, também, em outra grande sequência do melhor filme do friburguense. Aquela em que o personagem de Reginaldo Faria diz que pode gastar o dinheiro roubado do trem pagador, porque é branco e tem olhos azuis. Já os favelados, pretos, chamariam atenção se começassem a gastar o fruto do roubo.

Depois de matar o “colega”, Tião Medonho manda desovar o corpo dele no mar, para que os peixes possam comer seus olhos azuis. Com a valiosa contribuição do roteirista (e comunista) Alinor Azevedo, Roberto Farias, um liberal, realizou uma das mais contundentes reflexões sobre o racismo no Brasil. E deu protagonismo absoluto a Eliezer Gomes e suas duas (e belas) mulheres – a esposa interpretada por Luiza Maranhão e a amante (Ruth de Souza).

O público mais exigente sentirá falta de tom mais instigante e investigativo em certos momentos do documentário e há de se incomodar com algumas platitudes presentes na narrativa. Mas Marise não fugiu de tema espinhoso: a traumática demissão de Roberto Farias da Embrafilme. Lembremos que, além de vocação para o fazer cinematográfico, ele alimentava vocação missionária para a gestão público-empresarial. A versão do filme nos revela que ele foi “vítima” de fogo-amigo na luta sucessória embrafílmica. Aliados cinemanovistas se dividiram. Parte queria que ele permanecesse. Parte preferia Gustavo Dahl. Eduardo Portela, titular do MEC, ao qual a Embrafilme estava ligada, escolheu um tertius.

Destituído, Farias voltaria ao cinema com o rumoroso (e folhetinesco, embora corajoso) “Pra Frente, Brasil”, filme que seria censurado pelo regime militar, ao qual ele servira. Por ter produzido o longa-metragem, o então presidente da Embrafilme, Celso Amorim, seria demitido pelo titular do MEC, por ordem castrense.

Ah, divirtam-se com a história do tanque de guerra pilotado por Walter Foster na comédia sessentista “Toda Donzela Tem um Pai que é uma Fera”, cedido pelas… Forças Armadas.

Curtas LGBTQIAPN+ – A quinta noite da quinquagésima-primeira edição do festival foi marcada pelo cinema queer, representado por dois curtas-metragens: o carioca “Pássaro Memória”, de Leonardo Martinelli, e o maranhense “Casa de Bonecas”, de George Pedrosa.

A expectativa frente ao novo curta de Martinelli era imensa. Afinal, ano passado, ele encantou (e venceu) Gramado com o surpreendente “Fantasma Neon”, musical com pitadas sociais, ambientação e alma brasileiríssimas.

O impacto de “Pássaro Memória” foi bem menor. A trama, dessa vez, não apresentou o apelo da anterior (centrada em entregadores de aplicativo que ocupam a cidade com seus corpos que dançam).

Memória é o nome do pássaro extraviado de Lua (a trans Ayla Gabriela), que o procura pelas ruas de uma Rio de Janeiro cinzenta e indiferente. Um homem comum a ajuda (Henrique Bulhões) na procura. Lua fala de seu amor pelos musicais. Há números de dança como no filme anterior. Mas sem o impacto do vigoroso “Fantasma Neon”.

“Casa de Bonecas” é – na definição de uma de suas três protagonistas, Luty Barteiz – “um filme sobre nossas ‘corpas’” (corpos no feminino identitário). Na tela, três “corpas” (além de Barteiz, atuam Chico Gonçalves e João Vinicius) dançam enquanto falam de paixões anais e outros prazeres da carne. Tais “corpas” representam “profetas imateriais de rosa”, vocacionadas “a seduzir corpos brilhantes”. Assim agindo, elas se transformam e ficam cada vez mais fortes.

A plateia gramadense reagiu com comedimento ao primeiro curta da noite. E com mais comedimento, ainda, ao segundo.

Longas gaúchos – Mostra que vem gerando aplausos mais calorosos é a que abre as tardes serrano-gramadianas. Diariamente, às 14h, são exibidos longas ficcionais ou documentais produzidos em Porto Alegre ou municípios interioranos.

Na abertura da competição foi mostrado o documentário “Céu Aberto”, de Elisa Pessoa, tido como o franco favorito ao prêmio principal. O filme estreou no Olhar de Cinema de Curitiba.

Por cinco anos, a diretora acompanhou a vida de Andrielle, adolescente, filha de pequenos agricultores de Dom Pedrito, município dedicado ao gado e à lavoura. A vemos dos 13 aos 17 anos, primeiro atada aos parentes, ajudando a cuidar do pequeno rebanho e sonhando em cursar Zootecnia na universidade.

Depois, ainda menor de idade, vai viver na cidade. Seus sonhos não se materializam. Ela se envolve com pequenos ofícios. Desempregada como babá, passa a dedicar-se à maquiagem. Descobre na internet o veículo para conseguir trabalho (faz, por esforço próprio, seus descolados tutoriais). A pandemia vem para agravar o quadro que já não era dos mais promissores. O filme termina com Andrielle já maior de idade. E seus sonhos? Vão realizar-se?

Equipe do longa “Céu Aberto” © Ticiane da Silva/Agência Pressphoto

“Céu Aberto”, feminino e observacional, constrói-se com precisão cirúrgica. Nunca é didático. Dá ao espectador o material necessário para que ele tire suas próprias conclusões. E disponha de matizado retrato de uma parte da geografia humana (e também física) do Rio Grande do Sul, aquela onde a campanha agro-pastoril se soma à cidade e às suas promessas. Promessas que acabam materializando-se para muito poucos.

Outro documentário – “Um Certo Cinema Gaúcho de Porto Alegre”, de Boca Migotto – é essencialmente urbano. Urbano até a medula.

O filme, aliás, se constrói em cenário quase único – um descolado bar portalegrense. Na sua origem estão tese de doutorado e livro do autor-cineasta, que investigou três gerações de praticantes do audiovisual gaúcho feito na cosmopolita capital do estado. Ou seja, produziram em processo de rebelião contra o “cinema de bombacha”, em especial os filmes folclórico-nativistas (e êxitos de bilheteira) protagonizados por Teixeirinha.

“Um Certo Cinema…” não deixa de ser um típico ‘cabeças-falantes’, pois mobiliza testemunhos de uns 40 diretores, atores, pesquisadores e críticos. Mas nada tem de chato ou cansativo. Os depoimentos dos entrevistados são vivos e substantivos. Todo mundo está ali porque tem o que dizer. E o diz com segurança e, muitas vezes, com humor e ironia. A história dos “caranguejos”, metáfora para definir a “brodagem baiana” (em contraponto, a uma suposta falta de “brodagem gaúcha”) é deliciosa.

O filme soma trechos dos mais significativos longas-metragens realizados-citados pelos portalegrenses e, assim, foge da monotonia visual. Os enquadramentos no bar são diversificados e as cores calorosas.

Em curioso momento na narrativa, o documentário de Boca Migotto evoca o idílio amoroso portalegrense com a capital do estado. Gerida pelo então prefeito petista Olívio Dutra, a cidade deixou de ser um burgo sulista qualquer para transformar-se em uma espécie de “rubro município socialista, que recebia milhares de visitantes no Fórum Mundial”. Faltou avançar um pouquinho no tempo e mostrar o italiano Ettore Scola emprestando seu charme político-cinematográfico a caminhada cívico-cultural (com gestores petistas) pela então amada Porto Alegre.

Além de Migotto, portalegrenses como Jorge Furtado, Giba Assis Brasil, Ana Luiza Azevedo, Nelson Diniz e tantos outros cineastas e atores nunca trocaram a capital dos gaúchos pelo Rio ou São Paulo.

O diretor Boca Migotto e equipe de “Um Certo Cinema Gaúcho de Porto Alegre” © Ticiane da Silva/Agência Pressphoto

O terceiro filme da competição – “Acidente”, de Bruno Carboni – participou ano passado do Cine Ceará. Trata-se de ficção que envolve o trânsito pela cidade (Porto Alegre), relações homoafetivas e a produção de imagens.

Tudo começa quando uma motorista, que dirige ao lado filho, atropela uma ciclista. Ou melhor, a arremessa sobre o capô do carro e, sem prestar socorro, segue em movimento. A moça sofre escoriações, mas mesmo atrasada e abalada, cumprirá sua missão (traduzir conferência de convidado estrangeiro).

O menino, de celular sempre à mão, gravara o acidente e o disponibilizara no espaço digital. A repercussão será grande. A acidentada e o menino (louco por imagens) vão encontrar-se. Seres melancólicos, eles buscarão algum tipo de entendimento.

O filme soma duas camadas – a dos afetos e a metalinguística. Sim, “O Acidente” é também um filme sobre o próprio cinema. Sobre a produção de imagens num mundo cada vez mais saturado por elas.

Dois longas-metragens completarão a disputa: o documentário “Sobreviventes do Pampa“, de Rogério Rodrigues, e o híbrido “Hamlet”, de Zeca Brito, no qual Jean-Claude Bernardet faz participação especial.

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