“Capitão Astúcia” e “Germino Pétalas no Asfalto” encerram competição do Festival de Vitória

Foto: “Capitão Audácia”

Por Maria do Rosário Caetano, de Vitória

O documentário “Germino Pétalas no Asfalto”, de Coraci Ruiz e Julio Matos, de Campinas, e o longa ficcional “Capitão Astúcia”, de Filipe Gontijo, de Brasília, encerraram a mostra competitiva do Festival do Cinema de Vitória. Junto com eles foram exibidos oito curtas-metragens de um total de 16, que concorrem aos troféus Vitória, a serem entregues na noite deste sábado, 24 de setembro, no Centro Cultural Sesc Glória. Depois, haverá shows de Erasmo Carlos e Maíra de Freitas e Jazz das Minas.

A marca do festival capixaba é a inclusão, com abertura especial para as novas sexualidades. Nesse sentido, três dos filmes exibidos nos últimos dias são paradigmáticos. “Germino Pétalas no Asfalto” sequencia o longa anterior de Ruiz e Matos (“Limiar”, 2020), que acompanhou o processo de transição da filha Violeta até transformar-se no adolescente Noah. Desta vez, o acompanhamento se dá com a transição de gênero de Jack, amigo de Noah. O processo se verifica no justo momento em que o país mergulha em onda de extremo conservadorismo, advinda da eleição de Jair Bolsonaro e de grande bancada parlamentar contrária aos direitos LGBTQIA+. Para agravar, o país viveu pandemia devastadora.

O documentário registrará o cotidiano de Jack e seu círculo de amigos (incluindo Noah), os passos da transição, a busca (e oferta) de solidariedade, a conquista da nova certidão de nascimento (com nome masculino), o trabalho domiciliar e o trabalho humanitário nas ruas e as manifestações contra o obscurantismo da extrema-direita.

O resultado é um filme bem construído, de narrativa íntima e dos mais necessários. E o que é melhor: realizado com o tempo exigido por tema tão complexo. Jack é acompanhado ao longo de cinco anos. Ver “Limiar” e “Germino Pétalas no Asfalto”, juntos, constitui-se em experiência enriquecedora e reveladora. “Transviar” é o feliz nome de um curta capixaba, a segunda produção do Estado selecionada para a competição nacional (a primeira foi o terror “Lua de Sangue”). Sua temática não poderia ser mais regional. Afinal, trata-se do que há de mais típico na culinária local: a famosa moqueca capixaba, aquela que — ao contrário da baiana — não leva dendê. Mas o filme não tratará da iguaria em si, mas sim da feitura das tigelas de barro em que a moqueca é preparada.

Assistiríamos a mais um documentário sobre a cultura popular do Espírito Santo, se não houvesse aspecto que o particularizasse: sua protagonista, Carla da Victória, filha, neta e bisneta de “paneleiras de barro”, é transsexual. Ela aprendeu a modelar panelas de argila da mesma forma que modelou sua identidade. Perdeu o pai, com quem tinha grande identificação, muito cedo, e a mãe não entendeu sua nova identidade. Mas ela seguiu em frente. Segue recolhendo argila nos mangues de Vitória e fabricando com suas mãos de artesã as panelas, utensílio essencial à culinária capixaba.

O curta (quase média) “Uma Paciência Selvagem me Trouxe Até Aqui”, de Érica Sarmet, iniciou sua carreira já com um prêmio internacional — o de melhor elenco no Sundance Film Festival, nos EUA. O prêmio coletivo laureou o trabalho das protagonistas Zélia Duncan, Bruna Linzmeyer, Camila Rocha, Clarissa Ribeiro e Lorre Motta. Depois, o filme foi premiado no Olhar de Cinema, em Curitiba. O título, de grande beleza, inspira-se na obra da poeta Adriene Richard. A trama constrói-se em torno da motoqueira Vange (Zélia Duncan), já com o rosto marcado pelo tempo e cansada da solidão de uma vida doméstica costumeira. Ela decide, então, atravessar a ponte Rio-Niterói rumo a uma festa lésbica, na qual conhece quatro jovens que compartilham lar e sentimentos. Vivências afetivas e sexuais do quinteto comporão a narrativa, que termina com bela sequência ao ar livre, em praia de Niterói, com estreita ponte ao fundo.

Transviar

Carlos Adriano apresentou, no Festival de Vitória, seu ensaio ”Sem Título#8: Vai Sobreviver”. Embora já conhecido de outras mostras, a sessão no festival capixaba revestiu-se de valor especial. Como o filme é um ato de amor e devoção a Anna Karina e ao cinema de Jean-Luc Godard, que despediu-se da vida dias atrás, tudo ganhou novos significados. No palco, Adriano evocou “o suicídio assistido” de Godard e sua escolha pela música de Glória Gaynor (“I Will Survive”, 1978) como fundo musical de reapropriação de sequência em que Naná, a personagem de Anna Karina dança, em salão de bilhar, para potenciais clientes, em “Viver a Vida” (1962). Um filme da mais pura cinefilia, que sequencia a série “Apontamentos para uma AutoCineBiografia (em Regresso)”, em processo de  construção pelo realizador paulistano.

“Calunga Maior”, do paraibano Thiago Costa, é um mergulho na cultura afro-brasileira. A narrativa é ficcional, mas traz muito de documental ao registrar a paisagem com vigor e poesia. Ana, uma jovem escritora, em processo de luto, mergulha em suas memórias, em busca de lembranças da mãe e da avó. Para percorrer os becos de sua imaginação, ela recorre à calunga (entidade espiritual que se manifesta, na religião bantu, como força da natureza associada a mar), tentando, assim, resolver questões de seu passado. No elenco, Mariana, Laíz de Oyá, Danny Barbosa (de “Bacurau”), Norma Goes e Vera Baroni. Bela fotografia de Luis Barbosa. Personagens afro-brasileiros marcaram os quatro curtas exibidos na noite de quinta-feira, 22 de setembro. Caso de “Orixás Center”, da baiana Mayara Ferrão. A jovem cineasta divide seu filme em quatro passagens visuais compostas com arquétipos dos Orixás. Eles são vistos em performances, instalações ou videoarte. Não se trata de um filme narrativo, mas sensorial. Ele pretende envolver o espectador no universo musical e na religiosidade de matriz africana. “Hospital de Brinquedos”, da cearense Natasha Silva, é protagonizado por Beatriz, uma bela criança de cabelos crespos. Ela vive cercada pelas bonecas louras da avó. Uma delas desfruta de tamanho carinho da velha senhora, que ganha pulseira banhada em ouro, igualzinha à que é ofertada à neta Bia. Com sutileza, a questão racial é colocada pelo filme. Que, afinal, parece igualmente preocupado com questões de afeto e memórias de infância.

Mais complexas são as narrativas de “Como Respirar Fora D’Água”, das estudantes da USP Victória Negreiros e Júlia Fávero, e do vencedor do Festival de Gramado, “Fantasma Neon”, do carioca Leonardo Martinelli. O curta uspiano centra-se no dia-a-dia da nadadora Janaína (Raphaella Rosa). Certo dia, ao regressar de treino rigoroso em piscina olímpica, ela é enquadrada por policiais. Em casa, segue sua rotina, ao lado do pai, também policial (Dárcio de Oliveira). Mas começa a perceber que algo estranho se passa no trabalho dele.

“Fantasma Neon”, que causou sensação em Gramado, acumulando prêmios do júri oficial, da Crítica e do Canal Brasil, soma drama, musical e documentário para mostrar a rotina do precariado urbano, ou seja, dos entregadores de aplicativos. Seu protagonista (Dennis Pinheiro) perde o amigo (Silvero Pereira) de forma trágica, enquanto sonha trocar sua bicicleta, instrumento usado para entregar comida de casa em casa, por uma moto. Mas os rendimentos mal dão para as despesas mínimas.

O longa brasiliense “Capitão Astúcia”, de Filipe Gontijo,  constituiu uma novidade na programação do festival capixaba, já que sua proposta é dialogar com o público das sessões da tarde, aquele que gosta de filmes leves como um gibi. À frente do elenco, o ator paraibano Fernando Teixeira, de “Baixio das Bestas” e “King Kong en Asunción”, a veterana Nívea Maria, de tantas novelas da Globo, e o brasiliense Paulo Verlings. No apoio, talentos do teatro candango: André Amaro, André Deca, Cássia Gentile, Chico Sant’Anna e o saudoso Andrade Júnior.

A trama, destinada ao público juvenil, mostra Santiago, um ex-astro mirim, infeliz com sua carreira de pianista. Os pais insistem para que ele prossiga no ofício. O rapaz acaba envolvido nos sonhos do velho avô, um tradutor de legendas de HQs estrangeiras, que deseja transformar-se no Capitão Astúcia e enfrentar um japonês que amedrontava crianças com sua harpa de raios laser. A primeira parte do filme é ingênua. A segunda tem bons momentos, boas soluções e efeitos especiais descolados, mas não acaba nunca. O filme torna-se redundante e por demais explicativo.

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